Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Fevereiro de 2009 - Vol.14 - Nº 2

Psiquiatria Forense

A PARTIR DO CASO DA ADVOGADA BRASILEIRA NA SUÍÇA

Hilda Morana, PhD

Não se pode provocar um linchamento moral nesta pessoa. Não sabemos nada sobre a sua história pessoal, ou as condições que a levaram a agir como agiu.

Como psiquiatras, devemos nos abster de divulgar comentários sobre essa moça e ensinar  as pessoas a respeito dos possíveis  transtornos que poderiam estar ocorrendo com ela.

(estes foram alguns dos comentários dos colegas na Lista Brasileira de Psiquiatria).

 

Neste breve artigo gostaria de chamar a atenção para os diversos aspectos psiquiátricos da mitomania.

Antes de tudo é necessário diferenciar mentira da mentira patológica, tal qual considerada pela psiquiatria.

A mentira pode ser  normal em  crianças até certo ponto, contudo, nem sempre é patológica nos adultos. A verdade também pode causar danos se usada com propósitos egoístas e  destrutivos. A avaliação da mentira deve ser considerar a partir de sua motivação, seus objetivos e suas circunstâncias, não devendo ser avaliada apenas sob a ótica da moralidade.

 

CONDIÇÕES PSIQUIÁTRICAS ONDE O SINTOMA DE MITOMANIA PODE OCORRER.

1- MITOMANIA COMO SINTOMA: 

A mitomania é um sintoma caracterizado por ideação fantasiosa de uma história ou de um personagem. Os sujeitos têm a propensão a contar histórias e mentiras fantásticas, apenas como fruto da imaginação. A pessoa tem consciência de que sua história é falsa, mas é capaz de reproduzi-la de forma quase idêntica quantas vezes for necessário. Costumam imaginar uma história fantástica ou várias delas, com a finalidade de ganho pessoal. Os ganhos podem ser apenas para auto-valorização. O indivíduo mente e acredita na própria mentira, sem crítica alguma. Normalmente são pessoas que se vangloriam, imaginando-se ricas, possuírem autoridade, serem famosas, etc., mas quando são confrontadas com a realidade, simplesmente ignoram os argumentos contrários e, com freqüência passam a contar novas mentiras.

A mitomania ocorre mais freqüentemente em transtornos de personalidade (sociopática, esquizotípica, histriônica, personalidade imatura, etc.), na histeria grave, em retardo mental leve e em quadros maníacos.

 

Freqüentemente, mitomania é confundida com o delírio. De fato, a ficção mitômana é similar ao delírio, pois envolve concepções de grandeza, atribuíveis à intensa necessidade de apreço, com teor muito variável – atribuição, a si mesmo, de ascendência familiar excepcional, de capacidades e feitos extraordinários. Essas fabulações são mantidas, durante tempo variável, e podem se acompanhar de conduta delituosa, como o exercício ilegal de certas profissões e prática fraudulenta. Com outro teor, envolve acusações graves contra terceiros. É comum a queixa de abuso sexual ou violência, na qual o mitômano se apresenta como vítima, com sérias conseqüências para a pessoa acusada, em geral inocente. O mitômano sustenta suas alegações com suficiente plausibilidade, a ponto de convencer a Autoridade Judiciária ou Policial. Só as inconsistências, que transparecem à medida que se desenrola a ação judicial, levam à conclusão de que se trata de mitomania.

 

2- TRANSTORNO HISTRIÔNICO:

Neste prevalece o egocentrismo, a baixa tolerância à frustrações e a necessidade de fazer com que todos dirijam a sua atenção para eles próprios. Esse transtorno pode apresentar tendência à bipolaridade do humor, diferenciando-se das formas de transtornos afetivos puros. Na realidade, o que ocorre neste transtorno, é a elevada psicoplasticidade, podendo o quadro clínico apresentar-se, ora como excessiva manifestação de sintomas somáticos e psíquicos, ora com intensa carência de iniciativa. Nos casos graves pode ocorrer sintoma de  mitomania (como p.e. a formação fantasiosa de um personagem).

Em sujeitos com transtorno histriônico da personalidade, ressentimento ou rancor contra terceiros nutrem as fantasias patológicas. As concepções podem ser, de início, intencionais e conscientes, mas logo se revestem de convicção de realidade, para o próprio sujeito.

Em casos onde os maridos ou companheiros abandonam o lar, é freqüente que histriônicas criem uma história fantástica de terem sido abusadas sexualmente, assaltadas, onde o resultado foi a morte de seus filhos. A investigação criminal revela que a própria mãe foi quem matou o seu filho, e a história psiquiátrica identifica a condição de transtorno da personalidade com sintomas de mitomania.

3- “Pseudologia fantástica” da tradição germânica ou “mitomania” da Psiquiatria Francesa, e ainda, mentira patológica, são denominações diferentes para o mesmo transtorno.

Transtorno “factício” ou Síndrome de MÜNCHAUSEN apresentam também  os sintomas de fabulação semelhantes aos dos anteriores, mas com características de simulação de doenças auto-infligidas.

Contudo, alguma distinção é feita por alguns autores, embora se deva considerar que o dinamismo é sempre o mesmo, ou seja, de ganho pessoal. 

