Volume 12 - 2007
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2007 - Vol.12 - Nº 2

Psicanálise em debate

ALGUMAS IDÉIAS SOBRE OS DOIS LIVROS DE BRUNA SURFISTINHA (*)

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

"Bruna Surfistinha" é o nome de guerra de uma jovem prostituta que, a partir de 2005, assinava um blog na internet, no qual registrava seu cotidiano, comentando suas atividades e o desempenho de seus parceiros sexuais.

O blog teve uma inesperada receptividade por parte dos internautas, chegando a receber 15 mil visitas diárias, fato que chamou a atenção da grande imprensa, abrindo grande espaço em jornais e programas de televisão para Bruna Surfistinha. Foi então que ela publicou seu primeiro livro, "O DOCE VENENO DO ESCORPIÃO - O Diário de uma Garota de Programa" (Panda Books, 2005), tornando acessível sua história para aqueles que não a conheciam através da internet.

O livro rapidamente entrou na lista dos best-sellers, vendendo mais de 200 mil exemplares, algo inusitado na indústria editorial brasileira, acostumada com números bem mais modestos, com títulos que raramente ultrapassam a marca dos 10 mil exemplares vendidos. Os direitos autorais do livro foram comprados por editoras dos Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, Canadá, França, Espanha, Itália, Alemanha, Holanda, Coréia do Sul, Turquia e Vietnã. Além disso, prepara-se um roteiro cinematográfico nele baseado. Seu sucesso mereceu artigo no prestigiado The New York Times.

Em 2006, Bruna Surfistinha lançou um novo livro "O QUE APRENDI COM BRUNA SURFISTINHA - Lições de uma vida nada fácil" (Panda Books, 2006), agora assinado pelo que seria seu verdadeiro nome, Raquel Pacheco.

Os dois livros mostram seu percurso de menina de classe média que entra na prostituição e dela é resgatada por um "verdadeiro amor" - um ex-cliente que por ela se apaixona, abandonando mulher e filhos, fato que também foi amplamente explorado por revistas e programas populares na televisão. A mulher abandonada, Samantha Moraes, aproveitando a publicidade, escreveu sua versão da história ("DEPOIS DO ESCORPIÃO: Uma História de Amor, Sexo e Traição" - Ed. Seoman, 2006).

A leitura dos dois livros de Bruna Surfistinha suscita algumas idéias em torno da pornografia, da prostituição, da escrita como expressão e simbolização organizadoras do psiquismo e das autobiografias enquanto gênero literário.

A pornografia tem uma longa tradição histórica. Embora sua definição não seja fácil, pois os critérios que a caracterizam como tal variam largamente em função de padrões culturais em jogo, pode-se dizer que a pornografia é a representação de comportamentos eróticos - em livros, pinturas, estátuas, filmes, etc - com o objetivo de provocar excitação sexual, tendo ou não esta representação uma preocupação formal estética.

Suas expressões mais antigas estão ligadas a canções lascivas entoadas nas orgias dionisíacas gregas. Representações gráficas, como as de Pompéia, mostram sua presença no Império Romano, assim como o texto clássico Ovídio "Ars Amatoria" ("A Arte de Amar"), um bom exemplo de "pornografia" escrita.

Na Idade Média, a pornografia foi difundida basicamente de forma oral, através de canções que satirizavam a luxúria de homens e mulheres da Igreja, supostamente castos. Sob a forma escrita, um bom exemplo dessa época é o "Decameron", de Boccaccio.

A invenção da imprensa deu novo alento à pornografia escrita, criando um campo que desde então não parou de se expandir, apesar das sanções legais. O mesmo ocorreu com a invenção da fotografia e do cinema, assim como, mais recentemente, com a internet.

Ou seja, cada vez que um novo meio de comunicação se estabelece, a pornografia passa a ser um de seus maiores usuários, fato da maior importância e que necessita ser encarado sem preconceitos.

A pornografia tem sido objeto de perseguições morais e religiosas, por se acreditar que ela tende a corromper ou depravar as pessoas, além de induzir a prática de crimes sexuais. Por este motivo, em muitos países, a produção, a distribuição e a posse de material considerado pornográfico são vistos como crimes passíveis de punição.

Tais idéias têm sido combatidas com argumentos legais e científicos. A ampla difusão de material pornográfico pela internet fez caducarem muitos dos controles sociais até então eficientes e mostra o caráter fantasioso dessas idéias. A crer no que elas afirmam, a divulgação de material pornográfico pela internet deveria ter feito com que os crimes sexuais crescessem de forma extraordinária, o que não aconteceu.

Assim, os livros de Bruna Surfistinha se inscrevem numa longa tradição e se beneficiam da última invenção tecnológica - a internet - para serem divulgados. Eles têm uma disposição editorial especifica - um corpo extenso de páginas brancas e um outro menor, de páginas pretas lacradas, onde supostamente estaria o material mais censurado. É uma divisão arbitrária, que atenderia mais a um marketing visando estimular a curiosidade acerca de material "proibido", pois não há uma diferença notável no teor dos textos assim discriminados. Nas páginas pretas apenas estão mais concentradas descrições de práticas sexuais que estão expostas pelo livro inteiro e que satisfazem nosso voyerismo, componente importante de nosso acervo erótico, imprescindível não só nas preliminares como no próprio ato sexual.

