Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Novembro de 2009 - Vol.14 - Nº 11

História da Psiquiatria

Augusto Luiz Nobre de Melo (1909-1984)

Walmor J. Piccinini

Nome ilustre da psiquiatria brasileira, pouco conhecido no meio psiquiátrico o que não lhe tira a importância, mas diminui o reconhecimento do seu trabalho pelos mais jovens.

Nasceu no Rio de Janeiro em 1909 e em 1934 formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Seus pais foram José Clarimundo de Melo e Alcina Walerstein Nobre de Melo. Desde cedo demonstrou interesse pela Psiquiatria e isso pode ser acompanhado pelos cargos desempenhados. Começou com interno, por concurso, no “Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro”. Logo após a formatura, tornou-se Assistente no Serviço de Assistência a Psicopatas do Rio de Janeiro. Tirou o primeiro lugar em concurso para o Serviço Nacional de Doenças Mentais; chefe do Núcleo “Franco da Rocha” da Colônia Juliano Moreira. Muito ativo, foi acumulando funções tais como, chefe da Seção Carmeil do Hospital Psiquiátrico do SNDM; psiquiatra do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro; chefe do Pavilhão Guinle do Hospital de Neuro-Sífilis do Centro Psiquiátrico Nacional; diretor do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, e da Divisão de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Na área acadêmica foi Docente-Livre de Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da UFRJ e Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense. (fonte Isaias Paim).

Com a Tese de cátedra: Psicopatologia da Reação Esquizofrênica venceu o concurso para Professor Catedrático da Fac. Fluminense  De Medicina em 1954. Seu maior oponente foi o professor José Leme Lopes com uma tese admirável em que pela primeira vez propunha eixos para o diagnóstico psiquiátrico. (As dimensões do Diagnóstico Psiquiátrico). Em 1956 voltam à disputa, agora pela cátedra da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Leme Lopes com sua tese "Alguns aspectos da personalidade dos epilépticos.", vence Nobre de Mello que apresentou a tese

As afecções mentais na comunidade urbana (estudo ecológico de perturbações mentais no Distrito Federal.

No Índice Bibliográfico de Psiquiatria (www.bilbioserver.com/walpicci) registramos os seguintes trabalhos do Professor Nobre de Melo:

    1.   Nobre de Melo, A. L. As afecções mentais na comunidade urbana (estudo ecológico de perturbações mentais no Distrito Federal). Rio De Janeiro, Ed. Gráfica Da Universidade Do Brasil. 1956.
Notes: Tese de concurso para a cátedra de Psiquiatria da Fac. de medicina da UFRJ-1956.

   2.   Nobre de Melo, A. L. Aspectos psico-biológicos e sociais da delinqüência infantil. Arq. Manicômio Judiciário Do Rio De Janeiro. 1936; 7: 45-54.

   3.   Nobre de Melo, A. L.. Consciência Humana e Consciência Animal. J. Bras.Psiquiat. 1952; 1 (14): 33-43.

   4.   Nobre de Melo, A. L.. Das câimbras profissionais. Arq. Bras. De Neuriatria e Psiquiatria. 1934; 30 (1): 23-32.

   5.   Nobre de Melo, A. L. A estrutura da personalidade primitiva. Rev.Do Centro Psiquiátrico Nacional. 1946; 1: 27-32.

   6.   Nobre de Melo, A. L. Evolução do conceito doutrinário das psicoses endógenas. Arq. Do Manicômio Judiciário Do Rio De Janeiro. 1963; 5 (1): 27-42.

