Volume 13 - 2008
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Março de 2008 - Vol.13 - Nº 3

Artigo do mês

As seqüelas dos traumatismos craniencefálicos leves: dificuldades para assimilação na clínica e sua inclusão em estudos epidemiológicos.

Carlos Alberto Crespo de Souza*
*Doutor em Psiquiatria e Professor do Curso de Especialização em Psiquiatria do CEJBF/FFFCMPA

1. Introdução:

            Os traumatismos craniencefálicos (TCE) são a causa principal de morbidade e mortalidade nos Estados Unidos. Aproximadamente dois milhões de pessoas visitam anualmente as salas de emergência e acima de 500.000 são admitidas em hospitais. Ao mesmo tempo, 5.8 milhões de sobreviventes possuem inabilidades crônicas em razão desses traumas. 1

            Entretanto, as atenções são mais voltadas para os TCE graves e moderados por parte de neurocirurgiões e neurologistas. No contexto geral os TCE leves perfazem usualmente a 70% de todos eles, cifra altamente expressiva. Porém, mesmo com essa representatividade, eles pouca atenção recebem da comunidade médica internacional.

            Por sua vez, os TCE leves determinam seqüelas principalmente nas áreas cognitivas e comportamentais, além de, também, promoverem igualmente alterações físicas de gravidade, embora com menor freqüência.

            Os TCE de uma maneira geral podem provocar significativas alterações neuropsiquiátricas de curta, média e longa duração. Este entendimento tem sido difícil de ser assimilado pela comunidade médica. Por exemplo, o reconhecimento de que haveria uma possível relação entre os traumas cerebrais e a esquizofrenia somente a partir de 1993 passou a receber alguma atenção por parte da literatura internacional. Até então, casos isolados de esquizofrenia pós-traumática eram publicados com questionamentos sobre essa possibilidade. 2   A partir de 1995, entretanto, vários estudos passaram a ser publicados sobre a relação entre os TCE e as psicoses, tanto em pacientes ambulatoriais como internados.  

            Mesmo assim fortes resistências seguem questionando a relação dos TCE com alterações psiquiátricas, mormente por sua impossibilidade de preencher critérios epidemiológicos. 

Anteriormente, em pesquisa sobre os traumatismos craniencefálicos leves, Crespo de Souza e Mattos já haviam registrado inconsistências nesses estudos, evidenciando as dificuldades existentes para definir os conceitos de concussão e síndrome pós-concussional, uma verdadeira parafernália de entendimentos, sendo que até o nome da síndrome apresentava-se escrito de inúmeras formas. Assinalaram os autores que “Na clínica, pela ausência desse entendimento, os pacientes que sofrem traumatismos craniencefálicos (...) são indevidamente avaliados e acompanhados; na pesquisa, pela ausência dessa uniformidade conceitual, além de outros fatores, os estudos epidemiológicos se mostram inadequados, insuficientes ou incapazes de serem transpostos”. 4  

O presente trabalho, tomando como referência a dois artigos recentes, teve por objetivo comparar seus resultados dentro de uma ótica das dificuldades que os TCE, especialmente os leves, possam ser valorizados em termos epidemiológicos.        

2. Metodologia:         

Dois artigos foram utilizados e seus resultados comparados para que os objetivos do presente estudo fossem atingidos. Pela extensão dos artigos, seus tópicos foram selecionados e apresentados resumidamente.

O primeiro artigo, intitulado “Mild traumatic brain injury in U.S. soldiers returning from Iraq”, de Hoge, Dennis, Jeffrey and cols., publicado no The New England Journal of Medicine, de Janeiro/2008, e  o outro, de Kim, Lauterbach, Reeve e cols., publicado no The Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neurosciences, primavera de 2007, sob o título “Neuropsychiatric Complications of Traumatic Brain Injury: a Critical Review of  the Literature” (A report by the American Neuropsychiatric Association Committee on Research). 5, 1

            O primeiro artigo preocupou-se em mostrar a importância médica dos efeitos potenciais de longo prazo dos traumatismos craniencefálicos leves ou por concussão num campo de guerra, determinados principalmente por explosões repentinas.       Os critérios de TCE leves foram definidos como uma lesão com perda de consciência ou status mental alterado (ofuscação ou confusão).    

O segundo artigo revisou a literatura entre os anos de 1978 e 2006 sobre psicoses, depressão, transtorno do estresse pós-traumático, mania e agressividade após traumatismos craniencefálicos não-penetrantes (ou fechados) e utilizando os critérios de classificação de artigos da Academia Americana de Neurologia em métodos diagnósticos. Os critérios para TCE foram definidos pelos autores como aqueles que ocorreram em virtude de forças mecânicas sobre o cérebro que levaram às seguintes situações:

  1. Qualquer período de perda de consciência
  2. Qualquer perda de memória para eventos imediatamente antes ou depois da ocorrência
  3. Qualquer alteração no estado mental ao tempo da ocorrência.

