Volume 8 - 2003
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2003 - Vol.8 - Nº 2

Psicanálise em debate

"Romance familiar" versus "segredo familiar", um problema psicanalítico
(Resenha de "Le Roman Familiale de Freud" – Gabrielle Rubin – Payot – Paris – 2002 – 198 pp) 

Dr. Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 – Imago – Rio)

A vida de Freud é uma das mais vasculhadas e pesquisadas da história da humanidade. A começar com as informações dadas por ele mesmo nas interpretações de seus sonhos, biografias as mais variadas, desde as ditas "hagiográficas" e "autorizadas", como a extensa obra de Jones, ou as "revisionistas", denegridoras, produzidas pelo anti-freudismo norte-americano, dissecam o pai da psicanálise com toda a minúcia possível.

Assim, o livro de Garielle Rubin, analista da Societé Psychanalytique de Paris, se inscreve numa longa série e poderia fazer crer que pouco traria de novidade.

Não é o caso. Vasculhando a biografia de Freud escrita por Jones, descobre um detalhe que passara desapercebido aos demais biógrafos.

Jones conta que em 1925, na ocasião da re-impressão do trabalho "Lembranças Encobridoras", originalmente publicado em 1899, Freud teve uma reação muito curiosa. Em pânico, não queria que o mesmo fosse re-impresso, pois temia ser reconhecido debaixo do disfarce do "universitário de 38 anos" que fala das lembranças que serão ali interpretadas. Surpreendido, Jones argumenta com Freud que tal decisão, ao invés de protegê-lo, acirraria a curiosidade e a suspeita de que estaria escondendo um "mistério" de sua vida. Isso o fez mudar de idéia e permitir a re-impressão do artigo.

Gabrille Rubin vai reler com especial cuidado "Lembranças Encobridoras", com o objetivo de entender a reação de Freud, estabelecendo uma série de hipóteses muito bem concatenadas e plausíveis, chegando a surpreendentes conclusões.

O eixo que baliza suas hipóteses é o conceito de "romance familiar". Não é aleatória sua escolha. Reconhecendo indiretamente a importância desse conceito, disse Jones (citado por Rubin) "isso nos permite, creio, supor que o incessante estudo dos seres humanos e de suas reações pode ser atribuído, em primeiro lugar, ao problema embaraçoso que a vida familiar constituía para Freud em sua infância".

Não só na infância, diz Rubin. Para ela, Freud padeceu a vida inteira com seu "romance familiar"e este conflito teria tido graves conseqüências em vários campos de sua existência.

O "romance familiar" de Freud, como ele mesmo disse, se estabelece a partir do momento em que, na infância, acreditava ser filho não de Jacob e sim do meio-irmão Phillip, que tinha a idade de sua mãe.

Como diz o "Vocabulário de Psicanálise", "romance familiar" é "expressão criada por Freud para designar fantasmas pelos quais o indivíduo modifica imaginariamente os seus laços com os pais (imaginando, por exemplo, que é uma criança abandonada). Esses fantasmas têm o seu fundamento no complexo de Édipo".

De fato, nessa fantasia, a criança se imagina não filha de seus pais verdadeiros e sim de outros, de alta linhagem, para os quais, um dia, voltará. Numa outra versão, imagina que é filha de sua mãe, mas não de seu pai, atribuindo à mãe aventuras e traições das quais é o fruto.

Se esta fantasia habitualmente cai sobre repressão, isso pode não ocorrer quando a situação real da estrutura familiar favorece sua permanência

Era o caso da família de Freud. Havia, como mostra Rubin, uma grande disparidade sócio-econômico-cultural entre Jacob e Amalia, os pais de Freud. Jacob era já duplamente viúvo, muito pobre e tinha 20 anos a mais que Amalia. Sob nenhum aspecto era esse um casamento vantajoso ou desejável para ela.

Marthe Robert, Mariane Krülle e Renée Gicklhorn se interrogaram do porquê de tal casamento, rompendo, desta forma, uma postura machista que o consideraria "normal" . A hipótese levantada por Rubin é que, estando Amália grávida de um homem indesejado pela família ou com quem não poderia casar por outros motivos, foi casada às pressas com Jacob.

Recusando a visão estabelecida de que Freud amava ternamente seus pais (como ele mesmo diz muitas vezes em suas análise de sonhos), Rubin nos apresenta um Freud preso às angústias da dúvida quanto a sua filiação, duvidando da paternidade de Jacob.