   7.   Nobre de Melo, A. L.. Fenomenologia da Esquizofrenia. J. Bras.Psiquiat. 1951; 1 (9): 74-92.

   8.   Nobre de Melo, A. L.. Formas frustras de neuro-lúes. Arq. Bras. De Neuriatria e Psiquiatria. 1946; 42 (1): 27-32.

   9.   Nobre de Melo, A. L.. Instituto e Intelecção. J. Bras.Psiquiat. 1950; 1 (7): 61-74.

10.   Nobre de Melo, A. L.. Integração e dissolução da linguagem animal. J. Bras.Psiquiat. 1949; 1 (6): 3-23.

11.   Nobre de Melo, A. L.. Introdução à Psiquiatria. Livraria Odeon Editora, Rio De Janeiro. 1945.

12.   Nobre de Melo, A. L.. Linguagem animal - Integração e dissolução. J. Bras.Psiquiat. 1949; 1 (6): 62-68.

13.   Nobre de Melo, A. L.. Linguagem e Pensamento. J. Bras.Psiquiat. 1953; 2 (3): 231-242 (243-268).

14.   Nobre de Melo, A. L. Mundos Mágicos. S.r. 1949.
Notes: Esta obra recebeu o Prêmio Literário Sílvio Romero, pela Academia Brasileira de Letras

15.   Nobre de Melo, A. L. O estado crepuscular histérico. Arq. Serv. Nac. De Doenças Mentais. 1943; 2: 555-568.

16.   Nobre de Melo, A. L. O problema das neuroses na clínica. Rio De Janeiro, Edit. Científica. 1949.

17.   Nobre de Melo, A. L. Personalidade esquizotímica com desvios éticos constitucionais. Homicídio... Arq. Manicômio Judiciário Do Rio De Janeiro. 1937; 8 : 29-34.

18.   Nobre de Melo, A. L. Psicopatologia da Reação Esquizofrênica. Tese De Cátedra - Fac. Fluminense De Medicina. 1954.

19.   Nobre de Melo, A. L. Psiquiatria. Rio De Janeiro, Ed. Guanabara-Koogan. 1981.

20.   Nobre de Melo, A. L. Tratado de Psiquiatria. S.r. 1970; I e II.

21.   Nobre de Melo, A. L. and Souza, F. Nogueira. Tratamento do alcoolismo crônico. J. Bras.Psiquiat. 1953; 2 (1): 37-48.

      Embora o Professor Nobre de Melo fosse muito querido e admirado, pouco tem sido escrito sobre ele. Um dos seus admiradores e que escreveu uma biografia sucinta sobre ele foi o Professor Isaias Paim (Psiquiatras Brasileiros. Ed. Oeste. Campo Grande. MS-2003. No Museu Digital da ABP, Dalgalarrondo e Oda resumem algumas idéias do pensamento psicopatológico de Nobre de Melo.

“• Conhecido, sobretudo pela sua grande obra psicopatológica Psiquiatria, em 2 volumes (publicada em 1970 -1ª edição, e em 1976 -2ªedição).
• Psiquiatra e psicopatólogo de ampla e profunda cultura científica e humanística.
• Orientação fenomenológico-existencial antireducionista marca sua obra:
• Crítico dos reducionismos biológicos e psicológicos.
• Interesse pela psiquiatria social em uma perspectiva de ecologia cultural.”

 

O Jornal Brasileiro de Psiquiatria publicou em duas partes, (1999 e 2003) o trabalho de Nivaldo Duarte de Marins (Revisitando a psicopatologia: uma leitura da tese Psicopatologia da Reação Esquizofrênica, de A. L. Nobre de Melo.

 

Algumas idéias defendidas em seu tempo por Nobre de Melo, já se encontram incorporadas ao atual pensamento psiquiátrico: Destacou a Psiquiatria como um ramo importante do conhecimento médico e advogava a introdução da cadeira de Psicologia Médica nas Faculdades de Medicina. Considerava o conhecimento psiquiátrico fundamental à formação médica geral. Como chefe de clínica do Professor Maurício de Medeiros, infundiu o raciocínio psicopatológico em seus alunos. Adotou como orientação filosófica a fenomenologia de Husserl.

