Volume 10 - 2005
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2005 - Vol.10 - Nš 1

Artigo do mês

Algumas considerações sobre a psicologia da esquizofrenia

Marcio de Vasconcellos Pinheiro

Falar sobre esquizofrenia, para mim, nunca foi tarefa fácil. Existe muito que nós não conhecemos e ficamos então à mercê das diversas hipóteses, modelos e teorias existentes. Não temos certeza de ela ser uma desordem única ou múltipla. Nem podemos afirmar qual teoria, isolada ou associada à outras, é a mais verdadeira. A doença permanece um enigma para a psiquiatria.

Pesquisas relacionadas com a esquizofrenia têm sido feitas em muitas direções. Para citar apenas algumas, podemos falar das genéticas, bioquímicas e anatômicas; as relacionadas com o desenvolvimento da personalidade, a psicodinâmica individual e da família; as lingüísticas e sócio-culturais. A literatura é vasta, mas não conclusiva.

Focalizarei apenas na dimensão psicológica da desordem. Entre as muitas existentes, provavelmente todas com algum fundamento, acho interessante a teoria interpessoal do psiquiatra e psicanalista norte-americano Harry Stack Sullivan Reafirmo que ela representa apenas um ponto de vista na tentativa do entendimento psicológico da desordem entre outras mais ou menos fundamentadas e não mutuamente excludentes.

Sullivan, nos anos 1950, trabalhou intensamente com pacientes esquizofrênicos masculinos e jovens na sua enfermaria no Hospital Sheppard & Enoch Pratt, em Baltimore nos Estados Unidos. Naquela época, inexistindo medicações psiquiátricas, ele teve considerável sucesso com esses pacientes, tratando-os numa comunidade terapêutica com psicoterapia psicanalítica individual.

A partir dessa experiência Sullivan construiu a sua Teoria Interpessoal da Psiquiatria. Ele se interessou pelo que se passa entre as pessoas e não dentro de cada uma. Para ele, a esquizofrenia estava relacionada com o desenvolvimento da criança junto às pessoas significativas da sua história, geralmente a família. Na medida que desenvolve, para se sentir segura e sem grandes ansiedades, ela dissocia experiências perturbadoras. Essas experiências começam muito cedo na relação entre o bebê e a mãe, mas se somam a outras durante o crescimento emocional, levando a novas dissociações que impedem uma boa integração do ego. Quando chega o fim da adolescência, momento no qual as questões relacionadas com a intimidade sexual, identidade ocupacional e separação dos pais se tornam importantes, o jovem, que já vinha crescendo com partes não integradas na personalidade, se desorganiza, regride e subitamente se vê invadido por essas experiências dissociadas, entrando no episódio esquizofrênico agudo.

De acordo com Otto Allen Will Jr, discípulo e analisando de Sullivan, a partir deste episódio, o paciente poderá caminhar em várias direções: crescer emocionalmente integrando essas experiências através da psicoterapia, permanecer esquizofrênico indiferenciado, se reorganizar mentalmente numa posição paranóide ou permanecer desorganizado como ocorre na hebefrenia.

Acredito que o paciente esquizofrênico não tenha uma estrutura psíquica qualitativamente diferente dos demais. Acredito com Sullivan, que "somos todos muito mais humanos do que não", e que as diferenças existentes entre as pessoas esquizofrênicas e as que não sofrem dessa desordem são mais quantitativas. Afinal, pessoas não esquizofrênicas também têm seus núcleos psicóticos e sonham o que os psicóticos vivem.

Quando lidamos com a esquizofrenia, devemos considerar evidências que venham de todas as fontes. A tentativa de abordar a desordem com um único e imutável referencial teórico pode nos levar ao fracasso terapêutico. É natural que um psiquiatra jovem que começa a trabalhar com a esquizofrenia possa precisar de um referencial teórico único para diminuir a sua ansiedade frente à desordem. Com maturidade, ele poderá superar essa necessidade e considerar outras evidências.

A vontade de teorizar sobre a esquizofrenia pode ser uma reação contra-transferencial que aparece quando ficamos ansiosos frente à desorganização, o caos e o enigma apresentados pelo paciente.

Devido às nossas incertezas, devemos ser humildes e aceitar que o tratamento da esquizofrenia só ocorre a partir de tentativas e erros, na medida que vamos conhecendo o paciente, sua família e os recursos existentes na comunidade. Antes de fazer suas intervenções terapêuticas o psiquiatra deve ficar atento aos muitos indicadores que nortearão as suas decisões em determinado momento. Isto é semelhante ao que faz o piloto de avião que nunca se concentra num único instrumento mas está sempre correndo os olhos em todos, antes de fazer seus movimentos.

Cito alguns indicadores que devem ser considerados pelo psiquiatra antes de suas intervenções terapêuticas: o estado mental do paciente, sua aliança de trabalho e as distorções transferenciais, sua psicodinâmica e a sua história pessoal, suas condições de moradia, suas atividades diárias, seus relacionamentos com os familiares, a aderência à medicação, os riscos para si mesmos e terceiros e a situação econômica. Num determinado momento do tratamento podemos alterar a medicação ou focalizar nos conflitos intrapsíquicos ou fazer uma reunião de família. Podemos também alterar a frequência das sessões, recomendar mudança de residência, atendimento num Hospital Dia ou até mesmo uma internação.

