Volume 13 - 2008
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Novembro de 2008 - Vol.13 - Nº 10

Artigo do mês

Assistência à Saúde Mental em Natal-RN: O Confronto de Dois Modelos

Gustavo Henrique de Oliveira Caldas*
Maurício Roberto Campelo de Macedo**

1. Introdução

Na década de 1950, na Europa e nos Estados Unidos da América, o modelo de assistência manicomial começou a sofrer duras críticas, sobretudo em virtude do tratamento segregador dispensado aos pacientes psiquiátricos. No Brasil, críticas mais sistemáticas surgiram na década de 1970, dando início a um movimento político que exigia uma ampla reforma psiquiátrica. Gerado num contexto nacional que exigia mudanças políticas e institucionais profundas, no caminho da redemocratização do país, este movimento era parte de um projeto coletivo maior conhecido como “movimento sanitário”. Movimento que imprimiu sua marca na Constituição Federal de 1988, institucionalizando a noção de "direito à saúde" e a responsabilidade estatal de assegurar este direito. Este artigo confronta o modelo assistencial psiquiátrico hospitalocêntrico com a proposta reformista, partindo dos resultados de uma pesquisa realizada no âmbito de duas unidades assistenciais públicas: o hospital psiquiátrico Dr. João Machado (HJM) e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) II-Leste, sediados em Natal-RN.

As mudanças previstas nas diretrizes da atual política nacional de saúde, sua operacionalização, através da implantação de uma rede de serviços de saúde mental descentralizada, regionalizada, humanizada e integrada às outras redes de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), e sua difusão em escala nacional, constituíram um grande desafio político e operacional para o SUS. A “desinstitucionalização”, o “tratamento no território”, baseado num “projeto terapêutico”, e a “inclusão social”, são princípios básicos da reforma psiquiátrica. Eles estruturam a busca das identidades perdidas, o reforço da subjetividade e da criatividade individual e os laços sociais (sobretudo entre familiares e amigos). Para isso, incentiva a criação de novas práticas terapêuticas e institucionais voltadas para a recuperação e a reabilitação psicossocial.  Mudanças que implicam no rompimento com o modelo manicomial e na criação de serviços substitutivos, visando melhorar a qualidade dos cuidados aos portadores de transtornos mentais. Entre estas novas modalidades de serviços temos os CAPS, as residências terapêuticas, entre outras formas de organização da atenção.

Em Natal, o início do movimento pela reforma psiquiátrica teve repercussões que podem ser apreendidas por uma série de eventos e mudanças institucionais: em 1988, o "1º Seminário de Profissionais de Saúde Mental"; em 1992, a "I Conferência Municipal de Saúde Mental"; em 1993, a implantação de um "Programa de Saúde Mental", no Centro de Saúde de Pirangi; em 1994, a implantação do primeiro CAPS da cidade. Atualmente, Natal conta com cinco CAPS em funcionamento, com uma residência terapêutica, um ambulatório psiquiátrico, leitos psiquiátricos em hospitais gerais, entre outros dispositivos de atenção aos portadores de transtornos mentais. O HJM está passando por uma reforma na sua prática assistencial, atendendo às exigências do Ministério da Saúde.

Após treze anos da implantação do primeiro CAPS de Natal, resolvemos avaliar o funcionamento do CAPS II-Leste e do HJM, enquanto dispositivos assistenciais do SUS, no que tange à sua missão institucional, objetivos terapêuticos e inserção no modelo assistencial proposto pelas diretrizes do Ministério da Saúde. Assim, procuramos identificar avanços e obstáculos na operacionalização das propostas de mudança do modelo assistencial em saúde mental brasileiro.

 

 

2. Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado

A missão institucional do HJM é de prestar assistência hospitalar aos portadores de transtornos mentais graves, em fase aguda. Esta instituição presta três modalidades de assistência: ambulatório, pronto-socorro e internações. Ainda predominam os traços manicomiais, embora sua nova direção aponte para uma transformação. Mudanças lentas, pois a cultura asilar cristalizada nas ações cotidianas está arraigada no comportamento dos atores institucionais (profissionais, funcionários, usuários).

