Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto 2010 - Vol.15 - Nº 8

Artigo do mês

O MITO DE MEDEIA: QUANDO OS PAIS MATAM SEUS FILHOS

Vanessa Fabiane Machado Gomes Marsden
Psiquiatra formada pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia
Mestre em Psiquiatria e Saúde Mental, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Portugal

Medeia é uma personagem da mitologia grega, descrita extensivamente na peça Medea, de Eurípedes e no mito de Jasão e os Argonautas. Medeia era uma mortal filha do rei da Cólquida, e neta do deus do sol Helio. Em diversos mitos Medeia é descrita como uma feiticeira, muitas vezes ligada à deusa Hécate (deusa da bruxaria e das encruzilhadas).

A história desta mulher inicia-se com a chegada do herói Jasão a Cólquida, para obter o Velo de Ouro (a lã de ouro do carneiro alado Crisómalo) necessário para sua volta ao trono da Tessália. Medeia apaixona-se por Jasão e promete ajudar-lhe, com a condição de que se ele obter o Velo de Ouro, os dois se casem. Para que Jasão obtenha o poderoso Velo, ele teve de realizar certas tarefas. A primeira delas consistia em lavrar um campo com dois touros gigantecos, de cascos de bronze e que expeliam fogo pelas narinas. Medeia deu-lhe um unguento para proteger a si e suas armas do fogo. A segunda tarefa consistia em semear um campo lavrado com dentes de um dragão. Dos dentes nasceu um exército de violentos guerreiros mas Jasão havia sido alertado por Medeia, que lhe aconselhou a jogar uma pedra no meio deles. Sem saber de onde veio a agressão, os soldados atacaram-se uns aos outros. Finalmente Jasão deveria matar um dragão insone que guardava o Velo. Medeia colocou a besta para dormir, utilizando poderosas ervas narcóticas. Jasão então tomou o Velo de Ouro e foi-se embora com Medeia, conforme prometido.

Para garantir sua fuga, Medeia matou seu irmão Apsirto e desmembrou-o pelo caminho, sabendo que seu pai ficaria devastado com a perda e pararia para coletar os restos do filho, garantindo-lhe um funeral adequado. Desta forma, Medeia e Jasão conseguem embarcar na nau Argos e fugir da Cólquida. Após diversas aventuras e muita crueldade (por parte dos dois), o casal chega a Corinto, onde Jasão se apaixona pela filha do rei, Gláucia, e abandona Medeia.

Na peça de Eurípedes, Jasão confronta Medéia e tenta explicar-se, dizendo que não poderia deixar passar a oportunidade de se casar com uma princesa, enquanto que Medéia é apenas uma mulher bárbara e conta-lhe que pretende juntar suas duas famílias mantendo-a como sua amante. Ela lembra-lhe que deixou sua família para trás para seguí-lo e salvou-lhe a vida diversas vezes. Ela fica desolada e resolve vingar-se enviando a Gláucia um vestido e uma pequena coroa envenenados, o que resulta na morte da princesa e do rei, que correu para acudí-la.

Cega de dor e de ódio, Medéia decide matar seus filhos também, com o intuito de causar o máximo de dor a Jasão. Na peça, ela sai do palco para buscar uma faca e os gritos dos meninos são ouvidos nos bastidores. Jasão corre para vingar-se, mas vê Medeia à distância, em uma carruagem dourada enviada por seu avô, Hélio, deus do Sol, a dizer: "Eu nem mesmo deixo-te os corpos dos nossos fihos; eu os levo comigo para enterrar. E para vós, que me fizeste todo o mal, eu profetizo uma maldição final."

Medéia passa ainda por muitas aventuras e o filicídio, de certa forma, fica sem ser vingado nos mitos gregos que lhe dizem respeito. Mesmo o fratricídio cometido é de certa forma perdoado quando ela retorna à Cólquida e ajuda seu pai a retornar ao trono, que tinha-lhe sido usurpado pelo tio.