Raros são os tratamentos de pacientes com esquizofrenia que podem ser feitos apenas no consultório. O psiquiatra que se propõe a tratar de pacientes sofrendo de esquizofrenia deve se situar dentro do contexto sócio cultural no qual ele e o paciente se inserem. Ele deve se tornar parte de uma equipe multidisciplinar e de uma rede de atendimentos que começa no consultório e pode ir até ao hospital, passando por programas comunitários. Ele deve estar preparado para usar esses recursos comunitários na medida que o tratamento progride ou regride. Além disso, ele deve ser flexível nos seus horários, especialmente nos momentos de crise.

A meu ver, a psicoterapia psicanalítica é um componente importante do tratamento multidisciplinar da esquizofrenia. Existe até uma relação entre a psicoterapia e a medicação. Quanto mais freqüente e eficiente for a psicoterapia, menor será a necessidade dos neurolépticos. Quem faz psicoterapia psicanalítica com um paciente esquizofrênico deve ter conhecimentos sobre o desenvolvimento da personalidade, especialmente nos primeiros anos de vida. Incluo neste rol de conhecimentos desejáveis o processo de separação-individuação e as defesas primitivas do ego: negação (forclusão), identificação projetiva e introjetiva, retraimento e cisão.

O retraimento do paciente esquizofrênico é de certo interesse. Há tempos acreditava-se que ele se retraia por medo de ser ferido no relacionamento interpessoal. Apesar disso ocorrer, hoje sabemos que ele aparece também por medo de destruir a pessoa de quem o paciente depende. O esquizofrênico não consegue ser ambivalente, isso é, ele separa o "eu bom" do "eu mau" e o "objeto bom" do "objeto mau" para proteger o relacionamento, por medo de destruir o objeto amado. Isso contrasta com o paciente deprimido que consegue ser ambivalente e cujo medo é de ser abandonado pelo objeto se expressar sua agressividade. Por isso, quando um paciente esquizofrênico fica deprimido isso pode ser visto como uma melhora no quadro clínico.

Não raro, devido a limites do ego não muito claros e a uma frágil sensação de existência autônoma separada dos outros, o paciente esquizofrênico fica negativista, isto é, não concorda com nada que falam ou propõem. Isso tem a função de lhe dar uma melhor sensação de sua existência separada do outro. Se o profissional entende o negativismo por esse prisma ele fica em condições de lidar com paciente quando ele apresenta este comportamento, sem concluir que ele "não está cooperando" ou está "resistindo ao tratamento."

Para Sullivan, ao fazer psicoterapia com a pessoa que sofre de esquizofrenia não é possível ao psicanalista permanecer sempre neutro e não transparente como no trabalho com um paciente neurótico. Daí o seu conceito de "participante-observador", isto é, o psicanalista interage com o paciente observando o que ocorre entre eles num processo no qual ele aprenderá não só sobre o paciente mas sobre si mesmo. Nesse relacionamento o psicanalista observará os fenômenos transferenciais e contra-tranferenciais no aqui e agora, na medida que o paciente revive e relata a sua história com as pessoas significativas do seu passado.

Como disse acima existem muitos modelos para a psicoterapia da esquizofrenia, mas não existe pesquisa que mostre que um seja mais eficiente do que os outros. Mas as pesquisas mostram que o encontro do paciente com um profissional empático que o escuta, apoia e tenta entendê-lo é sempre útil, independente da escola que ele segue.

Otto Allen Will Jr. assim descreve o que os terapeutas bem sucedidos com pacientes esquizofrênicos têm em comum:

  1. O paciente não é visto como um caso perdido ou como a caricatura inferior de um ser humano. Seu comportamento, mesmo que pareça incompreensível é considerado como exercendo uma função e, portanto, estando sujeito ao entendimento ainda que não se insista que tudo deva ser entendido.
  2. O comportamento é considerado como relacionado com as experiências passadas, mas a ênfase é colocada no entendimento da interação terapeuta-paciente no presente mutuamente observável.
  3. Atenção é prestada à significação simbólica da atividade verbal e não verbal do paciente.
  4. A confiança é depositada no relacionamento humano que se desenvolve entre os dois como o fator maior na redução da ansiedade, insight progressivo e oportunidade de aprendizagem para uma melhor expressão da personalidade.
  5. O terapeuta tem respeito pelo paciente e desenvolve uma estima por ele, que não é restritiva e permite o crescimento incluindo o reconhecimento de uma eventual separação com o fim do tratamento.
  6. O terapeuta tem esperança e a sua expectativa de melhora não será abandonada ou derrotada por causa do comportamento do paciente.
  7. O terapeuta insiste em definir o seu papel no relacionamento com seu paciente, recusando as suas tentativas do mesmo de evitar tal definição através do retraimento, insistência que nunca irá mudar, de não ter problemas ou do terapeuta não significar nada para ele.
  8. O envolvimento do terapeuta é visto como um processo interativo que tanto o paciente quanto o terapeuta devem observar enquanto dele participam. Ambos aprenderão e estarão sujeitos à ansiedade, sentirão mudanças nas suas personalidades e crescerão emocionalmente. Isso não quer dizer que o terapeuta seja igual ao paciente. Devido à sua experiência, formação e certos aspectos mais saudáveis da sua personalidade, ele é o entendido. Ele deve guiar e com segurança comandar o tratamento.

