Volume 10 - 2005
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2005 - Vol.10 - Nº 1

História da Psiquiatria

Higiene Mental e a Imigração II

Walmor J. Piccinini

Do primeiro artigo sobre o assunto podemos destacar alguns pontos:

1. A influência da psiquiatria americana entre os psiquiatras brasileiros, no primeiro quarto do século XX, foi mais importante do que se imaginava. A partir das idéias de Clifford Beers (Um espírito que achou a si mesmo) e o apoio de Adolf Meyer a idéia da Higiene Mental difundiu-se no Brasil e no Mundo.

2. A difusão das idéias eugênicas também veio dos Estados Unidos e foi encampada por médicos, políticos e juristas brasileiros. Entre eles alguns psiquiatras.

3. Leis antiimigração de japoneses e judeus foi de interesse político e aprovadas pelo Governo Brasileiro. Na Assembléia Constituinte de 1934, a chamada “bancada médica”, liderada por Miguel Couto, fez passar uma proposição de Oliveira Viana limitando a vinda de imigrantes japoneses.

4. Juliano Moreira defendeu a imigração japonesa. Nosso psiquiatra mor tinha uma visão bem clara das vantagens da vinda dos imigrantes e não via nela diferenças maiores do que a dos demais imigrantes. O tempo veio confirmar a sabedoria das suas afirmações.

O início do século XX encontrou o Brasil em grave crise econômica. O governo Campos Sales conseguiu renegociar a dívida e fez novo empréstimo a ser pago em longo prazo. As conseqüências para a população foram às costumeiras, miséria, desemprego e falta de perspectivas. O Governo que se seguiu foi o de Rodrigues Alves, que, tinha como meta sanear a Capital da República, ampliar o porto e remodelar a cara da cidade. Para a tarefa de modernizar o Rio de Janeiro foi nomeado o prefeito Pereira Passos que tinha no seu currículo a vivência da reforma parisiense feita pelo Eng. Haussmann. Para o Hospício D.Pedro II, foi trazido da Bahia o médico Juliano Moreira. A Saúde Pública foi entregue a Oswaldo Cruz, com plenos poderes, para eliminar a febre amarela, a varíola, a peste bubônica e outras doenças que grassavam na cidade. A cidade sofreu uma cirurgia profunda, o porto foi remodelado, abriu-se a Av. Central, hoje Av. Rio Branco. Muitos casebres e cortiços foram demolidos. Os agentes sanitários invadiam as casas, vacinavam à força e tinha poder de polícia. Em 1904, a população, prejudicada no seu modo de vida, assustada pelo desconhecimento da vacina, insuflada por golpistas, reagiu com violência e estabeleceu-se uma revolta popular conhecida como a Revolta da Vacina. Os sucessivos governos paulistas e mineiros sofriam grande contestação popular. Com a quebra da Bolsa de Nova Yorque o mundo entrou em crise, os poderosos fazendeiros paulistas perderam o poder econômico e tudo isso acabou na revolução de 1930 com a tomada do poder por Getúlio Vargas e seus seguidores. Getúlio lançou as bases da industrialização do país, aplicou a legislação trabalhista italiana, estabeleceu o salário mínimo e, principalmente, conseguiu atravessar os turbulentos anos da década de 30-40. Ameaças de golpe à esquerda e à direita e com concessões ora pra um e ora para outro, foi levando o país. Seu apoio político principal era da Igreja e dos Militares. A Igreja se opunha a imigração japonesa e de judeus, por não serem passíveis de conversão ao catolicismo. Os militares eram contra por razões estratégicas. Os médicos se opunham pelo temor da influência da raça amarela sobre a incipiente “raça brasileira”.

