Volume 8 - 2003
Editor: Giovanni Torello

 

Junho de 2003 - Vol.8 - Nº 6

Psicanálise em debate

LENDO GODLEY E BOYNTON

Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de
“Peixe de Bicicleta” (Editora da Universidade Federal de São Carlos - 2002)

O periódico norte-americano Boston Review publicou, em seu número de dezembro de 2002-janeiro de 2003, um longo artigo de Robert Boynton, intitulado The Returned of the Repressed - The strange case of Masud Khan (pode ser encontrado no seguinte endereço e a tradução que dele fiz será publicada no número 172 da revista Pulsional Revista de Psicanálise, de agosto próximo).

Robert Boynton, conceituado jornalista norte-americano, professor da New York University e perspicaz observador da cena cultural, usou como ponto de partida para seu artigo um outro, publicado no London Review of Books, no número de 22 de fevereiro de 2001, onde Wynne Godley, o autor, escreve sobre sua análise de muitos anos com Masud Khan.

A partir do texto de Godley, Boynton faz um sério trabalho de pesquisa e reportagem, tendo entrevistado o próprio Godley, Donald Campbell (então presidente da International Psycho-analytical Association - IPA) e vários outros analistas, como Gregório Kohon, Adam Phillips, Linda Hopkins, Peter Fonagy, Peter Kramer, Robert Young e Glenn Gabbard.

Com isso, termina por escrever um trabalho de história da psicanálise, recuperando um momento importante e traçando um panorama profundo e amplificado do movimento psicanalítico, algo que nos é especialmente interessante por vir de alguém que nos vê de fora, com uma visão que seguramente terá suas distorções, mas não aquelas advindas da transferência e contratransferência, que tanto dificultam quaiquer críticas internas entre nós, quer sejam políticas quer sejam teóricas.

Embora centrado na relação de Khan com seu paciente Godley e com seu analista Winnicott, na libertária Londres dos anos 60, o trabalho de Boynton passeia por vários de nossos problemas, de longa data conhecidos e, mesmo assim, ainda muito atuais.

O primeiro deles diz respeito à questão institucional. Ao apontar a forma como foram quebrados os regulamentos da Sociedade tanto no que diz respeito à admissão como a posterior permanênica de Khan , ficam expostos os conluios na formação de novos analistas, as lutas de poder que deturpam e pervertem o objetivo maior da instituição, supostamente o cuidado com o legado freudiano.

O segundo, focaliza os problemas derivados do desenvolvimento da teoria psicanalítica e suas implicações na clínica, nas alterações da técnica.

O momento observado por Boynton era aquele posterior à guerra entre kleinianos e anna-freudianos, que causou a divisão da Sociedade inglesa em dois grupos opostos e a formação de um terceiro, o Middle Group (Grupo do Meio), como alternativa às duas teorias em litígio. É do Middle Group de onde sai Winnicott, depois de ter sido analisado com Melanie Klein e com ela ter rompido.

A questão posta por Boynton é - seria Masud Khan uma exceção, uma anomalia ou apenas um produto típico das idéias winnicottinas relacionadas às técnicas pouco ortodoxas do “holding”, da inovadora busca por uma relação “real” com os pacientes severamente perturbados, modificação técnica que abandonava a distância e a neutralidade preconizadas classicamente, por serem consideradas imprescindíveis para analisar e o interpretar o desejo do paciente em manter uma relação “real” com seus analistas.

Essa postura clínica decorre dos avanços teóricos de Winnicott e dão importância quase que exclusiva à relação transferencial - contratransferencial estabelecida entre paciente e analista. Com isso não se valoriza a história do paciente, seu passado, suas vivências anteriores. O que importa é o que acontece na relação que está sendo vivida durante a sessão. Isso pode levar a distorções muito graves, como as relatadas por Godley.

Embora a técnica winnicottiana, do Middle Group, tenha suas próprias características, como Boynton mostra em seu artigo, ela compartilha com a técnica kleiniana a super-estimação da relação transferencial-contratransferencial. Depois da crítica lacaniana, que a caracteriza como uma prática que desconsidera o simbólico, centrada centrada que está na relação imaginária, dual, especular e narcísica, é possível que esta postura tenha sido alterada. Mas, seguramente, naquele momento, era a conduta aconselhada, já que se baseava na teoria onde o que importa são as relações mais primitivas com o primeiro objeto - o peito da mãe - , cujos registros estariam inevitavelmente sepultados na mais remota província do inconsciente, só acessíveis pela revivência transferencial, suscitando no analista vivencias igualmente primitivas. Penso que se essa postulação teórica, com suas consequências na prática clinica, é pertinente com pacientes muito regredidos - quer temporalmente, como decorrência do próprio processo analítico; quer seja estruturalmente (psicóticos, borderlines). Não se sustenta, entretanto, em pacientes em fases mais iniciais da análise ou menos comprometidos. A queixa de Wynne Godley, de que era instado a ignorar toda sua história é bem ilustrativa dessa situação. Boynton, por sua vez, mostra em seu artigo como tal postura teórica pode abrigar as maiores perversões, ao potencializar ao máximo o narcisismo do analista, sua onipotência e falta de crítica, não modulados por um terceiro (a própria história do paciente), situação que o permite seduzir o paciente, que se sente um ser especial, que tem uma análise “diferente”, à altura de sua “excepcionalidade”, como relata o próprio Godley.