Quanto aos objetivos terapêuticos, o HJM segue as diretrizes do Ministério da Saúde, procurando evitar a primeira internação e reduzir ao mínimo o tempo de internação. As ações continuam restritas a cada profissional, sendo recente a adoção de objetivos terapêuticos por uma equipe multiprofissional. A participação dos familiares no tratamento se dá através de reuniões e visitas que estes fazem ao interno. Segundo testemunhos dos profissionais entrevistados, a maioria dos familiares não se envolve no tratamento: «a maioria dos familiares quer manter distância dos pacientes, alguns têm dificuldades sócio-econômicas no que diz respeito ao transporte (...) de certa forma, os familiares absorveram o modelo hospitalocêntrico». No entanto, outros depoimentos afirmam que «a família que acompanha o paciente no momento da internação, na maior parte dos casos participa ativamente do tratamento».

O HJM está passando por uma reforma arquitetônica e funcional para se adaptar ao novo modelo assistencial do SUS e observar as diretrizes da sua política de saúde mental. Neste contexto, deixaria de ser uma instituição “fechada”, para se integrar numa rede assistencial de Saúde Mental. As portas de entrada no sistema de saúde para o tratamento dos portadores de transtornos mentais seriam as UBS e, eventualmente, os pronto-socorros. Os mecanismos de referência e contra-referência garantiriam a integralidade e a continuidade da assistência, assim como o acesso ao hospital. Entre as mudanças propostas para o HJM, enfatiza-se o trabalho em equipe e medidas visando a desinstitucionalização e a cidadania. A reintegração dos internos nas famílias e na sociedade é considerada fundamental. Neste contexto, o tempo médio de permanência no HJM foi reduzido (32 dias) e os critérios de alta levam em conta a ausência de crises e a conseqüente estabilização do quadro clínico. Para evitar a institucionalização, preconizam-se a alta assistida, as reuniões familiares e as visitas domiciliares. Mas, os depoimentos dos profissionais atestam as dificuldades para operacionalizar estas propostas.

O modelo asilar resiste: o ritmo das reformas é lento, existem problemas graves de infra-estrutura, de recursos humanos, de desarticulação com a rede assistencial do SUS. A cultura manicomial é ainda muito forte, sobretudo entre profissionais e funcionários, a maioria destes afirmando desconhecer o projeto terapêutico do hospital. Apesar da tentativa de criar a figura do “terapeuta de referência”, todos indicam a ausência de vínculos entre os profissionais e os pacientes. Alguns afirmam que isto resulta da grande demanda que, inclusive, impediria a implantação da “alta assistida” para todos os pacientes. A ausência de um envolvimento global da instituição com o projeto de humanização foi considerada como problema: “estamos trabalhando o acolhimento na urgência e buscando a humanização. Contudo, o que se observa ainda são medidas individuais, de cada profissional”.

3. Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II-Leste)

O CAPS II-Leste tem como missão institucional cuidar dos portadores de neurose grave ou processos psicóticos, que perderam os vínculos sociais e com o trabalho. Constitui um dos novos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, assumindo o tratamento destes problemas no território, com os usuários inseridos no seu ambiente familiar e comunitário. Este CAPS presta várias modalidades de serviços: atenção psiquiátrica e psicológica (individual e em grupos), terapia ocupacional (oficinas de arte, como pintura, canto e dança; atividades corporais; rodas de conversa), assistência social (junto às famílias, previdência e instituições patronais). O CAPS também presta um serviço ambulatorial psiquiátrico para pacientes externos.

Além do problema de saúde mental, o CAPS II-Leste lida com o sujeito, sua história de vida, seu contexto familiar, social, cultural e de trabalho, o conjunto dos seus valores, desejos e perspectivas. O objetivo terapêutico reside na superação dos problemas psicológicos, na reconstrução da subjetividade e no reforço à autonomia, integrados num projeto que ultrapassa o plano individual. A reabilitação psicossocial e a luta contra o estigma e a cultura de exclusão são tão importantes quanto a psicoterapia ou a medicação. “Aqui, nós não negamos a loucura, mas buscamos o que existe além dela”. (...) “Se estamos discutindo a complexidade de tratar a pessoa portadora de transtorno mental, a gente tem que levar em consideração que os pacientes precisam viver, trabalhar, circular pela cidade, estabelecer outros vínculos, convivendo com outros setores como a igreja, a escola, a previdência social”. O projeto terapêutico é algo singular para cada usuário, além de susceptível a mudanças ao longo do tempo, considerando o quadro clínico, a relação com a família, o grau de autonomia, o que busca no CAPS e os recursos disponíveis. O CAPS II-Leste oferece um atendimento integral, multidisciplinar e humanizado, onde as famílias têm lugar de destaque e os próprios usuários são estimulados a se responsabilizar por seu tratamento. Os familiares participam do CAPS através de assembléias, do grupo de famílias, das festas, dos passeios e das decorações. Em casos mais graves, pode ser necessária uma reunião com a família para tomar decisões. “É preciso desconstruir a idéia de que só os profissionais têm respostas para o problema gerado no cotidiano”.

