Volume 10 - 2005
Editor: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2005 - Vol.10 - Nº 12

Psicanálise em debate

PSICANÁLISE - UMA ANTI-CONFISSÃO

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

Em 1996, a Suprema Corte norte-americana estabeleceu legislação permitindo que psicoterapeutas se recusem a expor dados de pacientes em procedimentos judiciais . O vínculo terapeuta-paciente passou a ter os mesmos privilégios que a relação advogado-cliente ou marido-mulher, de há muito protegidas legalmente.

Os legisladores consideram ser de interesse público a existência de um lugar onde se possa falar livremente e em total confiança, sem temer que aquilo seja divulgado ou que venha a ser usado contra si mesmo. Nós, que trabalhamos na área, não temos dúvidas quanto ao benefício social trazido pelo espaço sigiloso dos consultórios psi. Sabemos todos como a simples catarse, o mero expurgar através da livre expressão das conflitivas fantasias agressivas e sexuais, geradoras de tensão e inquietação, traz um grande alívio a seus portadores e possibilita uma intervenção que pode impedir sua atuação na realidade, o que acarretaria inevitável e elevado custo individual e social. Este reconhecimento, por parte do Estado, da importância e utilidade pública do espaço sigiloso psicoterapeutico poderia fazer crer que as terapias agiriam, em última instância, como instrumentos de acomodação social, preconizadoras da obediência e do servilismo às leis, trabalhando enfim no interesse do Estado. Confirmar-se-ia uma antiga suspeita levantada por alguns, que vêem as terapias como formas de enquadramento, de impedimento de qualquer pensamento questionador e inovador, seja a nível pessoal ou social.

A resolução da Suprema Corte norte-americana gera compreensivamente uma certa suspeita, pois a linha que discrimina o "interesse público" do "interesse de Estado" é sutil e só é clara e definida em Estados plenamente democráticos. Somente nestes Estados é possível a existência de cidadãos educados, conscientes de sua cidadania, capazes de e dispostos a defenderem seus direitos, forçando a máquina estatal a ter como objetivo principal e razão de ser a procura do bem comum. Não sendo plenamente democrático o Estado, seu interesse maior é a simples manutenção do status quo, onde o bem público é ignorado ou é apenas uma peça a ser manipulada para que a estrutura de poder não se altere e seus detentores entronizados perpetuamente.

Por isso, há uma compreensiva desconfiança frente ao aparato legal, teme-se a lei como um instrumento autoritário e autocrático, proveniente de uma estrutura que não tem outra meta além de se perpetuar num poder cristalizado e entrópico. É difícil ver que a lei pode e deve ser um instrumento que beneficie a sociedade, enquanto regulação necessária das relações humanas.

Se existe a lei, com ela vem a possibilidade de infringi-la, desencadeando as penalidades previstas - também pela lei - para tais ocorrências. Nesse processo, joga papel importante a instituição da confissão, peça necessária para a configuração do crime e a aplicação da punição adequada.

A confissão tem o registro leigo, dentro das leis do Estado, como já falamos, e um registro religioso, envolvendo as leis divinas e as autoridades religiosas. A confissão do crime pode pôr em jogo toda a violência do aparato repressor do Estado, zeloso de seu poder. A confissão religiosa envolve a admissão da culpa pela desobediência aos mandamentos, e com ela a recepção do perdão, em troca de uma penitência simbólica que possibilita o restabelecimento da ligação entre pecador e criador.

A confissão leiga, regida pelo Estado, habitualmente lida com crimes já cometidos, cabendo a ele a aplicação rigorosa e exemplar da punição, em nome da manutenção da ordem e de seu poder. A confissão religiosa também lida com desobediências já realizadas, mas tem também a possibilidade de intervir em atos futuros, na medida em que o pecador admite seus desejos presentes e futuros, que, se levados avante, desembocariam em atos condenáveis. Neste momento, o confessor, usando de seus poderes para aconselhá-lo e orientá-lo, exerce uma atuação preventiva, evitando a concretização de atos passíveis de penalidade leiga e religiosa.

Os dois tipos de confissão estão fundidos no Estado religioso, do qual estamos há tanto tempo afastados, que esquecemos como ele nos ameaça através dos mais diversos fundamentalismos, desde aquele que medra no Islã, como aquele que se insinua no centro do império norte-americano, alimentado pelos pastores eletrônicos da televisão, constituindo um negócio de milhões de dólares e uma força política perigosa e inquestionável.

