Volume 13 - 2008
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Novembro de 2008 - Vol.13 - Nº 11

Psicanálise em debate

O CONFORMISTA, de Bernardo Bertolucci (1970)

Sérgio Telles

Tido como uma das obras-primas de Bernardo Bertolucci, O CONFORMISTA, baseado no romance homônimo do Alberto Moravia, está disponível em DVD, após ter sido relançada uma nova cópia nos cinemas europeus em meados deste ano. Além do requintado visual do filme, que recria  cuidadosamente a década de 30 e a ascensão do fascismo em Roma, o filme é um interessante estudo sobre o papel da ideologia como suporte identificatório para uma estrutura de ego desorganizada  e frágil.

Bertolucci não segue a estrutura linear do romance de Moravia, preferindo montar um quebra-cabeça estruturado em flashbacks.

O filme inicia com Marcello Clerici recebendo um telefonema que o coloca em perseguição de um inimigo do regime fascista a quem deve assassinar. Enquanto seu comparsa Manganiello dirige o carro, Clerici rememora em flashbacks sua trajetória até aquele momento. .

Vê-mo-lo em longas conversas com seu amigo cego que é  ideólogo do partido fascista.  A cegueira do ideólogo expressa a clara critica de Bertolucci às idéias por ele (ideólogo) defendidas. Numa expressão de identidade confusa e frágil, Clerici pergunta ao amigo o que é ser “um homem normal”. Este lhe diz que “um homem normal” é aquele que volta a cabeça para olhar o traseiro de uma mulher que passa, é aquele que gosta de estar entre iguais, é aquele que se perde na multidão, que não tolera o diferente. Clerici diz querer ser “normal”, para isso quer se casar. Através do amigo, ingressa no partido e se dispõe a prestar-lhe qualquer serviço.

O coronel que recebe Clerici no partido diz ser seu currículo excelente e que todos estavam bem impressionados, pois ele se apresentava voluntariamente para servir ao partido, o que era raro, pois na maioria das vezes as pessoas obedeciam às ordens do partido por medo ou por dinheiro. Após um período de observação, o partido lhe dá  uma tarefa importante – assassinar o prof. Quadri, um importante intelectual inimigo do regime, que fora professor de filosofia de Clerici e que se exilara em Paris. Clerici não dá uma resposta imediata ao convite.

Um policial, Manganiello, é designado para acompanhá-lo na missão. Com ele, Clerici vai até a casa de sua mãe, uma mansão abandonada e decadente. Ali a encontra dormindo ao meio dia, dividindo a cama com vários filhotes de cão, uma sugestiva imagem de promiscuidade e indiscriminação, que logo se confirma com a conversa que se estabelece entre mãe e filho, em tons eróticos incestuosos. Ele pede que ela se cubra, pois está seminua, e ela, após beijá-lo na boca, lamenta ter um filho “moralista”. O filho está ali para levá-la a uma visita ao pai, internado num hospício.

Enquanto espera a mãe no jardim da mansão, Clerici conversa com Manganielo. Pergunta-lhe se acha  possível alguém ter uma infância normal naquela casa, tendo uma mãe viciada em morfina e explorada por seu motorista, misto de amante e fornecedor de droga. Pede então que o policial dê fim ao amante da mãe, o que Managaniello imediatamente realiza.  Isso parece fazer com que Clerici se decida a realizar a missão para a qual fora designado.

No hospício, Clerici encontra o pai louco, repetindo mecanicamente as palavras “violência e melancolia”, escrevendo algo sobre as relações entre o individuo e o estado, que deveriam ser harmônicas, indutoras de identificações recíprocas. Clerici avisa ao pai que vai casar-se, o que o pai mal registra. A seu pedido, a mãe se afasta para que ele possa ter uma conversa particular com o pai. Clerici então  o confronta, indagando se ele fora um torturador e assassino, o que o pai admite, para logo dele se afastar, chamando o enfermeiro, a quem solicita que lhe coloque a camisa de força.

Incumbido de matar seu antigo professor, Clerici dirige-se a Paris. Sua viagem para aquela cidade conjuga o objetivo de realizar sua missão política com a lua-de-mel, importantes passos para executar seu projeto de ser “normal”, como antes afirmava para o amigo ideólogo cego.

Casara-se sem entusiasmo com Giulia, que considera uma burguesa medíocre e mesquinha. Frente a sua relutância em cumprir com os rituais religiosos do casamento, deixa-se convencer ao ouvir dela que não deve levá-los muito a sério, pois “ninguém acredita mesmo neles”.

Ao se confessar, Clerici tem atitude insolente e desrespeitosa com o padre, a quem confidencia ter sofrido uma aproximação homossexual aos 13 anos, por parte de um homem mais velho, a quem teria então  assassinado. Recrimina o padre, que parece estar mais interessado na sodomia e considerá-la um pecado mais grave do que o próprio assassinato que estava confessando naquele momento. Provoca o padre ao ridicularizá-lo, ao casamento, à igreja, a Cristo, mostrando um desespero existencial avassalador. O padre, que até então o censurava, para a perplexidade de Clerici, absolve-o imediatamente ao ouvi-lo dizer que é um fascista e que agora luta contra os subversivos. Uma clara mostra da cumplicidade da igreja com o partido, dos usos que a ideologia política faz da religião.

