Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Novembro de 2009 - Vol.14 - Nº 11

Psicanálise em debate

REINA O CAOS NO TERRÍVEL REINO DAS MÃES - Uma leitura psicanalítica do filme “Anticristo” de Lars Von Trier (*)

Sérgio Telles *
psicanalista e escritor

 “Anticristo”, filme de Lars von Trier, foi considerado excessivamente bizarro e muitos se escandalizaram com as cenas de violência e sexo explícito.   

O enredo trata de um casal – Ele e Ela - cujo filho pequeno morre num acidente que ocorre enquanto os dois estão entregues ao gozo sexual. Isso desencadeia uma depressão na mãe, que é internada e medicada.   Ele, que é terapeuta, assume a condução do caso da mulher, contrariando a opinião do psiquiatra que a trata.   Usando técnicas da psicoterapia comportamental cognitiva, o marido explica para a mulher que ela está em processo de luto. O “tratamento” tem inicio na residência do casal, mas Ele acha necessário irem para a cabana que os dois possuem na floresta, pois concluíra que Ela ali localizara seus medos mais profundos, os quais, segundo sua linha terapêutica, ela precisa confrontar. Ela estivera com o filho na cabana pouco tempo antes, recolhida para escrever uma tese acadêmica, cujo tema era a matança de mulheres , focando especialmente a Idade Média e a queima de bruxas na fogueira. 

Ao chegarem à cabana, à qual chamam de Éden, as coisas começam a tomar um rumo diferente daquele previsto pelo marido. Ele mesmo começa a ter experiências pouco compreensíveis dentro da lógica racional que usa para explicar os sintomas da mulher. Vê uma corsa que dele se aproxima sem medo e que ao se retirar mostra não ter concluído o trabalho de parto de sua cria, que pende morta de seu corpo.  Logo mais, uma raposa com as vísceras à mostra lhe diz que “o caos reina”. As bolotas de carvalho, que não cessam de cair no telhado da casa, grudam em seu braço. Inexplicáveis rajadas de vento agitam as samambaias no mato.

Ao interromper o tratamento da mulher com o psiquiatra, Ele dissera que ninguém a conhecia melhor do que ele mesmo. Mas ao chegarem à cabana, Ela o acusa de ter tido pouco contato com ela mesmo e o filho, que tinham passado ali um longo período sem que ele aparecesse. Surpreso, ele responde que havia entendido que ela desejava ficar sozinha com o filho para escrever sua tese. Somente então ele toma conhecimento de que ela não finalizara o trabalho. É a primeira evidência de como estava equivocado ao se arrogar um conhecimento tão completo sobre Ela.

Ao perguntar à mulher porque teria ela parado a tese, ela responde que começara pesquisando as torturas sofridas pelas mulheres tidas como bruxas, mas havia desistido ao constatar que as mulheres eram de fato poderosas e capazes de destruir os homens. O marido interpreta erroneamente que ela teria se identificado com os agressores das mulheres. Ele não se apercebe que Ela está identificada com as próprias bruxas.

Enquanto trata a mulher, Ele encontra as anotações por ela abandonadas sobre a tese, que indicam sua desagregação mental. Encontra também fotos do filho que ela tirara durante aquele período e nota que a criança está sempre com os sapatos trocados. Isso esclarece um dado até então inexplicado que aparecera da autópsia do filho. Com a exclusão das lesões próprias da queda ao solo, nada havia sido encontrado no corpo da criança, além de uma anomalia óssea em seus pés, de causa desconhecida. Ele conclui que durante muito tempo Ela havia colocado deliberadamente os sapatos trocados nos pés do filho, a ponto de provocar a deformidade detectada na radiografia.

Somente então Ele entende que Ela  tem um problema muito mais amplo do que ele imaginara. Ao invés da esperada reação de luto à perda real do filho - algo compreensível, mensurável, descritível em termos de fases - Ela já estava gravemente perturbada muito antes, mergulhada num mundo delirante, identificada com feiticeiras poderosas. Ao invés da mãe amorosa que chora a morte do filho, imagem pressuposta por Ele, constata que Ela era uma mãe que torturava o filho.

Sem mais a explicação fácil do luto pela perda do filho, Ele e Ela se deparam com a loucura e seu mundo desconhecido e inexplicável em termos conscientes e racionais, frente ao qual os conhecimentos teóricos e práticos dele se revelam insuficientes. Instala-se então entre eles uma luta de vida e de morte.

Depois de atingi-lo nos genitais e mutilar os seus próprios órgãos sexuais, Ela tenta matá-lo. Ele consegue escapar e a mata, queimando seu corpo numa grande fogueira, exatamente como ocorria com as bruxas na Idade Média. 