Este mito me veio à memória após acompanhar nos noticiários ingleses
o julgamento de Petros Williams, um pai que matou seus filhos em um acesso de raiva e o caso Nardoni no Brasil. Petros Williams descobriu que sua ex-mulher estava a namorar online e, num acesso de ciúmes, estrangulou os dois filhos com os cabos do computador e tentou matar-se com uma overdose de medicamentos. Ele foi recentemente condenado a 28 anos de prisão. Infelizmente estes exemplos não são singulares ou raros. Casos de filicídio, seja pelo pai ou pela mãe povoam as páginas policiais de qualquer país, sendo talvez mais predominantes em algumas culturas do que outras (como na China e em países nos quais o nascimento de uma menina é visto com maus olhos).

Antes de iniciar a análise do mito e dos filicídios reais, cabe uma análise dos termos filicídio, neonaticídio e infanticídio, muitas vezes utilizados de forma intercambiável na literatura do homicídio infantil. Bourget et al. (2007) caracteriza filicício como o assassinato de uma criança por um dos pais, enquanto neonaticídio caracteriza o assassinato de um recém-nascido no dia do nascimento. Embora infanticídio seja corriqueiramente utilizado em referência a homicídio infantil, o termo tem implicações médico-legais, e se aplica especificamente ao assassinato de crianças menores de 12 meses de idade por uma mãe que não se recuperou completamente dos efeitos da gravidez e lactação, sofrendo em algum grau de transtornos mentais.

Diversos autores analisaram o filicídio, tentando dissecá-lo e caracterizá-lo (Bourget et al. 2007, Farouque 2003, Resnick 1969, Wilczynski 1995):

Filicídio altruísta
Um dos pais tenta livrar a criança de sofrimento real ou imaginado, geralmente acompanhado de suicídio.

Filicídio psicótico
Um dos pais mata a criança sob influência de doença mental grave

Filicídio do filho indesejado
A vítima nunca foi ou não é mais desejada pelos pais. Geralmente cometido em circunstâncias de filhos ilegítimos ou paternidade incerta.

Filicídio acidental
Morte sem dolo secundária a abuso infantil

Filicídio de retaliação (Wilczynski, 1995)

No qual o ódio a uma pessoa é deslocada à criança. É o caso de Medeia e de muitos outros encontrados nas páginas policiais (como o descrito acima, na Inglaterra). A pessoa alvo dos sentimentos de ódio e do filicídio é em geral o parceiro do perpetrador. Como a fonte de angústia nos filicídios de retaliação é o parceiro sexual do perpetrador, estes assassinatos são denominados "Complexo de Medeia". Mas quão típico são os filicídios da vida real, quando comparados ao caso protótipo de Medeia?

O mito e o Complexo de Medeia certamente são populares e encontrados de forma recorrente na ficção, em estereótipos como o ditado americano "hell hath no fury like a woman scorned" (não existe fúria como a de uma mulher traída). Exemplos na ficção são encontrados no filme Atração Fatal (Fatal Attraction), no qual a amante rejeitada direciona sua atenção assassina ao ex-amante, sua mulher, filha e até mesmo ao coelhinho de estimação.


Entretanto, segundo Wilczynski (1995), homens e não mulheres são muito mais propensos a cometer assassinatos de retaliação. Homens e mulheres tendem a matar seus filhos por razões bastante diferentes: homens são geralmente associados a retaliação, disciplina ou rejeição por parte da vítima. As mulheres, por outro lado, matam pois o filho não era desejado (tipicamente neonaticídio, cuja mãe escondeu a gravidez);  porque o assassinato foi percebido como melhor escolha para criança (filicídio altruísta); ou porque a mãe estava em estado psicótico no momento do crime.

Segundo Bourget (2007), o filicídio de retaliação por parte da mãe é raro e é mais cometido por mulheres com transtornos de personalidade e história de tentativas de suicídio. Também parece haver relação entre o sexo da vítima, sendo que filhas são mais provavelmente assassinadas em filicídios altruístas e filhos em filicídios de retaliação.

A história do relacionamento dos pais tende a revelar um ambiente hostil, cheio de conflitos, com atos violentos de um ou ambos os parceiros, sendo uma das principais motivações para os conflitos e o assassinato o ciúme e suspeitas de infidelidade.