Esse resumo da história política nos permite entender as flutuações da “inteligência brasileira” ao longo daquele período. Segundo Eunice Ribeiro Durham (A Dinâmica da Cultura, 2004), antropóloga paulista, professora emérita da USP, nos primeiros 30 anos do século XX predominava a antropologia evolucionista. Era aceita a idéia de que os povos eram avaliados no seu desenvolvimento tomando por base a cultura branca européia ocidental. Em meados dos anos 30 surgiu a idéia do funcionalismo, cada cultura tinha que ser avaliada dentro dos seus parâmetros e, gradativamente era afastada a idéia de mais ou menos valor. O Brasil teve em Gilberto Freyre o grande nome no resgate das nossas origens e sua valorização cultural. Deixou de ser vergonhoso ser brasileiro, passou-se a aceitar a miscigenação entre as três raças, branca, índia e negra. É interessante nos socorrermos na literatura para sentir a evolução dessa modificação no nosso modo de ver nosso destino como povo. Penso que é chegada à hora de reavaliar muitos dos nossos pensadores do fim do século XIX, e início do século XX, Um deles, muito criticado por críticos engajados, é o paraense Raimundo Nina Rodrigues. É destacada sua posição favorável ao evolucionismo, considerando a miscigenação como fator de enfraquecimento racial do brasileiro e sua aplicação nos trópicos das idéias de Lombroso. É esquecida sua extrema dedicação ao estudo étnico do negro africano e sua influência na culinária, na música, e na maneira de ser do brasileiro. Infelizmente, Nina Rodrigues faleceu em 1906, com 44 anos de idade, sua obra ficou inacabada. Outros tiveram tempo de se modificar e se adaptar às novas maneiras de pensar. Um trabalho interessante sobre o assunto pode ser encontrado em: LOBATO, OS JECAS E A QUESTÃO RACIAL NO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO. Ricardo Augusto dos Santos *

“Monteiro Lobato, em 1918, publicou O Problema Vital, reunindo em livro uma série de 14 artigos veiculados pelo jornal O Estado de S. Paulo. Estes artigos evidenciam uma mudança de perspectiva do homem rural brasileiro. Ao criar o Jeca tatu, um provável modelo do homem do campo, Lobato estava, ao menos, de acordo com o pensamento social dominante na passagem do século XIX para o século XX. Este pensamento adotava as teorias científicas surgidas na Europa para pensar a identidade cultural brasileira. Para tais idéias cientificistas, o clima, a localização geográfica e a raça determinavam a evolução e a hierarquia das sociedades humanas”.

“Neste momento, Lobato denunciava uma determinada corrente de interpretação dos elementos nacionais, denominada por ele de “caboclismo”, e atribuía ao Jeca, espécie degenerada em sua origem mestiça e adaptada ao ambiente natural, a responsabilidade por todos os problemas do universo rural. O Jeca era indolente, incapaz de participação na política e na produção do trabalho no mundo moderno. Não possuía qualquer noção de pátria ou de nação. Era, portanto, incapaz de evolução e progresso”.

Contudo, o enfoque mudaria. E o diagnóstico seria outro. Se o determinismo biológico representava um problema grave, uma herança genética, o saneamento poderia transformar cientificamente a realidade. Lobato, criador do Jeca, mostrava-se um entusiasta do discurso científico de sua época, especialmente no campo da microbiologia e da parasitologia. É por meio da ciência médica que Jeca, personagem literário, adquiria sua cidadania.[4] A primeira aparição do Jeca data de 12/11/1914, num texto enviado por Lobato ao jornal O Estado de S. Paulo com o titulo de “Velha Praga”, no qual Lobato se insurgia contra as queimadas de roça e descrevia o modo de vida dos caboclos de sua propriedade “.

“Este funesto parasita da terra é o CABLOCO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando... vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão (...) de modo à sempre se conservar fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não se adaptar (...) o caboclo é uma quantidade negativa.” (Lobato, 1957:271)

“Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade ambiente. No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive“. (Lobato, 1957:289-292).