Os conflitos descritos por Boynton ainda continuam muito atuais, se lembramos que o que estava centralmente em jogo era a discussão sobre a preponderância do papel do meio ambiente (environment) ou das pulsões inatas na constituição do psiquismo.

Essa é uma questão recorrente na psicanálise, desde que Freud abandonou sua “teoria da sedução”. As pacientes histéricas diziam ter sofrido abuso sexual por parte de seus pais e Freud tomava tais relatos como lembranças de fatos efetivamente ocorridos. Posteriormente concluiu que eram fantasias, e não fatos, privilegiando com isso o inconsciente enquanto uma `outra cena' a ser investigada, ficando a realidade colocada numa posição um tanto secundária.

É verdade que mesmo em Freud esse abandono da importância do mundo externo é relativo. Por um lado, ele investe muito na versão pulsional, ao entender a pulsão como fator organizador-mor da vida psíquica, ficando as experiências com o mundo externo na dependência dos investimentos libidinais ou agressivos, em sua movimentação em termos de fases, fixações, regressões, objeto, etc. Por outro lado, na progressiva teorização do complexo de édipo, vai dando crescente valorização aos mecanismos identificatórios, ou seja, desta forma revaloriza a importância do mundo externo, a realidade, na medida em que ele passa a condicionar o mundo interno - os modelos objetais externos terminam por impor estruturas internas de identificação. Nesse debate, Melanie Klein tem um papel ao mesmo tempo inovador e conservador. Tal como um Freud mais “biologizante”, radicaliza a importância da pulsão enquanto força inata orgânica hereditária, independente da vivência ou experiência externa, dando especial destaque à pulsão de morte, sob a forma da inveja. Assim como Freud relativiza a primazia da pulsão ao descrever as identificações próprias do complexo de édipo, Klein também o faz à sua maneira, estabelecendo a importância das primitivas relações de objeto, com isso abalando as noções freudianas de um auto-erotismo ou de um narcisismo como fases anobjetais, sem objeto.

Mas é preciso salientar que tanto Freud como Klein, mesmo quando reconhecem a importância do mundo externo, das relações objetais - um via complexo de édipo, outra via relações primárias objetais - , não reconhecem a autonomia do objeto, pois ambos privilegiam a pulsão como determinante de toda vida psíquica.

Como já foi observado muitas vezes, para a pulsão, o objeto é o mais contingente, o menos importante no que diz respeito à sua satisfação. O que talvez não é suficientemente enfatizado é que esse ângulo teórico igualmente considera o objeto como irrelevante para a constituição do sujeito, já que ele é um mero joguete no seio das forças pulsionais.

Winnicott, cuja teorização tem embasamento kleiniano, rompe com a mestra ao introduzir o conceito de “mãe suficientemente boa” que dá um peso à realidade da mãe, que deixa de ser meramente um “objeto” moldado pelas pulsões do bebê e passa a ter uma autonomia própria que será decisiva para a constituição psíquica do bebê.

De forma semelhante mas com desenvolvimento próprio, Bion também parte de Klein para dela se afastar ao postular a importância da “reverie” (capacidade de sonhar com, de intuir, de se identificar com o bebê).

O que está em jogo nestas teorizações é o progressivo retorno da realidade externa, na figura real da mãe e do pai, como estruturantes na constituição do sujeito, do psiquismo do bebê.

Assim, nos afastamos do “sua majestade o bebê”, do “selvagem egoísta” - formas com as quais Freud descrevia o bebê, bem como do “canibal assassino” - maneira como Klein o concebia. Estas formulações implicam um domínio total do onipotente bebê sobre o “objeto”, que meramente recebe os seus investimentos pulsionais. Aproximamo-nos do progressivo reconhecimento da importância dos pais como constituitivos do psiquismo do bebê.

Se isso passa, como vimos, por Winnicott e Bion, será com Lacan e seus epônimos onde a virada se concretiza totalmente. O “objeto”, agora chamado de “Outro” ocupa o lugar inescapável do poder, locus onde o “infans”, o pobre bebê tem de se alienar, se submeter totalmente para poder sobreviver.

Com Lacan, longe de temos os onipotentes bebês que moldam suas mães a partir de suas dotações pulsionais, vemos o quase indefeso bebê chegando a um mundo previamente organizado pelo Outro, onde é imediatamente mergulhando no universo linguístico. Ao se deparar com o poderoso Outro que vem lhe impor seu desejo e seu gozo, o pobre bebê, vai se esforçar para advinhá-los e satisfazê-los, garantindo assim sua sobrevivência. Terá seu arsenal pulsional como único recurso para tanto.

Ao contrário da versão freud-kleiniana, suas pulsões não moldarão o poderoso Outro. Serão, sim, totalmente modeladas por ele.

Um dos trabalhos que nós psicanalistas não podemos deixar de fazer é estudar e comparar as consequências em nossas práticas clínicas dessas divergentes teorizações.


TOP