Na viagem de lua-de-mel, no trem, sua noiva Giulia diz não mais ser virgem, pois há 6 anos era amante de um amigo do pai, que freqüentava sua casa desde sua infância.  Fora ele quem mandara a carta anônima querendo indispor Clerici com a sogra, levantando suspeitas sobre sua saúde, ao afirmar que seu pai enlouquecera por ser sifilítico. Com isso, o autor desmascara os valores “familiares” tão exaltados pelo fascismo.

Em Paris, Clerici tenta se aproximar do Professor Quadri e reconhece em sua mulher Anna uma prostituta de alto escalão, que vira na companhia de altas autoridades fascistas, em suas peregrinações para entrar no partido. Anna lhe diz que todos suspeitam ser ele um espião e se oferece sexualmente a ele, pedindo sua clemência.

Anna dá um tom permanentemente bissexual ao contexto, pois ao mesmo tempo em que se envolve com Clerici, se interessa por Giulia, como se vê na belíssima cena do baile e no quarto de hotel. No baile, Clerici já sabendo que suspeitam dele, tenta abandonar a missão, mas Manganiello o contem, dizendo ser demasiado tarde para tanto. O professor Quadri o submete a testes, nos quais aparentemente se convence de sua neutralidade política, mas, na verdade, ele e Anna  fogem, colocando Clerici e Manganiello em sua perseguição.

Na estrada, o carro do Prof.  Quadri é interceptado por um outro cujo motorista aparentemente está ferido. Ele desce para investigar o que acontece. Anna sabe que está sendo seguida por Clerici, cujo carro bloqueia a fuga por trás. Vários homens aparecem da floresta e apunhalam seguidamente o professor. Anna corre até o carro onde estão Clerici e Manganiello, e pede auxilio a Clerici, que nada faz,  assistindo impassível seu assassinato. Manganiello sai do carro e expressa seu desprezo por Clerici,  a quem equipara a outros “covardes”, como os judeus e homossexuais, etc.

A ação corta para quatro anos depois, quando vemos Clerici com sua filhinha, a quem ensina a rezar a Ave Maria, enquanto ouve no rádio as noticias sobre a queda de Mussolini. Giulia diz que o amigo ideólogo havia ligado e pedido para encontrá-lo no lugar de sempre. Giulia pede para Clerici não sair e pela primeira vez menciona saber de sua participação no assassinato de Quadri e sua mulher. Ao ser interrogada por Clerici, Giulia diz que Anna, talvez com o objetivo de separá-los, dissera que ele era do serviço secreto e estava tentando eliminá-los. Mais uma vez Clerici pergunta a Giulia o que ela pensava disto e ela responde que entendia ser o trabalho dele e que o assassinato do casal o teria feito progredir profissionalmente. Giulia insiste ser perigoso que ele saia às ruas naquele momento, pois poderia ser identificado como um homem do regime.

Mesmo assim Clerici sai. O tumulto político é simbolizado por apagões de luz, multidões nas ruas. Clerici encontra o antigo amigo ideólogo cego numa ponte e saem andando. Ao passarem por um beco, inadvertidamente Clerici ouve uma cena de sedução homossexual, na qual reconhece a fala e o texto da antiga sedução que sofrera na infância.  

Chocado, Clerici para, reconhece o antigo sedutor que até então pensava ter assassinado e que simplesmente recebera um tiro de raspão.

Neste momento, tal como o sistema político que caíra, Clerici também desmorona. Totalmente descontrolado, grita contra o sedutor atribuindo-lhe seus próprios crimes – o assassinado de Quadri e sua mulher Anna. O sedutor foge, debaixo de acusações de pederasta e fascista. Em seguida, Clerici passa a denunciar o amigo cego como fascista, que é levado de roldão pela multidão.

Quando esta se afasta, Clerici se encontra sozinho com o homossexual que estava conversando com o antigo sedutor e aparentemente a ele se entrega sexualmente.

 

Em função da loucura familiar, da experiência traumática da sedução homossexual e da fantasia de ter assassinado o sedutor, Clerici se sente diferente, constata sua não “normalidade”, sua identidade pouco definida e confusa sexualmente. Busca desesperadamente ser igual a todos, ser  “normal”.

Procurara se “conformar”, entrar na forma, ou seja, ter uma identidade estável e definida, para tanto se apoiando numa ideologia forte e violenta, que estabelece claros parâmetros e fortes repressões. 

O filme mostra como uma ideologia política pode ser usada como  apoio identitário por personalidades frágeis mal constituidas. Na hora em que o regime e a ideologia que o amparava se esfacelam, Clerici também se desorganiza psiquicamente, despersonaliza-se, desidentifica-se, confunde-se com o homossexual pederasta em quem simultaneamente projeta toda sua conflitiva psíquica e com o qual se identifica.

O final do filme é uma bom exemplo da cena traumática externa e atual que reatualiza catastroficamente a cena traumática infantil reprimida, provocando uma completa desestruturação psíquica pelo fracasso das defesas mantidas até então.

 

Como o filme foi relançado na Europa este ano, isso deu vez a muitas entrevistas com Bertolucci, quando foram levantadas interessantes questões, às quais não foram por ele dadas respostas diretas: quereria ele dizer que o fascismo e a ideologia direitista seriam uma defesa contra o homossexualismo? A desesperada luta de Clerici para ser “normal” era uma luta contra a homossexualidade? Ser “normal” é ser heterossexual? Seria esta uma tese homofóbica?


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