Volume 9 - 2004
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2004 - Vol.9 - Nº 3

No Paiz dos Yankees

Sobre a natureza e a extensão do abuso sexual infantil na Igreja Católica
Comentários sobre uma palestra de Paul McHugh.

Dr. Erick Messias

Padres abusando crianças sexualmente, bispos encobrindo esse ato abominável, um poderoso cardeal obrigado a depor na justiça, milhões de dólares em idenização: essas foram algumas das manchetes sobre a Igreja Católica nos Estados Unidos nos últimos anos. Entre as várias resposta a tal vexame, a conferência dos bispos americanos encomendou um estudo epidemiológico descritivo sobre a situação. Entre os 13 notáveis convidados a participar da comissão leiga encarregada de supervisionar e coordenar o estudo estava Paul McHugh, até pouco tempo chefe do departamento de psiquiatria da Johns Hopkins, que veio apresentar os resultados do estudo na conferencia semanal do departamento de saúde mental da Escola de Saúde Pública. Essa palestra é relevante na medida em que mostra um dos usos da epidemiologia, nesse caso quantificar e localizar um problema, e o papel da perspectiva da saúde mental sobre tal problema.

O John Jay College de justiça criminal foi encarregado de conduzir o estudo, contando com a colaboração de 195 dioceses nos Estados Unidos (97% de cobertura). O estudo tinha os seguintes objetivos:

  1. Examinar a quantidade e natureza das alegações de abuso sexual de menores por padres católicos entre 1950 e 2002.
  2. Coletar informações acerca dos supostos abusadores, incluindo sua posição na congregação, idade, número de vítimas, respostas da igreja e das autoridades sobre as acusações, e outras características dos mesmos.
  3. Coletar informações sobre as supostas vítimas, a natureza da relacão com os abusadores, a natureza do abuso, e o intervalo até a denúncia.
  4. Coletar informações sobre o impacto financeiro do abuso sobre a igreja.

Nessa coluna trataremos dos 2 primeiros pontos. O estudo completo pode ser baixado do sítio: http://www.jjay.cuny.edu/churchstudy/main.asp

A primeira pergunta de um epidemiologista é: qual o tamanho do problema? Nessa caso o tamanho do problema pode ser resumido respondendo a pergunta: quantos padres foram acusados de abuso sexual de menores, entre 1950 e 2002? O estudo chegou a conclusão que 4392 padres foram acusados de abuso sexual, e essas acusações não foram retiradas ou provadas falsas, entre 1950 e 2002. Utilizando o censo das dioceses americanas esse número indica que 4% dos padres ativos durante esse período foram acusados de abuso.

A próxima pergunta do epidemiologista é: esse número configura uma epidemia? Uma epidemia é uma distribuição de casos acima do número esperado. Para tanto, precisamos ter uma expectativa como ponto de comparação. Uma das maneiras de fazer essa comparação é observar a distribuição de casos no decorrer do tempo. Baseado nessa distribuição o estudo concluio que houve um aumento gradual de alegações de abuso sexual a partir da segunda metada dos anos 60, com um pico em 1970, acompanhado de uma gradual redução a partir de então. O gráfico abaixo, parte do estudo original, apresenta a distribuição das acusações por ano.

Uma terceira pergunta se destina a saber quem seriam esses padres envolvidos nos abusos. Os dados levantados pelo estudo apontam para padres ordenados entre 1950 e 1979, tendo esses recebido 68% das acusações, comparados com aqueles ordenados antes de 1950 (21,3%) e depois de 1979 (10,7%). Quanto à idade, padres entre 30 e 39 anos foram envolvidos em 40% das acusações, enquanto 20% envolviam padres com menos de 30 anos.

Há mais detalhes, e outras respostas, no estudo completo - que vale a pena uma leitura atenta para aqueles interessados no assunto. O que não se sabe ainda são as causas para essa aparente epidemia ocorrida no começo dos anos 70. A Igreja mantem o compromisso de busca-las e evitar a repetição desse episódio vergonhoso. Eu fico cá com minhas próprias interrogações como psiquiatra, brasileiro, e como católico. O psiquiatra fica intrigado com esse tipo de perversão, que leva homens feitos, cultos, a praticar tal ação, condenável sobre aspectos morais, legais, e religiosos. O brasileiro distante fica pensando quais as ações tomadas pela CNBB diante desse escândalo americano, e se houve algum debate sobre abuso sexual de menores por padres no maior país católico do mundo? E o católico mantem a fé nessa Igreja, que sustenta a vida espiritual do retirante nordestino trabalhando em São Paulo - ou em Baltimore, dos devotos em Juazeiro, em Quixadá, e em tantos outros templos de peregrinação no nosso país, e cujos sinos ainda marcam o tempo e a vida no sertão profundo do Brasil.


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