Ao iniciar seu caminho de volta para a cidade, é surpreendido pelos animais - a corsa, o corvo e a raposa - bem como por uma multidão de mulheres, que descem pela montanha e passam por ele como fantasmas. Ele parece fundido com a natureza, como antes, em suas técnicas terapêuticas, sugerira que Ela fizesse.  Ele, como Ela, sucumbiu à psicose.

Embora o filme tenha uma grande riqueza de conteúdos a serem interpretados, a começar pelo título de amplas ressonâncias religiosas e filosóficas (Nietzsche), vou me deter naquilo que me parece ser o ponto central - o infindável conflito entre homens e mulheres, evidenciado já no tema da tese da mulher e plenamente concretizado na relação do casal.

Para a psicanálise, a destrutividade e a sexualidade são as duas forças em permanente conflito que movimentam o psiquismo. Elas são simbolizadas e estruturadas em dois momentos cruciais - nas vivências primárias com a mãe e, posteriormente, na configuração triangular edipiana. Para que a transição do primeiro para o segundo momento possa chegar a bom termo, é imprescindível que o sujeito passe pela castração simbólica, que o faz sair da relação indiscriminada e fusional com a mãe e aceitar o outro, com suas diferenças, entre elas e da maior relevância, a diferença sexual. Cada sexo passa de forma especifica por este processo.

Em função deste contexto, no inconsciente o homem tem dois motivos para temer a mulher. O mais recente em termos de desenvolvimento é o decorrente da angústia de castração.  O homem teme a mulher, ou seu genital, pois sua visão evoca a castração, sendo, segundo Freud, justamente este terror o que provoca a ereção masculina – uma reafirmação tranqüilizadora de não estar castrado.

O outro motivo do temor do homem pela mulher é mais arcaico, ela lhe provoca não o medo da castração e sim o medo da aniquilação, da morte.  Tal medo decorre de vivências muito precoces adquiridas pela criança no contato com uma mãe de fato ou imaginada por ela como não submetida à Lei, detentora de um poder absoluto, arbitrário e imprevisível, ao qual está completamente exposta em seu desamparo. É uma imago terrorífica da mãe, a mãe má, o seio mau de Melanie Klein, a mãe-bruxa, aquela que povoa o “terrível reino das mães” na acepção de Goethe no “Fausto”, expressão cuja pertinência não passou desapercebida a Freud. 

Assim, quando a raposa diz para Ele que “o caos reina”, estaria se referindo ao caos do reino das mães, o caos da ausência da Lei paterna, o caos das organizações mais primitivas do inconsciente que levam à psicose e que subjazem sob a superfície consciente, racional, lógica.

A enigmática cena final, na qual aparecem muitas mulheres na montanha onde Ele está, talvez indique que, apesar de ter ele se livrado da mulher-bruxa, não pode mais escapar de seu poder, que retorna multiplicado. Não lhe resta mais saídas, está aprisionado no reino das mães, da natureza, da violência e da loucura.

Essa seria a vertente masculina do conflito, que é a mais explicita no filme. Do lado feminino, vemos que Ela expressa uma problemática fálica ao atacar os genitais do marido e se mutilar, além de se mostrar inteiramente identificada com a mãe bruxa pré-edipiana. 

Embora Ela já apresentasse sintomas decorrentes da identificação com as bruxas, “O Anticristo” mostra como o trauma (a morte do filho) desestrutura completamente o casal , que regride de uma relação mais estável para uma disputa fálica pelo poder, involuindo até chegar aos modelos mais arcaicos e assustadores da relação com a mãe-bruxa, o que desencadeia o embate final. 

 Ao reatualizar em pleno Século XXI o ritual medieval da queima de bruxas, Trier mostra a atemporalidade dos conflitos inconscientes que atormentam a humanidade, plasmando a sintomatologia individual, criando mitos e determinando até mesmo a própria História.

Hoje, ao vermos o episódio medieval da caça às bruxas, reconhecemos claramente como foram ali atuados medos arcaicos inconscientes contra a mãe má. Que fantasias inconscientes estaríamos encenando atualmente no palco da História e que só serão assim reconhecidas pelas futuras gerações?

Trier defende Freud e a psicanálise de maneira explicita ao mostrar as limitações da terapia comportamental cognitiva frente a complexidade da mente humana.

 

(*) Uma versão mais condensada deste artigo foi publicada no suplemento “Cultura” do jornal “O Estado de São Paulo”, em 04/10/2009


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