O terapeuta deve ser modesto nas suas metas terapêuticas. O tratamento é muito mais lento do que o de um neurótico. O paciente que sofreu de esquizofrenia, mesmo quando recuperado, provavelmente não será um extrovertido de grande sucesso social. Em muitos casos ele também não se identificará com a "normalidade" na cultura. Habitualmente ele permanecerá introspectivo, freqüentemente criativo e muito cuidadoso nos seus relacionamentos interpessoais.

Na psiquiatria norte-americana contemporânea há ênfase no cérebro e na medicação. A psicoterapia, especialmente a psicanalítica, chega ser contra-indicada. Alguns grupos afirmam que as intervenções terapêuticas devem se limitar à medicação e à psico-educação, isto é, ensinar o paciente e sua família sobre a doença, como os médicos fazem com a diabetes. Não podemos negar que a medicação e a psico-educação possam ter um lugar no tratamento, mas se forem exclusivas iremos dar uma mensagem ao paciente de ele estar sofrendo de uma doença cerebral sem qualquer relação com a sua história interpessoal, bloqueando assim qualquer trabalho psicológico na direção do insight. Nos Estados Unidos existe um grupo afiliado à Sociedade Internacional Pró Tratamentos Psicológicos das Esquizofrenias e Outras Psicoses (ISPS). Esta organização, representada em muitos países, promove a integração dos tratamentos psicológicos na abordagem da esquizofrenia e outras psicoses. Ela também divulga resultados de pesquisas, confirmando a eficiência dos tratamentos psicológicos (as terapias pela fala), oferecendo educação continuada para os profissionais que se interessam por esse trabalho. Ela pode se acessada na Internet: www.isps.org.

As pessoas que sofrem de esquizofrenia cresceram em famílias conflitadas, com relacionamentos conturbados. Essas famílias têm sido bastante estudadas. Desses estudos vieram muitos conceitos clinicamente úteis tais como famílias indiferenciadas, famílias cindidas e mensagens de duplo vínculo e sentido. As comunicações verbais nessas famílias muitas vezes não são significativas, levando a uma perda da confiança na palavra falada entre os seus membros.

É importante trabalhar com as famílias por varias razões. A mais prática e imediata é a questão econômica. Geralmente o membro enfermo da família, em grandes períodos de sua vida, não consegue trabalhar e arcar com os custos do seu atendimento. Mas, esta não é a parte mais importante. A família pode sem saber atrapalhar o tratamento, bloqueando inconscientemente o seu progresso para inconscientemente manter o paciente na posição de "paciente identificado", com isso preservando o equilíbrio intra-familiar. Mas a família pode também ser útil e flexível, dando espaço para que o tratamento progrida. Na medida que isso ocorre todos na família crescerão emocionalmente. Isso para não falar do profissional..

O terapeuta não deve se negar a comunicar com sua família. O que ele pode fazer é deixar claro que, ao ter contato com a família, ele estará sempre considerando o que é importante para o tratamento do paciente. A questão então será se ele tem confiança no seu juízo clinico quando ele se encontra com a família.

É importante que o psiquiatra se mantenha neutro nos conflitos inevitáveis entre na família. Se ele se identificar com seu paciente quando o mesmo culpa a família, não haverá progresso no tratamento. Ele não poderá "salva-lo" de sua família e ficará impedido de observar a forma como ele também colabora para a formação desses conflitos. Num tratamento bem sucedido ele se perdoará de ter tido os sentimentos com relação às pessoas significativas de sua história e as perdoará por terem provocado tais sentimentos. Se ele fica culpando a família pela sua desordem mental provavelmente continuará doente como uma forma de castigá-la.

Existem situações nas quais o ambiente familiar é tão conturbado que se torna necessário separar o paciente de sua família. Temos então de contar, na rede de atendimentos comunitários, com as casas de meio caminho e pensões supervisionadas.

Resumo

Deixando de lado as outras dimensões da esquizofrenia, chamamos a atenção para os seus aspectos psicológicos. Reconhecemos o muito que ainda não sabemos sobre a desordem e mencionamos as pesquisas que têm sido feitos em várias direções. Falamos do atendimento psicológico à pessoa que sofre de esquizofrenia e à sua família como um processo de tentativa e erro sujeito a revisões e mudanças. Falamos dos progressos na psiquiatria, especialmente na área do atendimento psicossocial no qual o psiquiatra passa a ser um elo na cadeia de múltiplos atendimentos. Afirmamos a importância da psicoterapia psicanalítica como parte do tratamento multidimensional e enfatizamos a necessidade do atendimento paralelo à família.


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