         “É em resultado do seu esforço pessoal que a Psicopatologia alcançou em nosso meio, a posição de ciência autônoma, assim como preconizava Karl Jaspers. Em sua opinião, o objetivo da Psicopatologia consiste no estudo das manifestações psíquicas anormais, referentes ao homem enfermo da mente, procurando formular os conceitos e os princípios relativos ao doente mental, enquanto genericamente considerado. Por isso, a Psicopatologia representa para Psiquiatria o principal instrumento auxiliar, sem prescindir dos recursos e subsídios procedentes de outras fontes do conhecimento sistemático. Do ponto de vista psiquiátrico é mister encarar o enfermo não apenas por um dos seus aspectos, mas em sua totalidade e em atendimento às normas, preceitos e exigências fundamentais, inerentes ao exercício profissional da especialidade. Compete ao especialista conhecer os inúmeros fatores etio-patogênicos das perturbações mentais, para penetrar e compreender a estrutura dos quadros sintomatológicos e grupos sindrômicos, que definem as diferentes formas nosográficas. Torna-se indispensável estar bem aparelhado de elementos semiológicos para poder diagnosticar a anormalidade, avaliar a sua evolução e estabelecer o prognóstico. A prescrição terapêutica é uma resultante indispensável, sem que se perca de vista as circunstâncias jurídicas e sociais em que se encontra envolvido o caso concreto”. (I.Paim)

 

Considerações de Dalgarrondo e Oda   sobre idéias de Nobre de Melo sobre o Homem:


• ... Só o Homem possui a capacidade de abstrair e generalizar; a capacidade de formar conceitos, símbolos e imagens, a possibilidade de aprender ao infinito.


• A linguagem humana, mesmo a mais primitiva, difere, profunda e substancialmente, de todas as formas possíveis de intercomunicação animal (...) ela implica não só a percepção, como também a representação simbólica e conceitual da realidade...
(Psiquiatria, vol. 1, p. 282-284.)


• Técnica, ciência, filosofia, arte, religião, moralidade, sociabilidade, historicidade – eis, em suma, os valores espirituais intrínsecos e autênticos, que integram a estrutura ontológica fundamental e específica do ser humano. Esse conjunto, a que se denomina cultura, em sua mais ampla significação, constitui dimensão inexistente na natureza infra-humana, e faz do Homem um ser qualitativamente novo na ordem das espécies, situando-o, a bem dizer, em um recanto solitário do Cosmos, como o singular habitante de dois reinos. (Psiquiatria, vol. 1, p. 282-284).

Nobre de Melo:
visão anti-reducionista

Que a natureza substancial do Homem transcende as limitações da ciência positiva, eis aí a evidência a que nos temos de render...
• [a ciência positiva busca] Definir o Homem exatamente pelo que ele não é, aniquilando assim o que há de mais genuinamente humano em sua condição...
• Psiquiatria, vol. 1, p. 282-284

• ... é o homem o único ser da natureza, ciente do seu destino, como ser-para-a-morte... Em suma, o Homem sabe que vai morrer. (...) É que ao Homem, e só ao Homem, assiste, afinal, e em última instância, a liberdade de ser ou deixar-de-ser.
• Psiquiatria, vol. 2, p. 332. (Dalgalarrondo e Oda).

O artigo de Nivaldo de Marins entre várias considerações traz dois casos clínicos que mostram a maneira de pensar e de apresentar material clínico que acho que podem dar uma idéia de como funcionava o raciocínio psiquiátrico de Nobre de Melo:

Primeiro caso

N. N., 44 anos, branco, solteiro, brasileiro, funcionário público. Examinado em nosso consultório em julho de 1953 e internado no Sanatório Santa Alexandrina por nossa indicação.

Indivíduo de pequena estatura e formas arredondadas, calvo, regularmente nutrido, enquadrável, sem hesitação, no grupo dos de estrutura corporal pícnica, de classificação de Kretschmer.