3. Resultados:

            O primeiro artigo sinalizou que ao retornarem para casa após um longo ano de permanência no Iraque, 2525 soldados de infantaria dos Estados Unidos foram avaliados. Do total, 124 (4.9%) relataram lesões com perda da consciência, 260 (10.3%) com estado mental alterado e 435 (17.2%) com outras lesões diversas.

            Daqueles que relataram perda de consciência, 43.9% preencheram os critérios para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), comparados com 27.3% dos que mencionaram status mental alterado, 16.2% com outras lesões, e 9.1% com aqueles sem lesões.

            Os soldados com TCE leves, primariamente aqueles que tiveram perda de consciência, foram, de forma significativa, mais propensos a registrar saúde geral empobrecida, maior freqüência de ausência no trabalho e consultas médicas, e um elevado número de sintomas somáticos e pós-concussivos do que soldados com outras lesões.

            Assinalaram os autores que depois do “ajustamento” para um TEPT ou para uma depressão os TCE leves não estiveram tão prolongadamente associados com aqueles sintomas físicos, exceto para cefalalgia.

Concluem os autores que os TCE leves ou por concussão que ocorreram entre os soldados que permaneceram no Iraque estiveram fortemente associados com TEPT e problemas físicos depois de 3 a 4 meses de seu retorno à casa. O TEPT e a depressão são  importantes mediadores da relação entre os TCE leves e problemas físicos.

Os autores ainda se reportam ao fato de que a exata proporção de tropas que sofrem TCE leves é desconhecida, embora tenha sido registrado que é superior a 18% em novos artigos citados por fontes militares oficiais. Muitos soldados mencionam que possuem persistentes sintomas pós-concussivos, tais como irritabilidade, problemas de memória, cefaléia e dificuldade de concentração.

Eles também registram que, a despeito desses resultados, pouco é conhecido sobre a epidemiologia dos TCE leves durante essas situações e sua associação com adversa recuperação da saúde posterior.

O segundo artigo, uma ampla revisão na literatura sobre alguns transtornos psiquiátricos, utilizou os critérios de classificação de artigos em métodos diagnósticos da American Academy of Neurology.

Os critérios são listados abaixo:  

Classe I

            Evidências promovidas por estudos prospectivos de espectro amplo de pessoas com suspeita da condição, utilizando “padrões ouro” para os casos definidos onde as averigu ações foram testadas numa avaliação cega e possibilitando o acesso de testes apropriados de acurácia diagnóstica.

Classe 2

            Evidências promovidas por estudos prospectivos de espectro limitado de pessoas com suspeita da condição ou estudos retrospectivos bem-desenhados de um espectro amplo de pessoas com a condição estabelecida (diagnosticadas por “padrões ouro”) comparados com um amplo espectro de pessoas, onde as averiguações foram testadas em avaliações cegas e possibilitando o acesso de testes de acurácia diagnóstica.

Classe 3

            Evidências promovidas por estudos retrospectivos onde cada pessoa com a condição estabelecida ou comparadas com pessoas de espectro limitado, e onde a averiguações foram aplicadas numa situação às cegas.

Classe 4

            Qualquer desenho onde as averiguações não foram aplicadas em avaliações cegas ou evidenciadas por uma opinião de especialista apenas ou em descrições de casos em série.

            Dentre os inúmeros artigos examinados foram identificados 66 estudos que preencheram os critérios para revisão. Segundo os autores nenhum estudo foi encontrado nas Classes I ou II.

Ao mesmo tempo, verificaram significativas falhas na literatura a respeito das condições psiquiátricas pós-TCE com respeito à definição, critérios de gravidade, métodos nosológicos, controle pré-mórbido dos transtornos psiquiátricos, duração do período de seguimento (follow-up) e esgotamento dos acessos de varredura (screening).

Como exemplos, ficam evidenciados:

Psicoses pós-traumáticas:

  • Nosologia: a definição de psicose varia amplamente na literatura.
  • Epidemiologia:

a)      Incidência: alguns critérios diagnósticos quanto a presença de psicoses não mencionam alucinações e idéias delirantes.

b)      Prevalência: estritamente definidos nenhum estudo de psicose pós-traumática foi identificado.

c)      Concluindo, nenhuma afirmativa pode ser feita a respeito da incidência ou prevalência de psicoses pós-traumáticas.

