Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

 

Julho de 2010 - Vol.15 - Nº 7

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

CÂNCER DE PRÓSTATA – UMA DOENÇA MULTIDISCIPLINAR

Fernando Portela Câmara
Prof. Associado, UFRJ

O câncer de próstata (CP) é uma experiência de profundo impacto vital, e isto se torna uma condição muito séria quando a depressão, ansiedade e déficit cognitivo levam ao desespero e dificuldade de lidar com a situação, prejudicando seriamente o funcionamento psicossocial do indivíduo.

Além disso, o CP provoca um profundo impacto no self. A dor e as queixas somáticas erodem a qualidade de vida do paciente, e ele se vê atormentado por questões que envolvem sua sexualidade, masculinidade e identidade de gênero. Além disso, o diagnóstico e o estadiamento do CP obrigam ao toque retal e à biópsia, o que provoca constrangimento, dor e violação dos tabus sexuais. Concorrem também para este constrangimento e depressão da auto-estima masculina, a incontinência urinária e a impotência resultante do tratamento em muitos casos. O CP é, assim, uma doença que invade dimensões do self normalmente preservadas em outras doenças.

Embora o câncer de próstata (CP) seja hoje a segunda causa de morte por câncer entre os homens, o progresso no seu rastreamento, diagnóstico e tratamento fez esta doença migrar para o grupo das neoplasias crônicas.

Um em cada seis homens após os 40 anos será diagnosticado com CP, sendo esta proporção ainda maior entre negros e afro-descendentes. Nos caucasianos, a incidência aumenta a partir dos 50 anos, enquanto nos negros e afro-descendentes isto se dá a partir do 40 anos, sendo tanto a incidência quanto a mortalidade maiores neste grupo [  28, 29   ]. 70% dos diagnósticos confirmados de CP ocorrem em homens > 65 nos, e podemos afirmar que todo homem, se viver, além dos 70 anos, terá um CP.

Não se sabe a causa do CP. Aparentemente, origina-se de células que se reproduzem desordenadamente após sofrerem lesões em seus cromossomas. Estas células alteradas são removidas pela ação dos genes supressores p53 e p21, que induzem apoptose nessas células “doentes”. Especula-se que a perda desses genes por mutação ou por lesão cromossômica possibilita as células defeituosas a se multiplicarem descontroladamente.

Não existe uma doença chamada câncer de próstata, mais sim uma coleção de doenças sob este nome. A maioria dos CP cresce lentamente e raramente provocam metástases, não sendo necessário remove-los. Uma minoria apresenta-se como muito agressiva, crescendo rapidamente e produzindo metástases ósseas, abdominais, pulmonares, etc, levando a um quadro fatal. É o poder metastático de um câncer que o faz ser temido. Esta capacidade invasiva consome o organismo e desorganiza sua fisiologia, colapsando globalmente suas funções.     

Muito esforço vem sendo conduzido para estabelecer um marcador biológico preditivo para o CP. A combinação da dosagem do PSA (antígeno prostático especifico, uma proteína secretada na membrana das células prostáticas) com o toque retal é recomendada mas seu valor é questionado. Isto se deve a duas razões: 1) o toque retal só detecta cerca de 30% dos tumores, aqueles que se projetam em direção ao ânus; 2) o PSA baixo, considerado normal, em homens > 50 anos, não exclui a possibilidade de CP. Isto fica mais evidente quando sabemos que a incidência de CP em homens com PSA alto é de 25-30%; e a de homens com PSA baixo é de 15-20%. A rigor, o diagnóstico baseado no PSA elevado só tem preditividade confiável para homens com idade igual ou acima dos 75 anos

Não se tem, portanto, um critério seguro para diagnosticar preventivamente o CP. Uma das normas mais utilizadas está em considerar o PSA total na faixa de 4,1 a 10,0 ng/mL como suspeito, reforçando se a relação PSA livre/PSA total estiver inferior a 0,15 (acima deste valor, é mais provável que seja uma hipertrofia benigna da próstata). Esses critérios, mais o de história familiar de CP, especialmente o pai ou um irmão, etnicidade, idade, devem orientar o procedimento de toque retal e biópsia.

