Volume 8 - 2003
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2003 - Vol.8 - Nº 8

História da Psiquiatria

Nina Rodrigues II

Dr. Walmor J. Piccinini

1862-1906

Como já destacamos na primeira parte dessa biografia de Nina Rodrigues, sua fama e prestígio foram construídos por seus discípulos. Entre eles, o mais brilhante foi, Afrânio Coutinho, seguido de Arhur Ramos e Oscar Freire. A razão dessa dedicação pode estar ligada à atuação de Nina Rodrigues como professor, homem de idéias e crítico da Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia, e por fim, talvez o fato mais significativo, foi ter morrido jovem, com 44 anos de idade, num momento que Afrânio, já no Rio de Janeiro batalhava por reformas na Assistência Médico-Legal. A idéia de uma Escola de Medicina-Legal formada por vários juristas e médicos nordestinos serviu como fator de aglutinação de uma plêiade de jovens talentosos.

Nina Rodrigues não chegou a desenvolver uma obra consistente e inovadora, acreditamos que não teve tempo para amadurecer suas idéias. Ele entrou para a Escola Tropicalista no seu ocaso. Foi Diretor da prestigiosa Gazeta da Bahia e desenvolveu alguns trabalhos na área da epidemiologia muito bem apresentados por Jacobina, RR e Carvalho,FM. (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000200006&
lng=en&nrm=iso
). As idéias sobre o beribéri, bastante corajosas, nos pareceram tiradas de Silva Lima um português baiano de muitos méritos. Suas idéias de medicina-legal repousam nos trabalhos de César Lombroso (1835-1909). “Atavismo criminoso”, “criminalidade das raças inferiores”, “craniometria criminal”, “criminoso nato”, “regionalização penal”. Estas idéias foram desenvolvidas por Lombroso no seu famoso livro “O criminoso nato”. (Foi editado recentemente no Brasil por Ricardo Lenz Editor sob o título de “O Homem Delinqüente”.) Lombroso é considerado o fundador da criminologia moderna. Era judeu, positivista, biologista e no final da vida tornou-se espírita. Seus trabalhos ainda despertam interesse e sugiro a leitura de (http://human-nature.com/nibbs/03/gibson.html). Lombroso é o responsável pela mudança de enfoque no direito penal. Beccária centrava no crime, Lombroso no criminoso e mais tarde Lacassagne, Ferri e Garofalo, os dois últimos discípulos e colaboradores de Lombroso passaram a enfocar as condições de meio ambiente.

Lombroso é muito criticado pelo exagero na “anatomia do criminoso”, mas a idéia de fatores bioquímicos e genéticos relacionados à criminalidade tem muitos defensores nos dias atuais.

Voltando ao nosso biografado que também, como Lombroso, era positivista e socialista, devemos chamar a atenção para o seu trabalho que consideramos o mais importante e de valor inestimável que Nina Rodrigues nos deixou, foi sua pesquisa permanente, sobre as origens dos negros africanos, seus descendentes, seus costumes, língua e religião.

As obras de Nina Rodrigues estavam no esquecimento até a década de 1930-40 quando foram reeditadas, por Homero Pires, Afrânio Peixoto e Arthur Ramos. O que era para ser uma consagração virou pesadelo. Nina Rodrigues passou a ser visto como o representante do “racismo científico”, “arianista”, e alguém mais inflamado o chamou de “protonazista”.

Citações.

“No ponto de vista histórico e social penso com o Dr. Sylvio Romero, todo o Brasileiro é mestiço se não no sangue, pelo menos nas idéias”. (NR.As Raças Humanas Cap 2.).

É exato que os numerosos milhões de africanos introduzidos pelo tráfico sofreram uma redução extraordinária. Mas não foi isso obra do clima ou de uma incapacidade de adaptação, mas tão somente efeito da escravidão” (NR. As Raças Humanas).

"Os Africanos no Brasil" (pág.28) "Os Africanos no Brasil" .

"A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços a nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”. Esta afirmação tem sido utilizada para acusar NR de racismo. Thomas Skidmore em Preto no Branco afirma que, NR, aceitou as teorias racistas estrangeiras.