É importante não esquecermos a diferença entre o Estado leigo moderno e uma teocracia. Nesta, estando a religião mancomunada com o Estado, estando misturadas as leis divinas com as do Estado, as confissões estarão necessariamente a serviço dos interesses do Estado, podendo ser utilizadas diretamente no controle das massas, visando a manutenção do status quo.

A legislação da Suprema Corte norte-americana é significativa enquanto evidência exemplar das possibilidades de um Estado moderno democrático, que pensa no bem comum, no bem público, defendendo a privacidade de seus cidadãos, tendo conhecimento que o respeito à liberdade e privacidade individuais têm um retorno social positivo. Aqui vemos o Estado regulando e legislando sobre um espaço onde ele mesmo não pode nem deve intervir. Tudo isso é o oposto das produções de um Estado teocrático ou não democrático. Essa conquista da democracia norte-americana não anula as atuações antidemocráticas e fascistas que o Estado norte-americano tem feito no palco mundial, especialmente na era Bush.

Esta pequena digressão sobre o Estado, a lei e a confissão é necessária porque as terapias guardam, no imaginário, uma certa proximidade com a confissão. Mais ainda, porque, de fato, a psicanálise tem uma estreita relação com a lei, como logo veremos. Quando mencionamos a utilidade pública da psicoterapia, abordamos estritamente seu aspecto catártico, entendido como descarga, verbalização de desejos e sentimentos e pensamentos, elemento comum a qualquer procedimento de aconselhamento psicoterápico ou religioso. Nem é preciso dizer que atualmente há um grande número de diferentes abordagens terapêuticas, muitas delas devedoras, em maior ou menor grau, do acervo teórico da psicanálise. O que vou doravante desenvolver diz respeito exclusivamente à psicanálise.

A psicanálise, partindo da catarse, transcende-a completamente, desvendando uma outra dimensão do psiquismo, o Inconsciente, onde se encontram as moções e desejos que se organizam em fantasias a serem descobertas, interpretadas e analisadas, dando uma nova dimensão à experiência humana.

A psicanálise tem uma relação muito especial com a Lei. Não se trata da lei do Estado, nem da lei religiosa, mas talvez da Lei primordial, a que dá origem a todas as demais. Trata-se da Lei simbólica, o nome-do-pai no vocabulário lacaniano, aquela que faz com que o pequeno animalzinho se transforme num ser humano, saindo da Natureza e entrando na Cultura, submetido à perda da Coisa, à interdição do incesto, processo que permite a simbolização e a linguagem.

A psicanálise acompanha os percursos da implantação e internalização da lei sobre os desejos da criança, que tem de abandonar a realização alucinatória de seus desejos e aprender a tentar concretizá-los na realidade. Para tanto é necessário abandonar a onipotência e reconhecer a existência de um mundo externo movido por regras que independem de seu próprio desejo. No jogo intersubjetivo que vai forjar a personalidade de cada um de nós, todos devemos atravessar os desfiladeiros narcísicos e edipianos.

Com isso, a psicanálise faz o analisando estabelecer uma discriminação entre sua vida fantasmática infantil e a vida "real". Possibilita discriminar sua insatisfação decorrente da ofensa narcísica ou da revolta edipiana daquela advinda de aspectos realmente criticáveis e perversos da realidade.

Tal discriminação é imprescindível para que ele possa atuar na realidade de maneira crítica, modificando-a de acordo com seus objetivos e metas, podendo ser um agente de construção de seu próprio destino e da sociedade em que vive, rompendo com a mesmidade da compulsão à repetição. Assim, ao contrário de ser uma arma de acomodação social, a psicanálise cria condições para uma atuação mais efetiva e eficaz na realidade.

De certa forma, a psicanálise dá um novo sentido à antiga confissão. Ela é uma anti-confissão, pois ao invés de punir ou perdoar, faz o sujeito entender e questionar a culpa inconsciente que o leva à compulsão à confissão, fazendo-o vê-la como a realização de uma fantasia de submissão a um pai cuja lei foi desafiada e transgredida na fantasia.

A psicanálise só pode florescer num estado leigo e livre, e constitui-se necessariamente em ameaça a qualquer estado totalitário, como sabemos que ocorreu na antiga União Soviética e na Alemanha nazista, bem como nos atuais estados islâmicos, nos quais o estado continua vinculado à religião.


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