Quanto à herança, apurou-se apenas que o paciente é descendente de uma família de introvertidos (“cada qual sempre metido consigo mesmo”). O pai, um leptossômico puro, falecera de “arteriosclerose”. Era uma homem de “mentalidade colonial”, austero e tradicionalista. A mãe, também já falecida, “de enfermidade cardíaca”, era tendente a pícnica, muito caseira e religiosa (informes de um velho conhecido da família, praticamente o único amigo do paciente). Uma de sua irmãs também se conservara solteira – criatura de vida simples, pícnica, reservada, discreta, mas muito prestimosa. Outra se casara (em solteira, sofria de “ataques histéricos”).

O paciente residia então em companhia de suas duas irmãs, cunhado e um sobrinho pequeno, na mesma casa em que havia nascido e em que fora criado. Era homem de hábitos metódicos,

rotineiro. Não fumava. Não bebia. E até então nunca havia “consultado um médico”. Iniciara-se na vida sexual aos 18 anos com mulher pública, que daí por diante passara a freqüentar regularmente, uma vez por semana. Essa mulher (refere o informante) era ainda, até a bem pouco tempo, a mesma de sua iniciação. Nunca tivera nenhuma inclinação sentimental mais séria, a despeito de quando moço ter tido duas ou três namoradas. Tímido, retraído, comparecia ao serviço com assiduidade e era tido por bom cumpridor de suas obrigações. Jamais tivera curiosidades intelectuais (tinha apenas o curso primário completo) e, embora manifestasse certo interesse pelos desportos, nunca os praticara, e raramente comparecia a reuniões do gênero.

Dois acontecimentos traumatizantes sucessivos marcaram o início dos seus sintomas: a instâncias de seu único amigo (nosso informante) aquiescera em fazer uma experiência sexual com outra mulher que não a velha meretriz que o iniciara, e tivera então uma crise de impotência que o deixara profundamente impressionado e acabrunhado; poucos dias depois, chegara à sua casa uma convocação do Tribunal do Júri para integrar o corpo

de jurados do mês entrante, fato que o pôs imediatamente em verdadeiro estado de pânico.

Em menos de 48 horas configurara um quadro sintomatológico florido e em franca relação com os acontecimentos mencionados. Julgava que tudo tinha sido obra do amigo, não propriamente por maldade, mas para sujeitá-lo a uma experiência, para pôr à prova a sua capacidade. O certo é que já estava muito velho para “andar trocando de mulher” e, afinal, seus hábitos “deviam ser respeitados”.

A prostituta, em cuja casa fora levado e com quem não pudera ter relações, acabara confessando que “estava com doença venérea” e mostrara-lhe uma “enorme ferida nas partes genitais”. O pior era que agora a coisa caíra nos ouvidos da vizinhança e estava sendo objeto de toda sorte de zombarias. Ainda há pouco, ao entardecer, ouvira um assobio e chegando à janela do seu quarto, que dá para os fundos de outras casas, entrevira ao longe, sobre uma árvore, uma rapariga desconhecida, mas muito jovem “quase uma adolescente”, que ao vê-lo começara a levantar as vestes e a fazer-lhe sinais convidativos. Como se não bastassem todas essas provocações, ainda faziam irradiar, fora de época, músicas de carnaval em cujas letras havia alusões claras à sua situação.

Sabia que, dentro em breve, seu nome estaria nos jornais, pois não iria atender à convocação do tribunal e provavelmente seria preso por isso. Mas não importa, era preferível. Não estava em condições de enfrentar tamanha responsabilidade, de decidir a sorte dos outros. Parece que já sabiam de suas intenções, pois vira uns “caras suspeitos” rondando sua casa, possivelmente “secretas”, que viriam levá-lo a qualquer momento. Insone, angustiado, inquieto, tinha por vezes atitudes extravagantes, permanecendo longo tempo a um canto, acocorado, cabeça fletida sobre o tronco, imóvel e em silêncio.

Outras vezes, saía do seu ensimesmamento habitual, ria-se, estabelecendo bom contato com o observador e referindo-se jocosamente aos episódios ocorridos no prostíbulo e à “enorme ferida que dera motivo à sua crise de impotência”.

