Volume 10 - 2005
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2005 - Vol.10 - Nº 1

Artigo do mês

Vulnerabilidade a dependência ao álcool em paciente indígena: relato de caso
Alcohol dependence vulnerability in an indian patient: case report

Maximiliano Loiola Ponte de Souza
Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia. Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia.

Resumo:

O autor descreve um caso de dependência ao álcool em um paciente indígena de 60 anos, procedente da região do Alto Rio Negro, localizada no noroeste do estado do Amazonas, Brasil. Discute a importância da análise de elementos sócio-culturais contribuindo para instalação do quadro,apresentando a importância da migração aldeia-cidade como fenômeno importante para compreensão dos fatores de vulnerabilidade para o desenvolvimento problemas relacionados ao uso de álcool em populações indígenas .

Descritores: Dependência ao álcool, índios sul-americanos; comparação transcultural.

Abstract:

The author describes a case of alcohol dependence in a Brazilian-Indian patient of 60 years, originated from the “Alto Rio Negro” region, located in the northwest of the state of Amazon, Brazil. Discusses the importance of the analysis of social-cultural elements contributing for installation of the case, presenting the importance of the village-city migration as important phenomenon for understanding of the vulnerability factors for the alcohol use problems development in the native populations.

Keywords Alcohol Dependence, south american Indians; transcultural comparison

INTRODUÇÃO

A literatura internacional vem associado o uso de álcool por populações indígenas ao incremento das mortes por causas externas1, 2, bem como ao aumento do uso de drogas ilícitas entre adolescentes 3 . Aponta também para maiores taxas de prevalência de problemas relacionados ao uso de álcool nesta população 4,5, No Brasil, pesquisas vêm demonstrando a associação do uso de álcool e violência6, 7 8, 9. Outros trabalhos vêm corroborando os dados internacionais a respeito das taxas maiores de prevalência 10, 11.

Considerando-se a formulação de Langdon12 “que o que beber, quando beber e como beber variam de grupo para grupo”, se fazem necessários estudos que ao abordar a questão do uso de bebidas alcoólicas considerem as peculiaridades culturais dos diferentes grupos indígenas, bem como possam agregar os conhecimentos sobre a história de contato destes com a sociedade nacional. Assim, a relevância deste trabalho está em apresentar um relato de caso de dependência ao álcool, explorando os aspectos culturais e de contato de indígenas do tronco lingüístico Tukano Oriental, da região do Alto Rio Negro (ARN), localizada na região noroeste do Estado do Amazonas.

Breves considerações sobre o tronco lingüístico Tukano Oriental

O tronco lingüístico Tukano Oriental é formado por diferentes grupos (Tukano, Dessano, etc), falantes de línguas distintas. O casamento é realizado de forma preferencial entre grupos distintos, uma vez realizado, a mulher se transferirá para a comunidade do marido. O filho do casal será considerado como pertencente exclusivamente ao grupo do pai. Possuem uma organização hierarquizada, onde os grupos são divididos em níveis de status diferentes, associados a descendência de um ancestral mítico 13,14,15.

Fazem uso tradicional de uma bebida fermentada, chamada de caxiri, consumida em situações de festas e quando da realização de trabalhos coletivos. O uso se dá a partir da infância, entretanto as crianças fazem uso de um caxiri fraco, pouco fermentado. De forma tradicional o uso do caxiri forte se dava somente após a passagem do jovem pelo ritual de iniciação masculina, no início da puberdade, período em que o jovem adquiria de forma intensiva conhecimentos a respeito da cultura do grupo.

Os indígenas da região estão em contato com a sociedade nacional há pelo menos três séculos. Desde o último século a ação missionária Salesiana vem influenciando a organização social dos povos do ARN, promovendo a concentração dos vários grupos em povoados, e principalmente instalando nas missões internatos para educação formal dos jovens16. A partir dos anos setenta do século passado houve um incremento da presença de empresas na região associado aos projetos federais de integração da Amazônia ao restante do Brasil.

APRESENTAÇÃO

Identificação:

Masculino, casado, Dessano, membro de um clã de alto status, residente há trinta anos na cidade de São Gabriel da Cachoeira (SGC).

Motivo da avaliação:

Veio para avaliação da capacidade laboral após seis meses de licença médica em virtude de faltas ao trabalho decorrente do uso de álcool.

