Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Dzembro de 2009 - Vol.14 - Nº 12

Psicanálise em debate

SOMOS TODOS EGÍPCIOS
RESENHA DO LIVRO “DERRIDA, UM EGÍPCIO - O PROBLEMA DA PIRÂMIDE JUDIA – de Peter Sloterdijk, Estação Liberdade, São Paulo, 2009

Sérgio Telles *
psicanalista e escritor

Assim como o filósofo judeu franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) escreveu elogios fúnebres para seus amigos pensadores Emmanuel Levinas e Paul de Man, o também filósofo (alemão) Peter Sloterdijk presta-lhe as devidas homenagens póstumas neste livro pequeno e instigante, a começar pelo título – Derrida, um egípcio – o problema da pirâmide judia.

“Egito” aqui diz respeito ao lugar de cativeiro do povo judeu, do qual fugiu sob o comando de Moisés em busca da Terra Prometida, onde se instalaria a nova aliança com o deus único.   Para o povo judeu, o Egito era o inimigo, o estrangeiro, o algoz, aquilo do que se tem de se libertar.  O Egito era o Outro, em sua mais intensa alteridade.

Para Sloterdijk, Freud reverte completamente esta perspectiva, em seu desconcertante “Moisés e o monoteísmo”, publicado em 1939, ocasião em que o judaísmo vivia seu momento mais difícil frente ao nazismo. Ali Freud afirma que Moisés era egípcio e que o próprio monoteísmo, tido pelos judeus como uma prerrogativa sua, era também uma prática religiosa egípcia criada por Akhenaton. Com isso, Freud despoja os judeus de sua figura maior (Moisés) e, em assim fazendo, também desconstrói o mito do êxodo. O egípcio Moisés e as idéias monoteístas é que faziam o êxodo, transplantadas no povo judeu.  Os egípcios - estrangeiros,  o  Outro - estão internalizados pelos judeus e constituem o cerne de sua própria identidade. “Moisés e o monoteísmo”- que suscitou tanta resistência por parte dos próprios judeus ao ser lançado e que durante todas estas décadas tem sido um texto pouco compreendido - seria uma hipótese psicanalítica sobre a formação da identidade do povo judeu, que ilustraria, por sua vez, os mecanismos mais amplos da constituição do sujeito forjada na relação com o Outro.

"Egito", explica Sloterdijk, também é a expressão mais acabada das civilizações ditas "imortalistas" segundo a classificação do pensador austríaco de esquerda Franz Borkenau, em oposição às "mortalistas". Borkenau propunha que as civilizações se sucedem como elos de uma cadeia, cada uma se colocando em oposição à anterior no que se refere à forma como encara a morte e a imortalidade.  No Egito o estado girava em torno da negação da morte de um único ser, o faraó, com a conseqüente elaboração de uma doutrina sobre a imortalidade. A civilização que a sucedeu – a grego-romana - estava mais voltada para a aceitação da morte e os esforços da coletividade eram dirigidos para valores seculares, como a política e a melhoria da vida neste mundo. E assim teria ocorrido desde então, na seqüência formada pelo cristianismo, renascimento e modernidade.

“Egito” é o lugar da pirâmide,  evidência incontornável da materialidade do signo, a representação do divino em irremovíveis e inabaláveis monumentos de pedra. É o contrário do deus inventado pelos judeus, um deus portátil que habita o livro, um deus não mais representado por monumentos intransponíveis (pirâmides) e sim por documentos (o texto sagrado). Esta nova versão de deus joga inesperada luz sobre toda uma problemática ligada a meios, transportabilidades, migrações. Se não é possível transportar deuses que moram em pirâmides ou templos colossais, é bem mais fácil  transportar um deus que habita um texto, por mais sagrado que seja. É assim que Regis Debray, o filósofo ex-guerrilheiro, mostra como as rotas de transporte adquirem uma importância religiosa até então insuspeitada.

Se a pirâmide em si não pode ser transportada, o mesmo poderia ser dito sobre seu lugar mais sagrado, aquele onde repousa a múmia do faraó? Este espaço não poderia ser – como afirma Boris Groys,  filósofo russo e um dos grandes críticos de arte contemporâneos - reconstituído em qualquer local , constituindo os recintos dos museus, onde estão recolhidos os objetos culturais a serem conservados, reverenciados, transformados em fonte de recolhimento e introspecção?

 “Egito” é a localidade onde um jovem judeu subiu  ao mais alto circulo do poder como interprete de sonhos do faraó, história retomada por Thomas Mann em seu  grande romance José e seus irmãos.

A relação entre judeus e egípcios, com todos os desdobramentos daí decorrentes acima referidos,  é o artifício usado magistralmente por Sloterdijk para homenagear a multifacetada obra de Derrida, articulando-a com as produções de Niklas Luhmann (tido como um dos pensadores mais importantes da atualidade), Freud, Thomas Mann, Franz Borkenau, Regis Debray e Boris Groys.  Desta forma, Sloterdijk consegue expor de maneira compreensível conceitos e temas caros a Derrida, como a différance, a indecidibilidade e a importância do encontro com o Outro.

Ao afirmar que  Derrida é um sucessor de José e Freud, representando a “terceira geração de intérpretes de sonho”, Sloterdijk reconhece que a desconstrução – procedimento  derridiano -   é um legitimo desdobramento da psicanálise

Ao terminar a leitura deste estimulante livro, ficamos desejosos de saber mais da obra de Derrida e entendemos que, como  ele, de certa forma, somos todos “egipcios”- descentrados, habitados pelo Outro, oscilando entre sonhos de imortalidade e o apelo realístico do carpe diem.    

 

Publicado no caderno “Cultura” do jornal “O Estado de São Paulo” em 22/11/2009


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