Esse quadro remitiu gradualmente, em cerca de 20 dias, sem deixar seqüelas, e apenas com psicoterapia – dispensa da convocação, melhor esclarecimento dos fatos, persuasão, encorajamento.

Durante o curto período de sua internação, que fora aceite sem relutância, evitara conversas

com o pessoal do sanatório, mantendo-se isolado,arredio e desconfiado. Nos últimos dias, confessava-se persuadido de que, “de fato, não andara bem da cabeça”. E soubemos que, pouco depois, retomava suas atividades e sistemas de vida, reajustando-se com a antiga meretriz, e nada mais apresentando em sua conduta que chamasse a atenção dos circunstantes.

Tivemos conhecimento, ulteriormente, de que esse paciente não mais voltara a apresentar distúrbios psíquicos, e que viera a falecer em 1950 de um “enfarto do miocárdio”.

O caso nos parece interessante, não só do ponto de vista clínico, mas também antropológico dada a extrema pobreza do seu projeto de mundo, muito limitado à categoria de continuidade, e para o qual a quebra da rotina foi capaz de determinar, mercê de sua estrutura pessoal, o aparecimento de sintomas psicóticos reacionais, compreensíveis, de matiz esquizoparanóide.

 

Segundo caso

Mme. L., senhora de 48 anos de idade, branca, casada, alemã (israelita), refugiada do nazismo e residente a princípio nos Estados Unidos, e no Brasil desde 1944.

Quanto à herança, pai neurótico crônico (hipocondríaco, fóbico, compulsivo). Mãe falecida de causa ignorada pelo informante (marido). Nada mais se pôde apurar digno de registro.

Estrutura corporal predominantemente atlética: estatura acima da mediana, ossos largos e sólidos, musculatura bastante desenvolvida.

O início de suas perturbações verificou-se em 1946 e coincidiu com o aparecimento das primeiras irregularidades menstruais, denunciadoras da aproximação da menopausa. Até então, sempre fora muito sadia, sendo dada a práticas desportivas (natação, tênis) e a obras de benemerência social. Casada havia mais de 25 anos com um industrial de grandes recursos internacionais, era mãe de dois filhos, já rapazes, que nada apresentavam de anormal.

Nenhum traço tipicamente patológico poderia ser identificado em sua personalidade anterior.

Era, sem dúvida, predominantemente introvertida, mas de caráter estênico nítido. Gostava de ler e era, de modo geral, bem informada em assuntos de ordem intelectual.

Seus primeiros sintomas, por ela própria atribuídos ao climatério, foram insônia (vazia, sem angústia, sem conteúdos), certo mal-estar físico, que nunca havia sentido, e, depois, uma tendência irrefreável, ora cômica, ora dramática, “tudo como se estivesse num teatro”. Pretextava doença para não sair e não receber ninguém. E permanecia longas horas solitária, à varanda de sua casa, quieta, pensativa. Tinha por vezes, solilóquios, risos aparentemente imotivados e, não raro, gesticulava para interlocutores invisíveis (informes do marido). Se era interrompida, dava mostras de grande irritação, respondendo em tom alterado e logo se retirando, com movimentos bruscos e estranhos.

Ante tais perturbações, o esposo recorrera a princípio a um ginecologista, depois a um endocrinologista e, finalmente, dada a progressiva agravação do seu estado, a um psiquiatra, que a internou no Sanatório Imaculada, submetendo-a a 30 comas insulínicos. O êxito da medida fora sensível, mas incompleto: a paciente melhorou dos sintomas referidos, pôde voltar para casa, tendo sido entregue então aos cuidados de um psicoterapeuta, que passara a assisti-la em sua própria residência.

Fê-lo, porém, durante pouco tempo, pois estava de viagem marcada para o estrangeiro, motivo pelo qual substabeleceu-nos aquela incumbência, nos primeiros meses de 1947.