História da Moléstia Atual:

Iniciou uso de caxiri fraco aos 4 anos. Aos onze, foi estudar em um internado, não passando, pelo ritual de iniciação masculina. Após a quinta série, iniciou curso de carpintaria que durou três anos. Posteriormente foi para Manaus, onde permaneceu por dois anos, estudando num seminário. Não concluiu a formação sacerdotal. Durante o período que esteve pelos internatos não fazia uso de álcool. Retornou para a sua comunidade para assumir o provento da família após a morte do pai e a ida dos irmãos mais velhos para os seringais na Colômbia. Logo a seguir foi trabalhar em um centro missionário como instrutor de carpintaria, lá se casou. Neste local, aos 22 anos, pela primeira vez tomou cachaça, oferecida por um comerciante como pagamento por ter ajudado a atravessar um barco acima das cachoeiras. Este comerciante passou a de forma sistemática navegar pela região, pagando os serviços dos indígenas com cachaça. Dois anos após, seus irmãos voltaram da Colômbia e o paciente retornou para sua comunidade, assumindo o posto de catequista. Em virtude deste cargo, se desentendeu com seu irmão, que havia assumido a chefia da comunidade, por repreendê-lo por não comparecer as cerimônias religiosas. Numa festa, após consumo caxiri, seu irmão tentou lhe matar e ele fugiu da comunidade. No início da década de setenta, migra sem a família para SGC, para trabalhar nas empresas que chegaram a cidade. Morando na zona urbana, passa a usar cachaça nos sábados e domingos, com outros trabalhadores. Em média, nestas ocasiões, consumia dois litros de cachaça. Nega que nesta época tivesse algum tipo de problema relacionado ao álcool. A seguir trouxe sua família, e a empresa em que trabalhava foi embora. Há 22 anos passou a trabalhar num órgão público. A partir dessa época passou a fazer uso diário de cachaça após o trabalho. A filha do paciente refere que o paciente ficava violento, agressivo com filhos e esposa. Nos últimos dois anos passou a faltar o trabalho em virtude do consumo de álcool. Gastava muito dinheiro com bebida, chegando a gastar todo o seu salário em um dia. Parando o consumo, apresentava sintomas de abstinência com tremores, ansiedade e alucinações visuais. Não conseguia ajudar sua esposa nos trabalhos em um sítio, pois no caminho encontrava amigos e passava a beber. Constantemente alcoolizado, o paciente apresentava discurso ilógico, referindo que suas filhas foram estupradas e que militares e garimpeiros estavam lhe perseguindo. Por conta das faltas ao trabalho foi afastado de suas atividades por seis meses. Após este período veio para avaliação psiquiátrica de sua capacidade laboral para retorno ao trabalho.

História familiar:

Quatro de seus sete filhos apresentam problemas relacionados ao uso de álcool, dois deles já foram internados em clínicas para dependentes.

Exame Mental:

Higienizado, colaborativo, atento, vigil, orientado, lógico e coerente, memória globalmente preservada, eutímico e juízo crítico preservado.

DISCUSSÃO

O diagnóstico de dependência ao álcool é obvio. Entretanto não é a dificuldade diagnóstica que torna este caso relevante, mas sim a possibilidade de discussão sobre possíveis fatores sócio-culturais que contribuíram para a instalação do quadro, vulnerabilizando o paciente. Tem-se a clareza, entretanto, da multicaulidade deste transtorno, reconhece-se a importância biológica, mas por uma opção não se discutirá este aspecto.

O estudo em internato afastou o paciente do convívio com sua família e impediu que ele passasse pelo ritual de iniciação. Tal fato é relevante visto que o aprendizado das normas culturais dá-se principalmente pelo convívio com familiares e pela obtenção de forma intensiva de informações quando do ritual de iniciação 13. A escola religiosa cumprindo a missão de promover o assimilamento dos indígenas a sociedade nacional afastou o paciente da forma tradicional de vida. Incutindo-lhe uma moral católica, contribuiu para indispô-lo com seu irmão. Dando-lhe uma nova profissão trouxe-lhe a necessidade de trabalho remunerado para aquisição de bens. Tais fatos em conjunto colaboraram para migração para a cidade.