Mas os livros de Bruna Surfistinha terminam por se afastarem daquilo que é o mais específico das produções pornográficas - a franca e direta provocação do desejo sexual, cujo poder eventualmente transgressivo a muitos assusta.

Os dois livros contam uma história romântica, recheada de conselhos aos leitores e apimentada com uma pornografia light. Ao mostrar uma prostituta que trilha o caminho de erros e é redimida pelo amor, Bruna Surfistinha reafirma uma visão convencional e moralista sobre a prostituição, acomodada aos estereótipos do imaginário coletivo, sendo este - possivelmente - uma das razões de seu grande sucesso comercial.

Por outro lado, a prostituta resgatada pelo amor é uma das modalidades de escolha de objeto por parte dos homens, como Freud descreve em "Contribuições à Psicologia do Amor" (1910): determinados homens se apaixonam por prostitutas por equipará-las às suas mães - a prostituta é uma "mulher de outros homens", assim como a mãe é a "mulher de um outro homem", o pai.

Estruturados como autobiografia, os livros nos remetem aos problemas específicos deste gênero literário. Se "Bruna Surfistinha" é um personagem criado por Raquel Pacheco, "Raquel Pacheco" não deixa de ser também uma outra ficção, desta vez involuntária, como ocorre na maioria das autobiografias. Nelas, a imagem de si mesmo construída pelo autor atende mais ao desejo de mostrar uma bela figura para a posteridade do que ser fiel aos fatos. Mas o que ocorre com as autobiografias reflete uma verdade mais profunda, aquela decorrente da divisão interna de nosso psiquismo em função do inconsciente reprimido, o que nos impossibilita uma auto-percepção adequada.

De certa forma, os livros de Bruna Surfistinha quebram um estereótipo sobre a prostituição. Sendo ela uma moça de classe média, sua realidade não está tão distante da de seus leitores, o que não ocorre com os relatos de prostituição feitos por aquelas que ali chegaram por uma pressão direta da miséria sócio-econômica.

Segundo Bruna Surfistinha, foi uma outra "miséria" o que a levou para a prostituição - a miséria psicológica, o trauma decorrente da descoberta de sua adoção.

Levando em conta tal explicação, sua ida para a prostituição decorreria de graves problemas identitários, já sinalizados por sintomas anteriores, como a obesidade, a cleptomania, as idéias de suicídio e o uso de drogas. Isso estabeleceria a conotação sintomática de sua conduta rumo à prostituição, o que contradiz diretamente sua tentativa de apresentá-la como um trabalho comum, semelhante a qualquer outro.

Embora Bruna Surfistinha / Raquel Pacheco explicite que o jornalista Jorge Taquini a ajudou na elaboração dos textos, a autoria dos mesmos não pode ser colocada em questão ou atribuída a um ghost writer. Não podemos esquecer que foi dela a idéia de criar um blog e nele escrever regularmente suas experiências, acobertada pelo "personagem" Bruna Surfistinha.

Foi justamente isso que lhe deu notoriedade, tirando-a da vala comum de tantas outras jovens prostitutas. E é isso que a estabelece como autora, alguém que tem uma proximidade com a escrita e é capaz de usá-la para expressar suas vivências.

Talvez não seja excessivo correlacionar a proeza de Bruna Surfistinha com as construções teóricas de Lacan em torno de Joyce, ao afirmar que a escrita ocupou para o autor de "Ulisses" o lugar vacante da função paterna, evitando assim a eclosão de uma psicose. Talvez Bruna Surfistinha, da mesma forma que Joyce, tenha usado da capacidade de escrever para organizar e simbolizar o caos psíquico e com isso escapar da loucura.

Para terminar, sublinho algo que Bruna Surfistinha menciona muitas vezes em seu texto - a hipocrisia em relação à prostituição.

A atitude da sociedade frente à prostituição é muito ambígua. Condena a prostituta e secretamente admira seus fregueses, que assim reafirmam sua virilidade. Todas as vezes que a prostituição é penalizada e as prostitutas perseguidas, dificilmente o mesmo ocorre com seus clientes. Algo semelhante acontece no combate à corrupção e ao tráfico de drogas. Pune-se o corrupto, ficando o corruptor invariavelmente protegido, livre de qualquer ônus. Demoniza-se o traficante de droga e se ignora que ele atende à demanda de um mercado milionário composto por milhões de usuários.

Inegavelmente, a prostituição, a corrupção e o tráfico de drogas são encarados pela sociedade de forma dissociada e hipócrita.

(*) Uma versão mais sucinta desse artigo foi publicada na revista "Mente&Corpo", no. 169, Fevereiro de 2007


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