CP COMO UMA DOENÇA CRÔNICA

Na medicina atual e dos avanços nas campanhas de prevenção, esclarecimento da população e tratamento, o CP tornou-se um doença mais próxima do conceito de doença crônica do que de doença curável ou terminal [Lin et al., 2008]. Quanto mais avança o tratamento do CP, mais pessoas vivem mais tempo com sua doença. Nos EUA, em 2008, a sobrevida de 5 anos em pacientes com CP chegou a 100%, e muitos indivíduos com CP vivem hoje pelo menos 10 anos seguintes ao diagnóstico [Pinto e Trunzo, 2005]. Alem disso, uma substancial porção dos CP detectados nunca evoluem pra uma doença clinicamente significante [Stein et al., 2008]. 

O modelo de doença crônica implantado hoje na medicina assistencial, tem beneficiado muito o portador de CP. Trata-se de uma abordagem multidisciplinar do câncer, com oncologistas, clínicos, psiquiatras, psicoterapeutas, nutricionistas, assistência a família, assistência social e econômica nos deslocamentos, etc. Este modelo focaliza, entre outras coisas, a modificação dos fatores de risco que contribuem para a recorrência do câncer e desenvolvimento de comorbidades, o que inclui mudanças no estilo de vida e o bem estar mental.

Outro fator que tem ganhado força  dentro deste modelo são as equipes de cuidados paliativos, que atuam no tratamento de pacientes em estágios avançados. Ao se procurar aliviar os sintomas, essa intervenção melhora a relação dos pacientes com suas doenças e a adesão destes ao tratamento.

Como os portadores de câncer de próstata têm hoje uma sobrevida maior, eles precisam encontrar maneiras de lidar com os sintomas, o estresse mental, e a incerteza sobre a progressão da doença. A abordagem dos cuidados paliativos, que administra junto com o paciente e sua família os sintomas físicos e emocionais, e ajuda a compreensão da doença dentro de uma perspectiva multidisciplinar, sem dúvida melhora a qualidade de vida dos pacientes de câncer.  

O TRATAMENTO

O tratamento do CP traz em si considerável risco e efeitos colaterais. Dos tratamentos existentes – vigilância, radioterapia, prostatectomia radial -, nenhum provou ser superior ou melhor. Contudo, de modo geral, a prostatectomia radical é considerada o melhor tratamento para o CP avançado localizado, não metastático [Cox e Amling, 2008], mas a quimioterapia concomitante, contudo, é ainda assunto de controvérsia. A incontinência urinaria e a impotência são os efeitos mais comuns e os mais incômodos. 

Para o CP metastático, a terapia de supressão androgênica leva a efeitos tais como ginecomastia, feminização, esterilidade, impotência, e ondas de calor. Alem disso, mis da metade dos tratados experimentam um declínio cognitivo, depressão e ansiedade. Este tratamento, contudo, mostra alguma eficácia em retardar a progressão do CP nos estágios avançados. O CP metastático, contudo, independentemente do tratamento adotado, é de evolução fatal

A PSIQUIATRIA DO PORTADOR DE CP

Toda doença que traz em si uma ameaça de morte produz um estresse profundo que requer um ajustamento psicológico. Este processo já começa no simples exame de rastreamento, produzindo ansiedade e expectativa, especialmente quando há sintomas urinários, e se agrava quando o PSA se mostra elevado e o procedimento de biópsia é considerado.

Cerca de 5% a 7% dos indivíduos com CP sofrem de depressão [Nordin et al., 2001; Hinz et al., 2008] e como esta doença ocorre predominantemente em homens velhos, que possuem um risco maior de depressão, o médico deve estar alerta para os sinais e sintomas de depressão nestes pacientes.  Uma consulta ao psiquiatra está indicada nos quadros graves de depressão, especialmente se ideação suicida está presente.  A taxa de suicídio, que já é alta em indivíduos > 70 anos, aumenta ainda mais se está presente um câncer [Bisson et al., 2002]. Além disso, a depressão concorre para o não comparecimento ao tratamento, diminuição da adesão, e considerável redução da qualidade de vida [Lorente et al., 2005]. Nos pacientes com CP, os sintomas próprios da doença, tais como fadiga, dor e anorexia são indistinguíveis da depressão, e por isso o psiquiatra deve buscar por outros indícios de depressão, tais como culpabilidade profunda, baixa auto-estima e anedonia. O tratamento psiquiátrico envolverá ã apenas antidepressivos e psicoterapia, mas também estimulantes, antieméticos, analgésicos potentes e estimulantes do apetite, que comprovadamente beneficiam tais pacientes.