Nesse segundo ensaio sobre Nina Rodrigues utilizei dois dos seus livros. Os Africanos no Brasil e as Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. Um terceiro pode ser encontrado na Internet (http://www.dtremel.hpg.ig.com.br/bibliovirtu/ninarodrigues.htm).

Na introdução da “História Geral da Medicina Brasileira” Lycurgo Santos Filho adota a periodização proposta por Antônio Caldas Coni que escreveu sobre a “Escola Tropicalista Baiana” (1952, Liv. Progresso Editor). No seu estudo, Coni, propôs a divisão da Medicina Baiana em três épocas ou estágios da sua evolução.

1. “Época Empírica” de 1500 a 1808. (Lycurgo chamou de Medicina dos físicos e cirurgiões, curiosos e feiticeiros).

2. “Época dos Sistemas Teóricos” (pré-científica), de 1808 a 1866 (ano do aparecimento da Gazeta Médica da Bahia).

3. “Época Científica” de 1866 até nossos dias.Essa última foi dividida por Coni em três períodos: “Áureo” (tempo de Wucherer, Paterson e Silva Lima com seus estudos sobre ancilostomíase, filariose,ofidismo,beribéri, ainhum), “Decadência” (estagnação e retrocesso) e “Reação de Nina Rodrigues” (aparecimento de escola médico-legal).

Raimundo Nina Rodrigues, médico, etnólogo, antropólogo nasceu em Vargem Grande,MA em 14.12.1862 e faleceu em Paris, França em 17.07 de 1906. Estudou Medicina na Bahia, mas fez seu último ano no Rio de Janeiro. Retornando à Bahia ligou-se aos remanescentes da Escola Tropicalista Baiana e desenvolveu uma série de atividades médicas que dividimos em fases, não necessariamente cronológicas, pois se entrecruzam, mas de cunho didático, já que foram múltiplas suas atividades.

Na primeira fase que denominamos de higiene médica, ele estudou a morbidez das raças brasileiras. Isto é, as principais doenças que afetavam os escravos, mestiços e brancos. Dentro dessa fase colocamos seu trabalho sobre Beribéri tão bem descrito por Jacobina RR e Carvalho FM. “À frente de seu tempo, o pesquisador chegou a levantar a hipótese da verdadeira etiologia do beribéri.3 Nina Rodrigues também analisou a ocorrência de casos esporádicos, constatando que a distribuição do beribéri pelas várias "freguesias" da cidade, coincidia com a existência de instituições similares ao asilo no que diz respeito ao usuário e às características de confinamento e "superaglomeração". Ou seja, o maior número de casos se verificava nas freguesias (bairros) de Brotas (onde se situava o Asilo São João de Deus), Santana (onde estava o Hospital Santa Izabel) e Mares (localização da penitenciária)”.

Na segunda fase, NR dedicou-se a psicopatologia forense, aplicações médico-legais. Ele estudou a criminalidade e defendia uma legislação penal diferenciada para cada região brasileira, que fosse levado em consideração o clima e a raça. Considerava que os índios e os negros estavam em outro estágio de desenvolvimento cultural e que deviam ser diminuídas suas responsabilidades perante a lei. Segundo NR. O crime e a concepção do crime não é imutável, o bem e o mal, o justo e o injusto dependem da cultura e da raça dos que os praticam. Para os evolucionistas, a formação de uma idéia abstrata de justiça, tal como a possuímos hoje, se operou lentamente no cérebro humano por força do aperfeiçoamento social, extremamente moroso e demorado da humanidade.

Na terceira fase, que chamaríamos de Higiene Social e Antropológica. Estudou fenômenos como Canudos e fez suas pesquisas sobre os negros africanos. Procurou estudar as origens dos negros africanos, seus costumes, língua e hábitos. Preocupava-se com a saúde dos mesmos que, de início com aparência jovem e vigorosa, logo apresentavam precoce decadência e que deveriam merecer recuperação e profilaxia.

