Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

Outubro de 2009 - Vol.14 - Nº 10

Farmacoterapia

DO LÍTIO AO HALOPERIDOL ou a psiquiatria rompe os “grilhões do passado” e começa a deixar os manicômios para trás...

J. Romildo Bueno

A história de década que mudou a psiquiatria em seus fundamentos, na fatalidade de seus diagnósticos e na quase nem uma especificidade de seus tratamentos começa com o lítio e vai terminar com o advento dos burtirofenônicos – haloperidol -.

Apesar do trabalho inicial de Cade em 1949, o estudo sistemático sobre a eficácia do emprego de carbonato de lítio em doença maníaco-depressiva e depressões unipolares começa com o grupo de Mogens Schou que publica em 1954 -  “Treatment of manic psychoses by  administratrion  of Lithium salts” (J. Neurol. Neurosurg.Psychiat. 17: 250, 1954). Nove anos mais tarde, Schou publica a primeira revisão sobre os efeitos profiláticos do lÍtio - “Normothymics, ‘mood normalizers’ “ (Brit. J. Psychiat 109: 803, 1963)

A insistência de Schou, Baastrup, Coppen, Magnusson, van Praag, Angst, Grof  e outros, fez com que os sais de lítio fossem aceitos quinze anos após o primeiro trabalho,  como “terapêutica da mania, profilático da psicose maníaco-depressivo e preventivo das depressões unipolares por diminuírem a intensidade e a duração de sintomas depressivos e prevenirem viragens maníacas” em 1969, o que torna o lítio um dos medicamentos mais estudados em clínica psiquiátrica moderna...

Acontece ser os sais de lítio medicamentos órfãos, isso é não podem ser patenteados, daí o breve e baixo interesse manifestado pela indústria farmacêutica em sua divulgação e comercialização.

A sub-utilização e as incorretas indicações do lítio em nosso meio contribuem ainda mais para que seu uso seja reduzido, mesmo em condições clínicas em que são indicação preferencial.

As desculpas oferecidas pela sub-utilização de lítio prendem-se à incidência de efeitos colaterais sendo a nefrotoxicidade o mais temido deles. Isso exige que se faça uma cuidadosa avaliação clínica dos pacientes, incluindo função tireóidea, função hepática, avaliação cárdio--vascular e principalmente a avaliação das funções renais. Aferições de uréia, creatinina, fosfatos devem ser acrescidas de avaliação do Rítmo de Filtração Glomerular – RFG – cujos resultados podem levar à medida do clearance de creatinina.

Intoxicações crônicas por sais de lítio levam à destruição de néfrons e, por essa razão, devem ser detectadas precocemente com monitoração da função renal. Naquelas agudas, é formalmente contra-indicado a utilização de saluréticos e os pacientes devem ser tratados com diuréticos osmóticos do tipo manitol e xantinas.

Além disso, o lítio pode causar hipotireoidismo com ou sem bócio e que pode exigir reposição hormonal.

A incidência de efeitos colaterais não é de monta a excluir o lítio dentre os mais eficazes recursos terapêuticos disponíveis para o tratamento da doença maníaco-depressiva e das depressões recorrentes ou cíclicas. Como é bem sabido,  os outros “normotímicos”, “eutímicos” ou “estabilizadores do humor” também apresentam uma constelação de reações indesejáveis relacionadas  ao seu emprego terapêutico,  além de não serem nem minimamente testados quanto à eficácia quando comparados com o lítio para essa específica indicação clínica.

  No que tange ao seu uso em depressões recorrentes ou cíclicas, reduzindo a intensidade e a duração dos episódios depressivos, os sais de lítio são, juntamente com a levotiroxina, os mais eficazes potencializadores dos efeitos dos antidepresssivos.

Como pode ser vista, a trajetória do carbonato de lítio nos primeiros vinte anos de seu uso terapêutico reflete uma árdua batalha para ter seus efeitos reconhecidos com pesquisas bem realizadas respondendo cada exigência ou objeção dos opositores. Podemos afirmar que a teimosia de Mogens Schou, a partir da pequena Aarhus conseguiu o apoio primeiro dos países escandinavos, a seguir dos franceses, dos alemães e dos canadenses e o núcleo de maior resistência foi representado pela psiquiatria anglo-americana onde a substância só foi plenamente aceita na década de setenta.

Aubrey Lewis e Michael Shepherd chegaram a denominar o uso de lítio em psiquiatria de dangerous nonsense!