A retaliação por parte dos homens parece ser uma extensão natural de seu poder e controle sobre a família e o relacionamento sexual. As atitudes das mulheres são percebidas por estes homens como um desafio à sua autoridade e masculinidade ao deixá-los e ao iniciar relacionamentos com outros homens. De forma oposta, as mulheres, segundo Wilczynski, apresentam comportamento retaliador devido ao ressentimento pela falta de poder no relacionamento.

Especificamente no que tange ao "Complexo de Medeia", Farooque relata que o mesmo foi descrito no auge da psicanálise (1944) como o "ódio inconsciente de uma mãe por sua filha que amadurece, vista como uma rival em potencial." Mesmo na época áurea da psicanálise o construto passou por diversas crítcas pois, para começar, Medeia não teve filhas, mas filhos com Jasão e estes autores se apoiavam em construtos irrefutáveis e tautológicos iniciados em Freud (ex. a existência de impulsos filicidas em todas as mães). Farooque argumenta que ao final do século 20 é aparente que estes construtos ajudaram muito pouco no entendimento da etiologia do filicídio e apenas distraíram investigadores científicos de fatores mais mundanos e práticos como uso de drogas ou capacidade intelectual do perpetrador.

Ataques a outras pessoas

Outro aspecto incomum do mito de Medeia, que parece não ter correlação com as mães que cometem filicídios no mundo real é a violência direcionada a outras pessoas (como à seu irmão e à princesa Gláucia, no mito). De acordo com a literatura é muito mais provável que homens apresentem este comportamento, com cerca de um sexto dos perpetradores tendo apresentado comportamento violento direcionado a outras pessoas na época do filicídio ou descrito impulsos para violência. Além disso, os homens apresentavam maior probabilidade de causar injúrias mais sérias.

Violência doméstica

Um aspecto do mito que realmente é bastante típico dos casos reais é a história de abuso físico e emocional no relacionamento. Na peça de Eurípedes, Jasão humilha Medeia e a rebaixa de esposa a amante, chamando-a de bárbara e inferiorizando-a em comparação à Glaúcia (abuso emocional). A porcentagem de mulheres filicidas abusadas nos relacionamentos é contraditória na literatura, variando de um terço das amostras investigadas a 80%. Em contraste, poucos homens filicidas relatam terem sofrido violência doméstica, embora muitos tenham sido apontados como maridos violentos anteriormente ao assassinato.

Diversos outros fatores devem ser considerados na análise de filicídios, como a existência de transtornos mentais graves do Eixo I, cultura (índios da Amazônia, por exemplo, costumam matar crianças com debilidades ou problemas físicos), religião (como a descrição bíblica de  Abraão a se preparar para matar Isaac, seu filho, para provar sua fidelidade a Deus em Genesis 22:1-24) e outros que não foram alvos de estudo nesta revisão.

 

Por fim, o mito de Medeia é uma história fascinante de completa dedicação a um amor e de escórnio, humiliação e assassinato. Embora o mito seja bastante alegórico e possa ser considerado um caso protótipo de filicídio, é relativamente raro que mulheres sejam as perpetradoras de filicídio de retaliação ou que as mães filicidas tenham antecedentes de violência a terceiros. Embora o mito de Medeia seja poderoso na descrição de um filicídio motivado por ciúme e rejeição, ele é apenas isto, um mito, não encontrando ressonância nos casos reais analisados na literatura.


Referências:


Bourget et al, 2007. A review of maternal and paternal filicide. The journal of the American Academy of Psychiatry and the Law, 35 (1), 74-82.

Euripedes, Medea. Google Books, disponível na íntegra online.

Farooque & Ernst, 2003.
Filicide: a review of eight years of clinical experience. Journal of the National Medical Association, 95 (1), 90-4.

Resnick. Child murder by parents. American Journal of Psychiatry. 1969; 126:325-334. In: Farooque & Ernst, 2003.

Wilczynski, 1995. Murderous Mothers and the Medea Myth: A Commentary on 'Medea: Perspectives on a Multicide' Australian Journal of Forensic Sciences, 27 (1), 6-12.


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