22% a 26% dos pacientes com CP sofrem de algum transtorno de ansiedade [Nordin et al., 2001; Hinz et al., 2008]. Também aqui, sintomas que frequentemente acompanham o CP, tais como náusea, vômitos, desconforto gastrointestinal, polaciúria, parestesia, taquipnéia e dor torácica, podem ser confundidos com sintomas de ansiedade.  Devemos distinguir entre um transtorno de ajustamento, quando o discurso do paciente ao confrontar sua doença é ansioso, e um transtorno de ansiedade, onde as preocupações ruminativas invadem os diferentes domínios da vida do paciente. Preocupação, marca registrada da ansiedade, é comum na pessoa que confronta incerteza e medo de um diagnostico de câncer, ou da possibilidade de sua recorrência, ou do enfrentamento de um tratamento difícil. O tratamento envolve antidepressivos e, nos casos em que os sintomas afetam seriamente a qualidade de vida, os ansiolíticos benzodiazepínicos estão indicados.

O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) pode ser uma comorbidade em pacientes co CP, ou então se originar em consequências do tratamento cirúrgico e da terapia intensiva associada, especialmente se houve necessidade de ventilação mecânica. Deve-se, portanto, estar atento às queixas do paciente ou seus familiares de imagens e pensamentos intrusivos freqüentes, mesmo que não haja uma correlação clara ente intensidade do tratamento e os sintomas [Reich, 2008].

Finalmente, outra condição psiquiátrica no pacientes com CP é o risco de delirium, que incide numa taxa de 28% a 48%, no período de admissão hospitalar. Entre as causas, a hipercalcemia devido a metástases ósseas é a mais comum (as outras são por efeito da medicação, desidratação, desequilíbrio hidreletrolítico, infecções), e mais raramente por metástases cerebrais [Lawlor e Bruera, 2002]. A correção da causa eliminará o sintoma, mas o uso de um antipsicótico em dose baixa pode ajudar a reduzir o estresse do paciente, cuidadores e familiars. Nos pacientes terminais, o delirium está presente em mais de 90% dos casos [Temont-Lukats et al., 2003].

Um câncer aumenta o estresse hormonal, incluindo o cortisol, bem como a produção de citocinas, interleucinas e os marcadores tumorais. Esses elementos circulantes entram no sistema nervoso e afetam o humor, a cognição e o comportamento, impactando o funcionamento psíquico.

O conhecimento de como a biologia tumoral afeta o funcionamento psicológico tem aberto possibilidades para métodos alternativos de melhorar o estresse psíquico e a qualidade de vida dos padecentes de câncer. Educando-se a consciência dos pacientes pode-se desenvolver estratégias de enfrentamento e melhoria da qualidade de vida, com repercussões importantes para o organismo. O uso desta abordagem em grupos de pacientes que sofreram intervenções na próstata, mostrou redução nos níveis de cortisol, de inflamação, de marcadores tumorais, e da pressão sanguínea [Kiss e Meryn, 2001]. Embora ainda não se tenha uma conclusão sobre estas intervenções no aumento da sobrevida, não resta duvidas que elas melhorem significativamente a qualidade de vida.

REFERÊNCIAS

·        Lin K, Lipsitz R, Miller T, Janakiraman S. Benefits and harms of prostate-specific antigen screening for prostate cancer: an evidence update for the U.S. Preventive Services Task Force. Ann Intern Med 2008, 149:192––199.

·        Pinto B, Trunzo J. Health behaviors during and after a cancer diagnosis, cancer survivorship: resilience across the lifespan. Cancer 2005, 104(11 Suppl):2614––2623.

·        Stein K, Syrjala K, Andrykowski M. Physical and psychological long-term and late effects of cancer. Cancer 2008, 112(11 Suppl):2577––2592.

·        Cox J, Amling C. Current decision-making in prostate cancer therapy. Curr Opin Urol 2008, 18:275––278.

·        Reich M. Depression and cancer: recent data on clinical issues, research challenges and treatment approaches. Curr Opin Oncol 2008, 20:353––359..

·        Lawlor PG, Bruera ED. Delirium in patients with advanced cancer. Hematol Oncol Clin North Am 2002, 16:701––714.

·        Tremont-Lukats I, Bobustuc G, Lagos GK, et al. Brain metastasis from prostate carcinoma: the M.D. Anderson Cancer Center experience. Cancer 2003, 98:363––368.

·        Kiss A, Meryn S: Effect of sex and gender on psychological aspects of prostate and breast cancer. BMJ 2001, 323:1055––1058.


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