O estado mental da paciente podia ser assim resumido: calma, lúcida, coerente, acessível; esforçava-se por ser amável e alimentar a conversa, mas havia algo de artificial em suas maneiras e em seus gestos. Sentia-se diferente do que era e, embora sem dizer explicitamente, mas tão-só por alusões e meias palavras, mostrava-se enormemente ressentida contra o marido, pelo “monstruoso tratamento” que este arbitrariamente lhe impusera.

Sua atitude para com o esposo era de hostilidade surda, mas implacável. Evitava a sua presença, nunca lhe dirigia a palavra, nem sequer o olhar, e, quando acaso solicitada, respondia-lhe em frases breves, com evidente rispidez e desagrado. Isso contrastava com a atitude desvelada e carinhosa do marido, que tudo fazia para adivinhar seus desejos e cercá-la de uma atmosfera de afeto e cuidados.

Seu ressentimento, ao que se apurou então, prendia-se, sobretudo ao fato de haver sido tratada como um “animal”. Não fora consultada, informada, esclarecida, consideração que acreditava merecer “como ser humano que era”. Aludia, com isso, à sua transladação para a casa de saúde, a que não opusera resistência, pois não sabia sequer do que se tratava, entregue à companhia de estranhos (a família se ocultara na ocasião) e depois “abandonada em um catre”, aos cuidados das enfermeiras, isolada de tudo e de todos, “como se fora uma criminosa”. Chegara a supor que estivesse mesmo prisioneira, em um campo de concentração, e que o tratamento ministrado eram torturas que se lhe infligiam para que confessasse alguma culpa inexistente. Sabia que ia morrer ali, e que não recuperaria jamais a sua liberdade.

Quando mais tarde viera a inteirar-se da verdade, sentira grande revolta, e só a muito custo aquiescera em deixar o sanatório e voltar para casa. Informada que realmente estivera enferma de “distúrbios próprios da idade crítica” (tinha certa consciência disso), mostrara-se mais compassiva e tolerante.

No fundo, porém, “não podia perdoar a precipitação do esposo”, que atribuía aos seus preconceitos e temor de escândalo, e principalmente o abandono e isolamento em que fora mantida durante quase dois meses.

Escusado acrescentar que essa provação fora determinada pelo médico e que nem um só dia o esposo deixara de comparecer ao sanatório, a notar que, de quando em quando, fazia sentir a sua presença enviando-lhe flores, doces e pequenos objetos de adorno pessoal, de que a paciente não tomava sequer conhecimento.

Em realidade, ao que nos foi possível aferir, com segurança de nosso longo convívio, quase diuturno, com a paciente, esse ressentimento contra o esposo era muito antigo, mas secreto, e talvez ignorado de ambos, pelo menos em parte. O marido, 12 anos mais velho, embora destituído de quaisquer atrativos físicos, era o que se poderia chamar “uma personalidade socialmente brilhante”.

Inteligente, culto, extraordinariamente amável e envolvente, tinha sempre requintes de gentileza para com todos e, por isso, sempre ocupava posição nitidamente dominante nos círculos de relações do casal. Havia de há muito, um problema de competição social constante, de que o marido não se apercebia. E quanto mais enchia a esposa de atenções, mais esta se sentia diminuída, inferiorizada e asfixiada em sua personalidade.

Sentia-se dentro dele como que “convertida em objeto”, e suas amabilidades eram recebidas como verdadeiras agressões.

Sabia-o preconceituoso, irônico e dominador, e esforçava-se por “guardar as aparências”. Mas, no íntimo, adquirira por ele certa repulsa física. Havia já alguns anos que não sentia prazer algum nas relações sexuais e, nos últimos tempos, procurava evitá-las sistematicamente, sob os mais variados pretextos e alegações.