Os trabalhos de Schou & Baastrup e os Angst & Grof que demonstraram a ação profilática do lítio em mais de 250 pacientes bipolares  em estudo aberto chegou a merecer o epíteto de anti-ético pelo stablishment anglo-americano. Lader sugeriu que a escolha de pacientes que já haviam apresentado diversas fases maníacas falseava os resultados visto que “esses pacientes tendem a diminuir as fases maníacas com o passar dos anos(!)

Essa afirmação jamais foi testada e/ou confirmada...

Em 1967, Schou e seu grupo iniciaram estudo duplo-cego para confirmar os efeitos preventivos do lítio na doença maníaco-depressiva, os resultados foram apresentados ao final de 1969 e publicados  em The Lancet no ano seguinte. Para conferir a elegância do estudo segue a referência: Lancet 2: 326-330, 1970.

A partir daí o lítio foi aprovado plenamente e psiquiatras americanos de renome como Coppen, Kline, Shopsin, Fieve, Gershon reproduziram os estudos e referendaram o emprego clínico do lítio nas doenças do humor vital.

Nas duas visitas que fez  ao Brasil como nosso convidado, mostrou-se não apenas um defensor do uso de lítio, mas um difusor de tal prática: na primeira vez, além da participação oficial no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, dispôs-se a discutir o assunto – doença maníaco-depressiva e sua prevenção - em dois eventos não oficiais, realizados em saletas gentilmente cedidas pela organização do Congresso e, na segunda  ocasião deu um módulo no Curso de Pós-Graduação em Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria-UFRJ sobre a utilização clínica de sais de lítio, sua avaliação, a importância das dosagens plasmáticas do sal e os fracassos que tinham sido já catalogados, uma primeira lista de indicações não eletivas para seu uso.

In ilo tempore, os Congressos Brasileiros de Psiquiatria primavam pelo convite feito a figuras destacadas da clínica e da pesquisa psiquiátricas, os “simpósios da indústria” ainda não floresciam...

Sempre espantei-me com a perseverança de Schou que, ao lado de Max Hamilton, pareciam dois quixotes vagando não em La Mancha, mas numa selva inicial com crescentes árvores de vaidade pessoal, de açodamento na apresentação de resultados, no recurso cada vez mais freqüente, quase histérico, de depender de elaboradas constatações estatísticas para a defesa de um deserto pensante, sem hipóteses, nem discussões, só resultados significantes: assistia ao início do publish or perish e disso nem tinha me dado conta...

A outra figura destacada dessa época foi Paul Janssen, um belga que além de nos deixar o haloperidol, legou-nos uma fundação dedicada ao incentivo da  pesquisa em psicofarmacoterapia.

Em meados dos anos cinqüenta, Janssen separou-se do Prof. Heymans com quem trabalhava no Instituto de Farmacologia e Terapêutica na Universidade de Ghent e, com um empréstimo concedido pelo pai, funda seu próprio laboratório de pesquisas que depois transformar-se-ia  na Janssen Pharmaceutica em Liège.  Dedicou-se a pesquisar os derivados piperidínicos da meperidina, buscando novos hipnoanalgésicos – fentanyl (Palfium), difenoxilato (Lomotil)  são algumas  de suas descobertas – e, em 1958 sintetiza o R-1625 que viria a ser mais conhecido como haloperidol. A seguir aparecem o droperidol e o bromperidol.

Na seqüência dedica-se às difenilbutilpiperidinas que são compostos de efeito mais demorado: pimozida com vida média de 24 h, penfluridol com cerca de 7 dias por via oral e fluspirilene, sob a forma de micro cristais injetáveis por via IM e que em nossas pesquisas feitas no IPUB mostrava a manutenção do efeito entre 15 e 20 dias.

Modificações químicas adicionais na molécula das butirofenonas conduziram Janssen à síntese da risperidona em 1984.

Como se pode notar, esse barão belga-flamengo explorou os neurolédticos, os hipnoanalgésicos, os depressores do peristaltismo intestinal e chegou até a risperidona, o segundo anti-psicótico considerado atípico, logo atrás da clozapina.

Quase todos os medicamentos de uso corrente em psiquiatria ou foram sintetizados na década de 50 ou tiveram seus estudos iniciados nessa época. Nos últimos quase 60 anos, o progresso das intervenções terapêuticas deu-se de forma horizontal: cada um e todos os laboratórios farmacêuticos estiveram mais dedicados a terem produtos com mecanismos de ação semelhante, imitando o concorrente e investindo mais na diminuição dos efeitos colaterais que no aumento da eficácia terapêutica, desistindo de procurar novas avenidas, de pesquisar novos mecanismos de ação e, assim, deixando de contribuir para o melhor conhecimento das causas se não das doenças, as menos de sua constelação sintomática...