  • Fatores de risco:

            Alguns estudos foram limitados. Outro mostrou que a duração da perda de consciência e uma história familiar de psicose foram os melhores preditores para a psicose esquizofrênica-tipo. Um outro estudo sugeriu que em indivíduos com vulnerabilidade genética para esquizofrenia os TCE podem contribuir para o surgimento desse transtorno.  

 e) Sumário:

      A literatura em psicoses pós-traumáticas está limitada pela falta de critérios operacionais para defini-las. O diagnóstico do DSM-IV de psicoses devidas a um TCE tem sido usado de forma inconsistente nos estudos e possui limitações. Não existem conclusões firmes que possam ser feitas considerando a incidência ou a prevalência de psicoses pós-traumáticas. Uma limitação particular da literatura tem dificultado a distinção entre pacientes com psicoses pós-traumáticas de pacientes com psicoses “idiopáticas”, que possuem história prévia de trauma cerebral. O problema de uma relação temporal versus causal não é possível de ser resolvida na ausência de uma compreensão clara do mecanismo patofisiológico subjacente às psicoses pós-traumáticas. O uso de casos-controle versus estudos prospectivos de seguimento é problemático naqueles pacientes oriundos de locais de atendimento primário de saúde uma vez que podem ter outros fatores etiológicos para sua doença psicótica.        

Depressão pós-TCE:

  • Aspectos nosológicos:

 Uma vez que sintomas de depressão e ansiedade podem representar reações situacionais próprias, variações transitórias comuns ou estados patológicos, a definição expressiva da síndrome depressiva pós-TCE é um passo crucial.

             O diagnóstico dos transtornos do humor do DSM-IV devidos a uma condição médica geral inclui dois subtipos que incorporam praticamente o espectro inteiro dos fenômenos pós-TCE depressivos. O subtipo “com aspectos depressivos” refere-se a sintomas depressivos que não preenchem todos os critérios para um transtorno depressivo maior, enquanto o subtipo “com aspectos depressivos maiores” inclui aqueles que preenchem todos os critérios para o diagnóstico de uma depressão maior.

             Um desafio no uso desses critérios repousa no fato de que os efeitos dos TCE tanto em sintomas somáticos como emocionais podem ocorrer independentemente dos efeitos do humor. Por exemplo, fadiga, distúrbios do sono, dificuldades de concentração e apatia são sinais e sintomas comuns em sobreviventes de TCE com ou sem transtornos do humor. Caso esses sintomas forem adicionados à constelação de humores depressivos resultarão em critérios para um transtorno depressivo maior. Como resultado, a prevalência de transtornos depressivos maiores em sobreviventes de TCE pode ser superestimada se forem usados critérios do DSM-IV sem modificações.

             Com base nessas premissas, uma revisão completa da literatura nessa área mostra-se irrealística. Diferentes autores, dependendo dos propósitos de seus estudos e da década de seus trabalhos, utilizaram diferentes abordagens.       

  • Epidemiologia:

Em razão da variabilidade nosológica os resultados podem não representar a atual incidência e prevalência da depressão pós-TCE. 

  • Fatores de risco: Há substancial evidência de que depressão é uma complicação comum dos TCE, com uma prevalência entre 15.6% a 61% entre os trabalhos que preenchem os critérios para transtorno depressivo maior. Porém, esta alta variabilidade sugere limitações nos métodos diagnósticos utilizados.  

Em relação aos outros itens estudados nesse artigo, como Mania pós-traumática, Transtorno do Estresse Pós-traumático e Agressão Pós-traumática, sempre com os mesmos itens, ou seja, nosologia, epidemiologia e fatores de risco, os autores reforçam sua argumentação sobre a inconsistência metodológica nos estudos, embora reconheçam que essas situações, assim como a depressão pós-traumática, possam ser também comuns.

4. Comentários:

            Os dois artigos merecem ser lidos em sua íntegra tal a qualidade e amplitude de seus estudos, ainda mais considerando o fato de que são muito recentes e por exporem uma realidade atual sobre os TCE.