Com os fatos relatados, esse ressentimento se exacerbara, e passara a trabalhar mais fortemente em seu espírito, desencadeando em breve, já sob as nossas vistas, nova crise psicótica, iniciada pelo mesmo modo que a anterior: insônia (quase invencível), introversão, isolamento, solilóquios, irritabilidade incontida, risos imotivados, gestos descomedidos e extravagantes. Interrogada, mantinha-se em mutismo, ou respondia coisas desconexas, metade em alemão, metade em português.

Certa noite, em dado instante, arremessara alguns objetos de arte, e também jogara ao vaso sanitário duas ou três jóias de valor, presentes do esposo.

Na manhã seguinte a esses fatos encontramo-la um pouco mais abordável. Ao contrário do que se esperava, admitiu facilmente que estivera enferma e aceitou sem relutância a idéia do eletro-choque em casa, terapêutica a que se submeteu passivamente, e com que se obteve êxito pleno em menos de 20 dias (seis aplicações).

Desta vez a recuperação fora integral: voltara a ser a mesma de antes, segundo o testemunho dos próprios familiares, e até mesmo o seu ressentimento contra o esposo parecia ter sido superado.

De tal modo se consolidara a sua cura, no curso dos meses seguintes, que o marido se encorajara a empreender em sua companhia uma viagem à Europa, para rever parentes e amigos, desejo que de há muito alimentava e que pôde, enfim, concretizar, sem nenhuma dificuldade. Mas foi justamente durante essa estada no estrangeiro que ele, antigo hipertenso, viu-se acometido por um íctus, tendo vindo a falecer. Um dos filhos do casal embarcou então para o país em que se dera o óbito e trouxe de volta à paciente, que, entretanto, reagira ao acontecimento como qualquer pessoa normal. Isso se verificou em princípios de 1948. Em meados desse mesmo ano, a paciente perdia o pai, também subitamente, e resistira a esse novo golpe, sem apresentar qualquer manifestação anormal. Por essa época, entrara em menopausa franca, não mais reaparecendo os catamênios.

Mas em princípios de 1949, próximo à data de aniversário natalício do marido, começou a queixar-se de insônia, e a sentir-se nervosa, irritada e, pouco e pouco, foram ressurgindo os sintomas descritos, configurando um quadro análogo aos anteriores. Mas agora fazia alusões também à tentativa de envenenamento, recusando a alimentar-se (o marido sentira-se mal após copiosa refeição), e tornara-se mais violenta e agressiva, razão pela qual tivemos que recorrer à internação, o que foi feito na Clínica Santo Inácio. Submetida então a nova série de seis eletrochoques, apresentou remissão total em menos de 30 dias.

Tinha consciência perfeita do estado mórbido, que, entretanto, continuava a relacionar ao climatério, descrevendo-nos suas vivências retrospectivas como algo semelhante a “uma cena” ou a “um sonho”, tudo muito estranho e variado, até jocoso algumas vezes, e quase nunca desagradável.

Essa paciente não mais apresentou, desde então, quaisquer distúrbios e leva hoje vida perfeitamente normal, reintegrada em sua personalidade anterior e como se nunca estivera enferma.

Pensamos, por todo o exposto, que esse caso possa ser também interpretado como reação esquizofrênica, desempenhando aqui o climatério o papel de mero agente catalisador ou sensibilizante e cabendo, em realidade, às vivências internas a função principal no aparecimento dos sintomas.

     O relato dos casos clínicos permite acompanhar a sua maneira de encarar o paciente e a preocupação com a colheita de uma história clínica com relação causa efeito.

     Admirado pelos psicopatologos e por seus admiradores, muitos ex-alunos, Augusto Luiz Nobre de Melo deixou marcada sua presença na história da psiquiatria brasileira. Solicitado a dar uma palavra sobre Nobre de melo, o Prof. J.R.Bueno assim o caracterizou: “Nobre era um homem elegante e muito culto e até hoje é o único autor brasileiro a citar  os  "conjuntos sintomáticos" de Carl Schneider”. E essa a imagem que fica um homem culto, estudioso da psicopatologia fenomenológica.

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