Alguns anos depois, Lobato lançaria uma publicação com o mesmo nome do segundo texto publicado no jornal paulista: O livro Urupês, reunindo contos seus já editados, e incluindo os trabalhos “Velha Praga” e “Urupês”; páginas militantes contra o caboclo indolente e o romantismo ufanista. No entanto, naquela conjuntura Lobato estava progressivamente participando do debate em torno da campanha pelo saneamento das áreas rurais. Ele tomara contato com os médicos Arthur Neiva, Belisário Penna, Renato Kehl e outros participantes do movimento sanitarista. Assim, surgia um novo Jeca: O Jeca dos artigos de “O Problema Vital”. O Jecatatuzinho padecia dos mesmos males, no entanto, após entrar em contato com a ciência médica, curava-se das moléstias que o levavam a ser indolente; tornava-se trabalhador, enriquecia e transformava-se em exemplo para os vizinhos. Esta narrativa foi publicada com o título de “Jeca Tatu - A Ressurreição”, e ficaria conhecida como jecatatuzinho, chegando a vender milhões de exemplares através do Almanaque de Produtos Farmacêuticos Fontoura.

Alguns anos depois, Lobato lançaria uma publicação com o mesmo nome do segundo texto publicado no jornal paulista: O livro Urupês, reunindo contos seus já editados, e incluindo os trabalhos “Velha Praga” e “Urupês”; páginas militantes contra o caboclo indolente e o romantismo ufanista. No entanto, naquela conjuntura Lobato estava progressivamente participando do debate em torno da campanha pelo saneamento das áreas rurais. Se em Urupês e Velha Praga (1914) Lobato atribuía preponderância às teses raciais e climáticas para a pobreza, chegando a culpar o trabalhador do campo por sua condição, nos artigos de 1918 refletia sobre a questão nacional do saneamento. É através de uma explicação médico-científica que Lobato, preocupado com a reprodução da força de trabalho improdutiva, mudaria a sua concepção do caboclo brasileiro. A ineficiência do Jeca não era mais uma questão de inferioridade racial, mas sim um problema médico-sanitário. O caipira é doente. Ele é pobre porque é doente e assim não produz. A epígrafe do livro O Problema Vital é, neste sentido, elucidativo: “O Jeca não é assim, está assim.” Esta mudança de concepção passava pela crença positiva de Lobato na ciência:

“O nosso problema, verificado que foi o mau estado da população nativa, é simples e uno: sanear. Para sanear é forçoso, preliminarmente, convencermos o país da sua doença; e em seguida fazer dessa idéia o programa de todos os governos, a idéia fixa de todos os particulares. Tudo mais rola para plano secundário. Sanear é a grande questão. Não há problema nacional que não se entrose nesse”. (Lobato, 1957 a 272).

Lobato e seu Jeca regenerado pela ciência são os sinais emblemáticos desta mudança de concepção. Influenciado pelo contato com os membros do movimento sanitarista e pela leitura do relatório da expedição, Lobato transformou seu personagem ignorante. Este, depois de tratado pelo médico, tornar-se-ia trabalhador produtivo e saudável. Deste modo, para afastar qualquer risco de incerteza no processo de “branqueamento” da nação, foi necessário que os intelectuais se apropriassem do conhecimento dito científico em voga no campo das idéias, que era a eugenia. A adoção das regras e conceitos da educação higiênica-eugênica assumiria uma posição confortável na ciência para o desejado branqueamento dos corpos e mentes.

Em vários livros, correspondências e manuscritos de Belisário Penna, Renato Kehl e Monteiro Lobato, podem ser encontradas passagens de variados tons da teoria eugênica. Os novos conhecimentos higiênicos e eugênicos ofereciam uma saída para o dilema nacional. Estávamos realmente condenados pela herança genética e climática a uma imutável inferioridade social e racial? Os registros sobre a saúde e condições sócio-sanitárias do povo brasileiro, retratadas e reveladas ao público, ofereciam novos e reveladores argumentos. Os tipos humanos, produtos da “miscigenação racial”, eram indolentes, preguiçosos e improdutivos porque estavam doentes. Regenerar e curar o Brasil seria construir uma nação. Saneá-lo, higienizá-lo e eugenizá-lo.