Acredito que esse ciclo esteja no final, uma nova forma de pensar sobre o adoecer mental já desponta  em hoizontes próximos.

Mesmo os temíveis efeitos adversos já eram conhecidos dos velhos anos cinqüenta; a discinesia tardia foi primeiro descrita por Engelhardt em 1959...

Nesse ponto de transição – nosso Zabriskle Point – onde os medicamentos que atuam sobre o comportamento já estão entrando na contracultura sendo contestados por mães, mestres, sacerdotes e cientologistas (?!?)  parece chegada a hora de se buscarem novos medicamentos que atuem na função intra-celular:  sem dúvida,  a interação medicamento-receptor desencadeia uma série de eventos intra-celulares que modificam a própria função do receptor.

Estudos de farmacogenômica não apenas sugerem tais ocorrências como destacam influências epigenéticas nos mecanismos de ação dos medicamentos utilizados para o tratamento e prevenção da doença maníaco-depressiva e das depressões recorrentes em suas diferentes formas de apresentação clínica.

Estes estudos parecem sepultar o conceito de um espectro bipolar e, mais relevante, o de um espectro das esquizofrenias  abrangendo desde ligeiras modificações circadianas até formas graves e fatais, seja pelo estupor, seja pela auto-aniquilação.

Às alterações homeostásicas somam-se aquelas alostásicas e, de seu equilíbrio, é  possível uma nova definição de SAÚDE, uma que envolva a qualidade do tempo vivido e a plena capacitação do padecente para o exercício de suas funções sociais e suas atividades laborais que se encontram-se drásticamente diminuídas nas doenças do humor vital e nas esquizofrenias.

A noção de tempo vivido merece um parênteses por ser um conceito da psicopatologia francesa e completamente olvidado em nossos dias de classificações ateóricas... o tempo do deprimido não flui e mal se arrasta o que o leva  à vivência da eternidade do sofrimento, à desesperança sem desespero, à perda de sua condição humana que é marcada pelos ritmos circadianos e pelos zeitgebers externos; perdido o tempo, não há o que se buscar já que o futuro se plasma na mesmice do passado vivido como culpa e fracasso. O discurso do deprimido pontua essa condição, nós é que não lhe emprestamos uma escuta cuidadosa, talvez por que não mais se lê Minkowski.

Ou, chi lo sà, o estudo da psicopatologia  do deprimido e do esquizofrênico  tenha sido ofuscada pelo sucesso dos antidepressivos e dos anti-psicóticos de primeira e de segunda gerações.

O progresso médico tem desses paradoxos, investiga-se mais onde a luz incide, deixando na penumbra os outros tópicos pertinentes...

De uma forma ou de outra, a psiquiatria moderna nasce na década de cinqüenta coetaneamente com a aparição dos psicotrópicos: lítio, inibidores da MAO, fenotiazínicos, tricíclicos iminodibenzílicos, benzodiazepinas,  butirofenônicos, em outras palavras, o arcabouço de nossa práxis atual está se tornando sexagenário.

Mesmo as primeiras hipóteses sobre o funcionamento dos sistema nervoso central na vigência de doença mental foram lançadas nessa época e, o que é lamentável, esses sessenta anos têm testemunhado a construção de um sem número de hipóteses ad-hoc destinadas a preencher lacunas e oferecer explicações ex-post-facto às novas observações: ninguém criou uma nova hipótese!

Recentemente, quando na Dinamarca, li uma entrevista do prêmio Nobel Arvid Carlsson que admitia ser imerecido o “galardão conquistado” uma vez que seus estudos sobre a importância da dopamina nas disfunções esquizofrênicas caíram por terra!

Se nossos políticos (???!!!) tivessem ao menos um bilionésimo dessa honestidade este já seria o país do presente, enfim... deixa p’ra lá...

Nosso embate é pela psiquiatria e não devemos nos desviar... apesar das tentações...

A década seguinte, os anos sessenta, sedimentou a era dos psicotrópicos, ajudou a criar devaneios woodistockianos e levou os psiquiatras clínicos ao delírio de que tinham a cura das doenças mentais ao alcance da mão...

Em havendo interesse dos que me honram com a leitura, trataremos dela, caso contrário, mudaremos de assunto que não faltam e quosque abundat non nocere...

 


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