Na cidade, exercendo inicialmente trabalhos precarizados, foi destituído do status que antes gozava. A socialização com os colegas de trabalho dava-se pela ingesta de álcool. O acesso constante a bebida, permitida pelo salário, com a ausência das limitações para o uso, advindas da cultura e o consumo dentro de uma lógica urbana (o trago após o trabalho), contribuíram com a utilização diária da cachaça, contribuindo para a instalação do quadro de dependência.

Referências

  1. Kraus RF, BUFLER PA. Sociocultural stress and the American native in Alaska: an analysis of changing patterns of psychiatric illness and alcohol abuse among Alaska natives. Cult Med Psychiatry 1979; Jun;3(2):111-51.
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  3. Federman EB, Costello EJ, Angold A, Farmer EM, Erkanli A. Development of substance use and psychiatric comorbidity in an epidemiologic study of white and American Indian young adolescents the Great Smoky Mountains Study. Drug Alcohol Depend 1997; Mar 14;44(2-3):69-78.
  4. Leung PK, Boehnlein J, Matsunaga D, johnson R, Manson S, Shore JH, Heinz J, Willians M. Psychiatric epidemiology of an Indian village. A 19-year replication study. J Nerv Ment Dis 1992; Jan;180(1):33-9.
  5. Howard MO, Walker RD, Suchinsky RT, Anderson B. Substance-use and psychiatric disorders among American Indian veterans. Subst Use Misuse 1996; Apr;31(5):581-98.
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  7. Oliveira M. Uso de bebidas alcoólicas e alcoolismo entrer os Kaingang da Bacia do Rio Tibagi: uma proposta de prevenção e intervenção. In: Jeolás LS, Oliveira M (organizadores) Anais sobre o seminário sobre Cultura, Saúde e Doença. Londrina: as organizadoras; 2003. p. 43-65.
  8. Pauletti M, Shneider N, Mangolim O. Por que os Guarani-Koivá se suicidam? Espaço e vida dos índios Guarani-Koivá do Mato Grosso do Sul: Histórico, contexto e Análise do Suicídio. Campo Grande: CIMI-MS; 1997.
  9. Erthal RMC. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cad. Saúde Pública, 2001, Mar 17(2):.299-311.
  10. Albuquerque JLA, Souza JA. Prevalência de alcoolismo na população indígena da Nação Terena do Complexo Sidrolândia-Colônia dois Irmãos do Buriti. In: Ministério da Saúde: Anais do I Seminário da I Oficina Macro Regional de Estratégia, Prevenção e Controle de DST/AIDS para Populações Indígenas das Regiões Sul, Sudeste e do Mato Grosso do Sul, Londrina; 1997.
  11. Souza JA, Aguiar JA. Alcoolismo em população Terena no Estado do Mato Grosso do Sul- impacto da sociedade envolvente. In: : Seminário sobre alcoolismo e DST/AIDS entre os povos indígenas. Brasília: Ministério da Saúde/ Secretaria de Políticas de Saúde/ Coordenação Nacional de DST e AIDS; 2001. p. 149-165.
  12. LANGDON, J. E. O que beber, como beber e quando beber: o contexto sociocultural no alcoolismo entre as populações indígenas. In: : Seminário sobre alcoolismo e DST/AIDS entre os povos indígenas. Brasília: Ministério da Saúde/ Secretaria de Políticas de Saúde/ Coordenação Nacional de DST e AIDS; 2001. p. 83-97.
  13. Jackson JE. The fish people: linguistic exomamy and Tukanoan Identity in Northwest Amazon. Cambridge University Press: Cambridge; 1983.
  14. Chernela JM. Hierarchy and Economy in the Uanano (Kotiria) speaking peoples of middle basin [tese de doutorado]. Columbia University; 1983 .
  15. Buchillet D. Os índios da região do Alto Rio Negro: História, etnografia e situação das terras. Mimeo; 1991.
  16. Oliveira AG. O mundo transformado: um estudo da “cultura de fronteira” no Alto Rio Negro. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; 1995.

Correspondência dirigir para:

Endereço para correspondência: Rua Teresina, número 476, Bairro Adrianópolis, CEP 69057-070, Manaus-AM. e-mail: [email protected]
Local onde trabalho foi realizado: Ambulatório Rosa Blaya, do Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, da Secretaria de Estado da Saúde, do Estado do Amazonas.
O trabalho não contou com apoio financeiro


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