Volume 10 - 2005
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2005 - Vol.10 - N 1

Psicanálise em debate

Vigor e atualidade do pensamento social de Freud-
Resenha do livro FREUD E A CULTURA de Betty B. Fuks - Jorge Zahar Editor - Rio de Janeiro - 2003 - 74 p.

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

O livro de Betty Fuks lembra o conhecido adágio de que nos pequenos frascos estão grandes perfumes: numa coleção dirigida ao grande público, como é o caso da “Passo a Passo” da Zahar, e em apenas enxutas 74 páginas a autora consegue a proeza de expor de forma clara e acessível as reflexões psicanalíticas de Freud em torno da política e dos fenômenos culturais.

Essa faceta da produção freudiana era vista, há não muito tempo, com reservas tanto por uma esquerda que se guiava exclusivamente pela dimensão econômica na análise do social, como pela direita, representada por alas do proprio movimento psicanalítico que advogavam (ou ainda advogam) que as descobertas de Freud sobre o inconsciente só podem ser aferidas no espaço privado da clínica e centrada na transferência desenvolvida naquelas circunstâncias. Para estes, o que não se enquadra nesse modelo é pejorativamente chamado de `análise aplicada' - algo que se olha de nariz torcido e com ar de desaprovação.

Como mostra Betty Fuks, nada mais distante do pensamento do próprio Freud, que rompe com a clássica distinção entre psicologias individual e coletiva por entender que o inconsciente, enquanto dimensão do psiquismo, necessariamente se evidencia em todas as organizações e fenômenos sociais humanos. Isto faz com que, no exercício de sua função, o analista possa e deva ocupar também o lugar de crítico da cultura.

Betty Fuks mostra como, para Freud, a cultura humana nasce do encontro entre “a interioridade de uma situação individual - manifesta nos impulsos que vêm desde dentro do sujeito - e a exterioridade de um código universal, subjascente aos processos de subjetivação e aos regulamentos das ações do sujeito com o outro” (p.10).

A importância do social, do outro, na constituição do sujeito aparece muito cedo em Freud. Já no “Projeto” (1895), postula o “complexo do próximo” como o responsável pela emergência da condição humana, que se instala ao estabelecer o recém-nascido seu primeiro vínculo social com o ser humano próximo (Nebenmensch), aquele outro que acolhe seu grito de desamparo (Hilflosichkeit), respondendo-o com a satisfação de suas necessidades mas também introduzindo-o no universo simbólico da linguagem.

É significativo que Freud chame essa ajuda inicial que possibilita a vida do recém-nascido e lhe dá ingresso ao mundo dos homens como “ajuda estrangeira”.

É estruturalmente conflitiva a relação entre o sujeito e a cultura, pois esta se impõe dentro de um paradoxo - ao mesmo tempo que acolhe o desejo do sujeito, estabelece limites e impedimentos, impõe a Lei, organiza a repressão em nome de uma vida em sociedade. Exige a sublimação das pulsões, que possibilita sua transformação em bens socialmente valorizados, como a arte e ciência.

Betty Fuks sublinha como as elaborações freudianas sobre a realidade social decorrem de suas descobertas na clínica. Não se trata de uma simples transposição desses conceitos de um campo para o outro e sim o reconhecimento de uma realidade psíquica que se evidencia igualmente em ambos os lugares.

São as mesmas descobertas clínicas fundamentais - desde o desamparo (Hilfosichkeit) original, que engendra inicialmente as fantasias narcisicas de fusão com a mãe e, posteriormente, o desejo de proteção do pai poderoso, até o mito de Édipo, que dá origem aos complexos de Édipo e de castração, estruturas pelas quais circulam as pulsões eróticas e tanáticas - as que vamos reencontrar na atenta leitura que Freud faz do social.

O desamparo (Hilflosichkeit) e o complexo de Édipo estão na base de todas organizações sociais humanas. Vamos revê-las, por exemplo, no mito da horda primitiva. O assassinato do pai e a culpa daí decorrente é o que permite a identificação com sua figura e a internalização da sua Lei, possibilitadora da proscrição do absolutismo no poder e dos assassinatos.