Os cientistas-intelectuais do movimento sanitarista criticavam as teses do determinismo biológico e racial, baseando-se em seus conhecimentos do Brasil verdadeiro adquirido nas viagens científicas efetivamente realizadas, em contraste com as diferentes idealizações do país. Como outros autores observaram, a imagem negativa do Jeca Tatu seria reformulada após o contato de Lobato com os membros do movimento pela criação da consciência sanitária nacional, como Belisário Penna, Arthur Neiva e Renato Khel (SKIDMORE, 1976 e THIELEN & SANTOS, 1989). Contrários ao ufanismo romântico e ao determinismo biológico, estes homens qualificavam suas idéias e propostas como científicas — e assim pensavam justificar suas interpretações dos problemas nacionais, pois estavam autorizados pela racionalidade cientifica.

Nísia Trindade Lima (1999) e Aluízio Alves Filho (1979), em seus livros, destacam uma característica da bibliografia sobre o pensamento social brasileiro. Estes autores ressaltam que, embora crítica, esta literatura restringe-se a alguns nomes. Assim, pensadores como Monteiro Lobato, Manoel Bomfim, Belisário Penna, Renato Kehl e outros que interpretaram o país encontram-se um pouco esquecidos. As interpretações sobre a sociedade tiveram a importante participação destes intelectuais, contudo, eles não são reconhecidos como relevantes autores do pensamento brasileiro, embora muitos tivessem sido divulgadores das representações sociais que ainda hoje estão presentes em nosso imaginário social. Este é o caso dos cientistas-intelectuais, que participaram da campanha pelo saneamento do Brasil e implantação de uma educação higiênica nos lares e escolas. No âmbito deste texto, não esgotamos as inúmeras possibilidades de pesquisa que esses pensadores possui. Vários projetos, artigos e dissertações serão necessários para se compreender a contribuição das idéias de Lobato, Penna e Kehl.

[4] “A Concepção de progresso de Lobato ligava-se ao espírito científico, ao emprego do microscópio e ao uso do remédio de laboratório, prescrito pelo doutor. O Jeca emergiria de sua miséria, por meio da ciência, do remédio científico, da casa higiênica e da botina, todos resultantes do moderno, do progresso e do espírito científico” (Ribeiro, 1993:210).

Utilizei longas citações do trabalho de Ricardo dos Santos por achar que o mesmo explica bem algumas idéias que defendemos em nossos escritos. A expedição Belisário-Penna e Neiva em 1916, suas conclusões sobre a precária condição sanitária no interior do Brazil, a famosa frase de Miguel Pereira considerando o Brasil um grande hospital e a idéia de que o brasileiro não era inferior, era doente. Se tratado seria igual ao europeu. Essa concepção de ciência e melhoria do brasileiro, levou a idéia do tratamento e prevenção como solução universal para nossos problemas. Eram deixados de lado considerações sobre a economia e a política.

Foi esse ambiente “sanitarista” que influenciou a psiquiatria brasileira. Dele nasceu a Liga Brasileira de Higiene Mental. No que respeita a imigração, alguns membros da liga se uniram à corrente integralista e colocaram obstáculos às mesmas. Dos médicos liderados por Miguel Couto, a luta era contra a imigração japonesa. Do governo, conforme vários documentos, facilmente encontrados na Internet, a restrição era contra os judeus.

Foge do objetivo desse trabalho transpor algumas das idéias em debate para os dias atuais. A roda do tempo gira e tudo permanece na mesma. O Jeca tatu dos primeiros escritos de Lobato, assemelha-se ao nosso trabalhador sem terra dos dias de hoje, pelo menos do ponto de vista do pensamento elitista.”Ele é pobre, semi-alfabetizado, não sabe cuidar da terra, é indolente e abusa de bebidas alcoólicas”. O pobre marginalizado, de hoje, corresponde aos seus pares do início do século XX.


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