Sobre o racismo científico e os estudos antropológicos do século XIX sugiro a leitura das opiniões de David Maybury-Lewis em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092002000300002&
lng=en&nrm=iso&tlng=pt

“Ao final do século XIX, essas classificações começavam a ser atacada por uma nova geração de antropólogos que argumentavam que a teoria social evolucionista se baseava em inferências equivocadas extraídas de dados etnográficos pouco fidedignos. As conseqüências dessas inferências eram graves, pois davam apoio supostamente” científico “a classificações questionáveis e inerentemente racistas. Nos Estados Unidos, Franz Boas e seus discípulos eram os que insistiam na necessidade de um melhor trabalho de campo para dar base a uma antropologia cultural empiricamente fundada que, por sua vez, mostraria a debilidade das teorias sociais evolucionistas. Na Europa ocidental, uma nova geração de antropólogos também insistia em um melhor trabalho de campo a serviço de uma antropologia social científica que também desconfiava da teoria evolucionista.”. Gilberto Freyre foi discípulo de boas e nos brindou com inúmeros trabalhos importantes, o mais famoso é Casa Grande & Senzala. (Uma das razões aos ataques contra Nina Rodrigues, era a clara intenção de atingir Gilberto Freyre cujo sucesso despertava muita inveja.)

Lendo e relendo o livro de Nina Rodrigues os Africanos no Brasil pude constatar o esforço desse nosso antropólogo e etnólogo autodidata. Ele dedicou quase 15 anos da sua vida tentando salvar a memória negra brasileira. Ele se preocupou com a procedência dos nossos escravos, sua língua, usos e costumes e se pode constatar que perambulava por Salvador e outros Estados, entrevistando antigos africanos, sobreviventes de tribos, tentando decifrar o enigma criado pelos portugueses que, para enganar os ingleses antiescravistas, queimavam os arquivos, o manifesto dos navios, separavam as famílias e tribos para esconder o tráfico de escravos que continuou apesar dos esforços ingleses em reprimi-lo.

Tanto Nina Rodrigues como Silvio Romero lamentavam a perda da língua, dos costumes e das tradições dos africanos trazidos ao Brasil. Nina Rodrigues, mesmo assim consegue destacar a influência na culinária, no linguajar e na música. Suas maiores críticas era com o estágio civilizatório daqueles escravos iletrados. Faz referências positivas aos escravos sudaneses que eram islâmicos, sabiam ler e escrever e que lideraram uma revolta importante em Salvador em 1835.

Graças às pesquisas de NR podemos saber que os negros, ao contrário do que nos tentaram fazer acreditar, nunca aceitaram passivamente a escravatura. As revoltas eram freqüentes e constantes, muitas nem tem registro. Ele destaca a tremenda violência da repressão e o impedimento de qualquer tentativa de educação e progresso entre os escravos e mesmo os libertos. O colonialismo era ruim para todos, brancos, índios e negros, mas muito pior para os últimos. Foi apenas a partir de 1808 que os brasileiros começaram a ter acesso a ensino superior, a industrialização, ao comércio e ao progresso em geral.

As críticas a NR tiveram um recrudescimento por ocasião do “Centenário de Canudos” onde era examinada a obra de Euclides da Cunha. Scliar escreveu na Folha de São Paulo um artigo com o título “A Metamorfose das Raças”. (http://www.web3.com.br/not09-1202/ne_not_20021202i.htm). Discordamos das ilações sobre Nina Rodrigues. Scliar parte da suposta influência de José Arthur Gobineau sobre o pensamento de NR e termina associando seu nome ao nazismo. O Defensor das idéias de Gobineau era Oliveira Vianna. Não há referência alguma desse autor na obra de NR. É indiscutível o seu eurocentrismo e a idéia da superioridade da raça branca nos trabalhos de NR, nisso ele era representante do pensamento predominante no século XIX. Não esqueçamos que uma bula papal de 1456 estabelecia o direito de escravizar negros e índios porque eles não teriam alma. Em torno de 1553 o Papa Paulo II devolveu a alma aos negros e índios, mas não interferiu com a escravidão. O colonialismo estendeu-se por todo o mundo, alguns países só conseguiram a independência na metade do século XX. Recentemente reacendeu-se a discussão racial a propósito do estabelecimento de quotas para negros na Universidade e no Serviço Público.

Não pretendemos esgotar o assunto no momento atual. Se nossos leitores desejarem sua continuação, nós o faremos. Enquanto isso ficarei aguardando a publicação da Tese de doutorado da historiadora e pesquisadora da UNICAMP, Ana Oda, que abordará com profundidade acadêmica a vida e obra do maranhense Raimundo Nina Rodrigues.


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