Essa mesma estrutura é revista na gênese de uma força social cujo importância em nossa história não pode ser diminuída - a religião. Freud, como iluminista que lutava contra o obscurantismo e a ignorância, inicialmente a combateu como a “neurose obsessiva da humanidade”, como um “delírio socialmente compartilhado”, expondo seus aspectos infantilizantes e alienadores assentados na exploração dos mais arcaicos desejos de proteção e amor paterno.

Como explica Betty Fuks, Freud altera um pouco esta postura no final de sua vida. Em “Moisés e o monoteísmo”, ele aponta um lado positivo da religião, reconhecendo-lhe um papel de laço social e entendendo “Deus” como um significante que veicula valores éticos de respeito e amor ao próximo.

As questões ligadas a identificação, ao superego, ao ideal de ego alicerçam a visão freudiana a respeito da psicologia das massas e do papel do líder político.

Narcisismo e pulsão de morte, por sua vez, constituem a base das especulações freudianas sobre a guerra e a violência.

A ferida narcísica decorrente do rompimento da idealizada fusão com a mãe, momento primeiro onde se estabelece a divisão entre o eu e o outro, é atualizada com a constatação das diferenças anatômicas entre os sexos. Configura-se então o sexo feminino como um representante do estranho, do outro, do diferente. Por aí se entende a misoginia, o machismo, os preconceitos contra a mulher e o judeu.

No interessante capítulo “Viena e suas figuras de alteridade”, Betty Fuks vincula essas descobertas freudianas a fatos ocorridos naquela cidade no final do século XIX, quando a mulher era demonizada e o judeu desprezado por serem, no imaginário coletivo, figuras representantes da castração.

Na análise do anti-semitismo, Betty Fuks descreve um outro poderoso motivo que explica como o judeu foi colocado como a quintessência do outro a ser eliminado em sua estranheza inquietante. Refere-se a forma como a religião judaica propõe a idéia de um Deus completamente desmaterializado, inacessível e incompreensível. Dele não se pode construir imagens, sequer pronunciar o nome. É um Deus distante de qualquer familiaridade humana. É o Outro por excelência.

Diz ela: “Freud considerou que essa concepção de um Deus cuja presença se define pela ausência é uma ética de superação das idolatrias. Evidentemente, nada poderia haver de mais insuportável para a economia psíquica da multidão estruturada em torno de um líder carismático, do sentido da imagem e da presença figurada, do que a idéia de uma alteridade sem conteúdo, sem nome, sem essência, transparente como o ar do deserto. Presença do irrepresentável. Uma reflexão imediata nos faz concordar com as idéias do teórico da cultura George Sterner, em suas notas para redefinição de cultura, de que o estranho e compulsivo caráter da massa acabou por alimentar ódios profundos contra aqueles que introduziram o escândalo da alteridade radical, de uma ausência sem limite de tempo, de ontem, de hoje, de sempre”.

A intolerância ao outro, enquanto radical alteridade, leva ao desejo de exterminá-lo, pois sua simples existência questiona o narcisismo que, em seu totalitarismo, não admite diferenças. Esse tipo de atitude leva a situações extremas como o Holocausto, mas está na origem das guerras, das grandes destruições em massa, dos fundamentalismos.

No momento em que vivemos, nada mais apropriado do que o estudo e a reflexão dessas fecundas idéias freudianas. Elas recolocam a psicanálise na polis, participando do incessante debate público que ali se desenrola e fornecendo a ele seus esclarecedores aportes.

Betty Fuks termina seu livro falando da paz, da responsabilidade e da ética, metas ideais só exeqüíveis a partir da compreensão dos mecanismos psíquicos infantis e inconscientes, lá onde mora a loucura dos homens.

(Publicado na revista PERCURSO - No. 33 - ano XVII - 2º. Semestre de 2004


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