            Alguns tópicos, abaixo descritos, são dignos de serem considerados:

No primeiro artigo –

  • Ele se dedica aos TCE leves trazendo à luz do conhecimento as repercussões desses traumas na esfera militar. A amostra foi composta por soldados que recentemente tomaram parte da invasão do Iraque.
  • Ele mostra a relevância desses traumas em termos médicos, especialmente suas repercussões de prazo mais longo.  
  • Chama a atenção o fato de que os autores consideraram o transtorno de estresse pós-traumático e a depressão como um “ajustamento” entre os TCE leves, minimizando suas conseqüências deletérias, ressalvando o sintoma cefaléia. 
  • Sinaliza que os TCE leves incluem tanto os que sofreram concussão com perda de consciência como os que tiveram apenas confusão mental.
  • Os sintomas decorrentes dos TCE leves podem se apresentar como saúde geral empobrecida, maior freqüência de ausências no trabalho e de consultas médicas, e um número mais amplo de sintomas somáticos e pós-concussivos (problemas físicos e mentais).
  • Neste estudo, em torno de 40% dos soldados que sofreram TCE leves passaram a apresentar, também, sintomas de Transtorno de estresse pós-traumático. A associação entre o trauma “orgânico” e “psíquico” foi flagrante. Fica evidente que a exposição traumática que gerou o TCE leve igualmente foi capaz de promover uma forte ameaça à sobrevivência.     
  • Os autores registram que não existem dados epidemiológicos em registros militares a respeito desses transtornos, embora já exista uma preocupação com suas conseqüências.
  • Mesmo identificando sua ocorrência, os autores sinalizam que somente após haver conhecimento sobre a fisiopatologia dos TCE é que os sintomas decorrentes poderão ser explicados.           

No segundo artigo:

  • A análise de artigos sobre as complicações dos TCE na literatura, segundo os critérios da Academia Americana de Neurologia, mostrou que nenhum estudo foi capaz de atingir as classes I e II, consideradas como de melhor qualidade científica.
  • Os 66 artigos estudos escolhidos pelos autores entre os anos de 1978 a 2006, por sua mais adequada apresentação, mostraram significativas lacunas, especialmente em seus aspectos nosológicos, epidemiológicos e fatores de risco.
  • As inconsistências apareceram tanto na definição de TCE como nos critérios de gravidade, métodos nosológicos, controle pré-mórbido dos transtornos, duração do período de seguimento (follow-up) e esgotamento dos acessos de varredura (screening).
  • Em razão dessas inconsistências, já detectadas anteriormente, os estudos sobre transtornos decorrentes dos TCE  não atingem um padrão de qualidade que possa ser transposto a outros trabalhos.
  • Os autores, embora mostrassem essas deficiências nos estudos, acreditam que trabalho como o deles poderá intensificar os esforços no sentido de um aprimoramento nos critérios para que os traumatismos craniencefálicos atinjam um status científico de acordo com suas significativas complicações.

5. Conclusão:

            Os dois artigos trabalharam com os TCE utilizando os mesmos parâmetros que incluíram qualquer período de perda de consciência, qualquer perda de memória para eventos imediatamente ou depois do evento e qualquer alteração do estado mental ao tempo do evento. Dessa forma, valorizaram os novos conhecimentos.  

            Ambos mostraram a importância desses traumas e como eles ainda não atingiram um status de acordo com sua magnitude. A inexistência de dados epidemiológicos, resultante de inúmeras lacunas nos estudos determina essa situação.

            Os dois artigos também enfatizaram a necessidade de que os estudos nessa área dos TCE sejam mais precisos do ponto de vista metodológico e que o alerta já está dado. Caberá daqui em diante que os passos se direcionem nesse sentido.

6. Referências:             

1. KIM, E.; LAUTERBACH, E.; REEVE, A. et cols. (2007) – Neuropsychiatric Complications of Traumatic Brain Injury: A Critical Review of the Literature (A Report by the ANPA Commettee on Research). The Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neurosciences. 19: 106-127.

2. VEDIE, C.; BATTOUM, H.; KATZ, G. (19930 – Post-traumatic schizophrenia. A case. Presse Med. 22 (23): 1091-4.

3. CRESPO DE SOUZA, C.A. (2003) – Psicoses Pós-traumáticas. Psychiatry On-Line Brazil. Available from URL: www.polbr.med.br/artigo1003.htm     

4. CRESPO DE SOUZA, C.A.; MATTOS, P. (1999) – Concussão e Síndrome pós-concussional: revisão de seus conceitos. J. bras.psiquiatr. (11): 513-20.

5.   HOGE, C.; McGURK, D.; THOMAS, J. et cols. (2008) – Mild Traumatic Brain Injury in U.S. Soldiers Returning from Iraq. The New England Journal of Medicine. 358: 453-63.

        

Correspondência dirigir para:

Carlos Alberto Crespo de Souza

Prof. Sarmento Leite, 245

Centro de Estudos José de Barros Falcão                                   

Porto Alegre, RS

CEP: 90050-170

Fax: (51) 32.28.53.65

E-mail: [email protected]                        


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