Volume 10 - 2005
Editor: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2005 - Vol.10 - Nº 12

Artigo do mês

A LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: CRÔNICA DE UM INSUCESSO ANUNCIADO NA ASSISTÊNCIA À SAÚDE MENTAL?

RODRIGO MACHADO-VIEIRA, PhD. *Médico Psiquiatra, Doutor em Psiquiatria pela USP. Conselheiro da International Society for Bipolar Disorders

Neste momento tão importante na discussão da saúde mental em nosso país, com relatos recentes sobre falta de leitos para portadores de transtornos mentais, a questão doença mental e "loucura" merece algumas reflexões. Sabe-se hoje que cerca de 20 a 30% das pessoas apresentarão em algum momento de suas vidas, alterações compatíveis com quadros como depressão, dependência a drogas e álcool, esquizofrenias, psicoses, quadros de ansiedade e compulsões, entre outros. Assim, a chamada doença mental deve ser claramente discutida em todas as suas variáveis por todos os setores da sociedade. A lei da reforma psiquiátrica em nosso estado prevê o fechamento de todos leitos em hospitais psiquiátricos no período de cinco anos, devendo ser substituídos por leitos em hospitais gerais. Inicialmente a idéia parece boa, mas como acreditar neste modelo, sabendo o que já aconteceu em vários outros países. Assim, cabe discutir os rumos da assistência psiquiátrica no estado, mesmo que para alguns a lei da reforma psiquiátrica esteja perfeita. Qual o caminho a seguir? No passado, os hospitais psiquiátricos eram fontes geradoras dos mais diversos tipos de violações, criando uma visão preconceituosa da psiquiatria na sociedade e estimulando a exclusão social dos chamados "loucos". Neste vácuo de má assistência, surgiram correntes ideológicas como a antipsiquiatria e euromarxismo, que propunham a cura milagrosa ou inexistência das doenças mentais, dizendo que a esquizofrenia era somente falta de amor. Desde este passado, o que foi feito para mudar a chamada "loucura" na sociedade? As chamadas "evidências" que deram origem aos projetos de reforma psiquiátrica, sugeriam que o hospital psiquiátrico fosse por si próprio prejudicial ao indivíduo. Assim, o modelo simplista de reforma psiquiátrica vigente vem baseando toda sua argumentação na questão de haver ou não hospitais psiquiátricos, como se o problema fosse apenas discutir o modelo de atendimento aos psicóticos crônicos que necessitam de asilo e reabilitação. Cabe lembrar que este grupo de pacientes representa hoje uma minoria das internações em psiquiatria. Dependências químicas, depressões, tentativas de suicídio, psicoses transitórias com risco a si e outros, agressividade, alterações do humor e estresses do dia a dia representam a grande maioria das internações atuais. Quando pensamos no famoso Juqueri dos anos 70 e quando vimos filmes caricaturas como "o bicho de sete cabeças", podemos ter a idéia de como era um hospício. Mas como é ou deve ser um bom hospital psiquiátrico? O hospital psiquiátrico, um equipamento essencialmente médico e associado ao tripé assistência, ensino e pesquisa, deve disponibilizar aos pacientes os grandes avanços da psiquiatria dos últimos dez anos, tais como o uso de novas medicações psiquiátricas que melhoram qualidade de vida, reduzem o tempo de hospitalização e os riscos de novas crises. Infelizmente, a diária paga pelo SUS para internação psiquiátrica não cobre os custos da alimentação e higiene destes pacientes. Por exemplo, o preço pago pelo SUS para um transplante de medula cobre mais de cinco mil diárias para pacientes psiquiátricos, o que representaria atender duzentos e cinqüenta pacientes psiquiátricos por vinte dias de hospitalização. Nada contra os transplantes de medula, que são muito importantes, salvam vidas e felizmente são remunerados de acordo com o grau de tecnologia e as necessidades dos hospitais e pacientes que as realizam. Porém, a adequada remuneração à assistência psiquiátrica de qualidade também salva vidas, talvez muito mais vidas de forma direta e indireta que qualquer outra intervenção médica. Assim, em saúde pública, o lema não excluir deve incluir a valorização da assistência psiquiátrica, que inclui equipe multidisciplinar com psiquiatra, psicóloga, enfermagem, terapia ocupacional, nutrição e recreação. Além disso, os custos de medicação psiquiátrica e clínica (afinal pacientes psiquiátricos também apresentam pressão alta, diabetes e outras doenças e precisam ser tratados continuamente para tais doenças), exames, vestuário e higiene destes indivíduos também já estão incluídos nesta diária paga. Será que com trinta reais por dia pagos pelo SUS é possível cobrir todos estes custos e fornecer um atendimento de qualidade? De maneira geral fica difícil, mas a boa vontade de alguns faz lembrar a metáfora do milagre da multiplicação dos pães. A questão não está em onde atender e sim que tipo de atendimento pode ser dispensado a estes indivíduos. Por isto, este ponto deve ser destacado para ampliar a discussão desta reforma psiquiátrica: o mau hospital e o mau tratamento não devem ser confundidos com a hospitalização psiquiátrica por si. Melhor do que fechar hospitais, se deve melhorá-los na sua infra-estrutura, área física e suporte biopsicossocial. Por tudo isto, neste momento deve-se discutir aspectos relacionados aos direitos dos portadores de transtornos mentais e possíveis rumos para a definição de bases sociais, jurídicas e éticas relacionadas ao estudo deste tópico. Ideologias que usam a nova lei da reforma psiquiátrica sem embasamento em pesquisas autênticas, evidências científicas e debates honestos devem ser avaliados com a cautela da razão. É claro que o atendimento extra-hospitalar deve ser priorizado para maior reabilitação social. Contudo, mais importante que leis para fechar hospitais psiquiátricos, deve-se avaliar individualmente seu real papel terapêutico através dos métodos de tratamento aplicados, ao grau de melhora e o tempo de hospitalização dos pacientes. A avaliação continuada da qualidade das instituições psiquiátricas através destes marcadores pode auxiliar a desmistificar o preconceito sobre o real papel terapêutico de bons hospitais psiquiátricos. Somente assim, ainda poderemos evitar os efeitos nefastos do fechamento de leitos psiquiátricos, já observados em países como a Itália, Inglaterra e Estados Unidos. Nestes países, novos leitos em hospitais psiquiátricos modernos tiveram que ser reativados para casos agudos que não podem ser tratados em casa, os quais infelizmente sempre existirão. Nos Estados Unidos, com a aplicação do modelo de tratamento psiquiátrico em albergues, abrigos e outros paliativos, o número de doentes mentais nos presídios e nas ruas como indigentes quadruplicou, bem como os índices de violência urbana, devido à falta de leitos psiquiátricos para todos que precisem de tratamento em ambiente protegido. Todo cuidado é pouco para não trilharmos este caminho doloroso ocorrido em outros países, que no início pode parecer tão simpático como conceito teórico. Mas na prática, será este o modelo de assistência em saúde mental que a nossa sociedade precisa?


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