 

PSEUDOLOGIA FANTÁSTICA – É uma tentativa de impor as próprias fantasias aos demais, para despertar admiração e ser valorizado. O paciente faz construções fantasiosas, extraordinárias e incompatíveis com a realidade. É comum o sujeito atribuir-se papéis proeminentes. O indivíduo diz ser notável, de linhagem aristocrática, dotado de grande riqueza, vangloria-se de possuir conhecimentos especiais sobre certos temas e assume, como na paranóia, papel profético ou condutor. Todavia, em situações de confronto, tenta evadir-se, falseia as informações e demonstra maior inconsistência de comportamento do que o sujeito paranóico. Este, sempre se sacrifica por suas idéias.

 

MENTIRA PATOLÓGICA – Tendência patológica para mentir, raramente restrita a um único evento. Acostuma-se a mentir por mentir, sem propósito lógico algum. O sujeito mente mesmo em situações onde não haveria nenhum ganho palatável.

 

MITOMANIA

Seria uma condição mais grave, envolvendo um transtorno mais acentuado de caráter. Pode ocorrer por acusações difamatórias contra terceiros. Em geral, as pessoas acusadas têm algum tipo de relacionamento com o mitômano. A mitomania acusatória ou difamatória é comumente uma variedade do transtorno anti-social da personalidade, traduzindo falta de consideração pelos sentimentos alheios e prazer mórbido de ferir e prejudicar o próximo. Mas também ocorre a mitomania acusatória no transtorno histriônico da personalidade, neste caso  como resultado de ressentimento ou frustração com outra pessoa.

 

 

SÍNDROME DE MÜNCHAUSEN ou   PATOMIMIA.  A síndrome descrita em 1951 faz alusão ao barão alemão KARL FRIEDRICH HIERONYMOUS (1720-1797), que lutou a serviço da Rússia contra os turcos em 1772. Após a guerra, o barão costumava contar histórias fantásticas e fantasiosas sobre a guerra e seus atos heróicos, reunidos e publicados por G. A. Burger.

 

(Entre nós, não sei por que chamaram o transtorno factício pelo nome deste barão que nunca inventou uma história de doença, nem mesmo de um simples resfriado. Enfim, coisas da psiquiatria...).

É um transtorno factício que consiste em um padrão de conduta de constante imitação de doença onde o paciente se mostra aguda e dramaticamente doente. Tem a  habilidade de mimetizar sinais e sintomas de forma a necessitar de internações prolongadas, procedimentos diagnósticos invasivos, longo tempo de terapia com as mais variadas classes de drogas e cirurgias. Ocorre a  produção intencional de sinais e sintomas físicos ou psicológicos, sem que o paciente obtenha algo em troca, como ganho financeiro, liberação de responsabilidade legal, ou ainda, melhora do bem-estar físico.

 

 

Síndrome de MÜNCHAUSEN por Procuração, caracterizada pelo abuso infantil, de idosos e de deficientes mentais e físicos. Normalmente ocorre em adultos que forjam sintomas, não em si mesmos, mas provocando lesões ou intoxicações em crianças, em geral seus próprios filhos, dirigindo-se a centros médicos para consulta. Posteriormente, descobre-se que os sintomas ou lesões encontrados nas crianças eram infligidas pelos próprios adultos. Em geral, esse quadro relaciona-se com pessoas histriônicas ou anti-sociais. Em exame superficial, são consideradas delirantes, mas esta conclusão é equivocada.

 

(Mais uma vez, entre nós,... por que transtorno por procuração? Não é a mãe, ou o adulto que provocou as lesões e depois mentiu dizendo que fora vítima de algo terrível, ou qualquer história semelhante? Então por que por procuração?).

 

 

ASPECTOS FORENSES

É muito freqüente que a mitomania seja confundida com concepções delirantes, contudo a personalidade de sujeitos mitômanos é marcada por intensa insensibilidade ao outro.

A implicação jurídica principal advém do dano que essas ficções patológicas acarretam a outras pessoas. É difícil, sem exame criterioso e perícia semiológica, distinguir entre as concepções da mitomania e os delírios psicóticos. Entretanto, este passo é fundamental, tanto para a verificação da procedência dos fatos denunciados, quanto para a avaliação da imputabilidade penal. O diagnóstico depende, portanto,  da perícia semiológica.  Em dúvida, o perito pode realizar entrevistas em série e observação indireta do comportamento, em ambiente apropriado.

A Mitomania pode aparecer principalmente nas ações cíveis indenizatórias e ações penais por homicídio ou por lesão corporal.

 

A imputabilidade vai depender do diagnóstico psiquiátrico. Se for histeria ou deficiência mental leve pode ir para a semi-imputabilidade, dependendo do caso.

Se for Transtorno da Personalidade, seja histriônico, esquizotípico ou mesmo anti-social provavelmente vai ser plenamente imputável.

 

TRATAMENTO

Na  mitomania  a orientação é ir se desfazendo gradualmente a mentira patológica. Fornecer ocasiões para que a própria pessoa possa retificar a sua histórica fictícia.

A mitomania  é refratária a tratamento medicamentoso.


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