Quanto ao modelo assistencial, o CAPS II-Leste é uma instituição “aberta”, inserida no território da cidade, onde os usuários circulam livremente e seguem certas normas de convivência estabelecidas coletivamente (por todos os atores desta instituição: direção, profissionais, famílias, usuários). A maioria dos usuários do CAPS constitui uma demanda espontânea; alguns são encaminhados pelo HJM e outros pelas UBS. Mas, os depoimentos apontam dificuldades para a integralidade: “a necessidade de uma maior integração na rede de saúde mental, fortalecendo os vínculos entre as UBS, o CAPS e os diversos níveis de assistência, orientando os fluxos e facilitando encaminhamentos”. Todos os espaços do CAPS são locais humanizados, que promovem o acolhimento. O CAPS se contrapõe à lógica excludente e segregadora do asilo, mas para a desinstitucionalização do usuário é preciso estar atento ao seu tempo de permanência na instituição, responsabilizá-lo pelo tratamento, estimular os vínculos com a família e a comunidade. Mas, na falta de um suporte social adequado para reinserir os usuários na sociedade, o tempo médio de permanência é longo (2 anos e meio). “Devemos evitar que o paciente ache que o paraíso é o CAPS, uma vez que a sociedade é excludente e fique querendo permanecer na instituição. (...) “Os critérios de alta são: paciente estável, com seu horário bastante reduzido e com projeto terapêutico quase ou totalmente contemplado. Muitas vezes o próprio paciente nos indica a sua alta, dizendo que tem muita coisa para fazer em casa no dia em que não tem CAPS. Então se percebe a ocorrência da reinserção social”.

 

4. Considerações Finais

Nosso estudo revelou dificuldades de acesso e disponibilidade de serviços de Saúde Mental em Natal, além de problemas de integração à rede do SUS. O HJM enfrenta as marcas seculares do modelo manicomial, apesar da introdução de algumas inovações em busca de sua sobrevivência. O CAPS II-Leste enfrenta dificuldades de acesso, tempo de tratamento prolongado, demanda reprimida. O CAPS é um modelo aberto, em construção; muitas de suas práticas ainda se encontram em processo de estruturação. Mas, na ausência de uma política efetiva de reinserção social e no mundo do trabalho, os portadores de transtornos mentais permanecem vulneráveis a uma sociedade onde ainda persiste a velha cultura do estigma, da exclusão social e dos preconceitos; onde as representações sociais apontam que o “lugar do louco é no asilo”.

 

5. Bibliografia

1.       CAMPOS, T; FURTADO, J. (2006).  Entre a Saúde Coletiva e a Saúde Mental: um instrumental metodológico para avaliação de rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública. 2:1053-1062.

2.       CRIVES, M. (2003).  Os NAPS Leste e Oeste de Natal-RN: semeando mudanças em saúde mental.  Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Serviço Social do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. pags. 187.

3.       JORGE, M. (1997).  Engenho dentro de casa: sobre a construção de um serviço de atenção diária em saúde mental. Dissertação de Mestrado Fundação Oswaldo Cruz. São Paulo. pags. 117.

4.       LEVAV, I; RESTREPO, H; MACEDO, C. (1995).  A reestruturação da atenção psiquiátrica na América Latina: uma nova política para os serviços de saúde mental. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. 2:63-69.

5.      PITTA, A. (1994).  Os Centros de Atenção Psicossocial: espaços de reabilitação? Jornal Brasileiro de Psiquiatria. 12:647-654.

* Médico, graduado na UFRN; pesquisador do Grupo de Estudos em Saúde Coletiva da UFRN, [email protected].

** Doutor em Saúde Pública pela Universidade de Montreal (Canadá); Chefe do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN; Médico psiquiatra do Ministério da Saúde, [email protected].


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