Uma das evidências da persistência disto seria a marcante diferença na forma como tratava os pais. Parece ter sempre gostado mais do pai, tendo uma sintomática atitude protetora para com ele, como para poupá-lo de suas próprias dúvidas, atitude que a autora diz reconhecer em outras crianças frente a pais com muitas deficiências. As atitudes bondosas e caridosas, nunca queixosas ou acusatórias em relação ao pai, a quem atribuía todas suas boas qualidades, diferem totalmente da frieza e distância com a qual tratava a mãe. Nem de longe correspondia à adoração que esta lhe devotava. Numa atitude chamativa, Freud não foi sequer ao enterro da mãe, como antes não fora às festividades do seu 80o. aniversário.

É, pois, a partir do "romance familiar" que Rubin vai procurar entender o enigma centrado na re-impressão do "Lembranças Encobridoras".

Ali, o "universitário de 38 anos" – ou seja, Freud - diz que as lembranças que vai relatar lhe tinham ocorrido ao voltar de uma pequena viagem a sua cidade natal, "aos 17 anos". Rubin lembra que em 1872, aos 17 anos, Freud efetivamente fez uma viagem a Freiberg, sua cidade natal. Isso faz com que centralize seu foco de observação neste ano, que chama de "fatídico", dado as grandes e definitivas mudanças que ocorreram em Freud nessa ocasião.

A primeira delas diz respeito à mudança no caráter e projetos de vida do jovem Freud. Até a viagem, ele se via como um futuro general, um guerreiro, um líder político. Sem que se entenda porque, naquele ano desiste desses projetos e escolhe o caminho da ciência, querendo desvendar os segredos da "mãe natureza".

A segunda diz respeito a seu suposto enamoramento com Gisela Fluss. A partir da descoberta das cartas trocadas, na ocasião, por Freud com seu amigo Edouard Silberstein, novos dados vieram à tona. Nessa correspondência juvenil, escrita em espanhol e onde Freud se fazia chamar de "Cipião" e o amigo atendia ao codinome de "Berganza", Freud revela os acontecimentos vividos em Freiberg, quando se constata que a verdadeira paixão que nele se acendeu não se devia a Gisela, como se pensava até então, e sim a Eleanora Fluss, mãe de Gisella. Isso dá o devido tom incestuoso e edipiano a essa paixão.

A terceira, refere-se ao estranho desaparecimento do dígrafo is do nome Sigismund, que passa a ser Sigmund um pouco antes de sua viagem a Freiberg, como está registrada na sua correspondência com Silberstein. Aliás, Rubin sustenta que Freud teria desenvolvido uma verdadeira fobia com essas letras. Por este motivo teria cismado de grafar a palavra narcisismo como narcísmo, uma forma peculiar, usada exclusivamente por ele, bem como isso teria pesado na abolição da expressão "zona histerógena", substituindo-a por "zona erógena".

O desaparecimento do dígrafo is de seu nome já fora analisado por outros autores. Rosolato atribui essa perda à negação do pai e do judaísmo, fazendo desaparecer as duas primeiras letras de nome Israel, segundo nome de Jacob, nome tão rico de significações. Anzieu julga ver nessa supressão ecos da obra wagneriana, influência dos personagens Siegfried, e seus pais Sieglinde e Siegmund, o casal de gêmeos incestuosos. Rubin discorda, do primeiro por achar que Freud nunca rejeitou o judaísmo e do segundo por achar improvável, pois, sendo uma referência a um super-incesto, embora estivesse longe de suas descobertas psicanalíticas, a formação de Freud certamente não aprovaria tal identificação. Acha, sim, que a perda do dígrafo está ligado a Jacob, mas não pela via do judaísmo e sim novamente como expressão da dúvida quanto a sua filiação, como explicita em seu trabalho "O Romance Familiar do Neurótico" ("Romances Familiares", na tradução brasileira da Imago)

Finalmente, o quarto argumento é justamente o artigo sobre as "memórias encobridoras", cuja re-publicação gerou tanto angústia em Freud. Rubin segue de perto a argumentação entre Freud-paciente e o Freud-analista desvendando a fantasia ali exposta. Levando em conta o tanto que Freud já tinha se exposto anteriormente, especialmente com seus sonhos analisados em "A Interpretação dos Sonhos", nada que ali está justificaria o pavor de Freud. Como se sabe, é uma fantasia onde o "universitário de 38 anos" recorda que aos 5 teve uma cena de brincadeiras com uma amiguinha da mesma idade, juntamente com um outro menino. A interpretação dada por Freud e seu primo atacam sexualmente a prima. Há um componente hetero e homosexual.

É interessante salientar que Freud explica que as "lembranças encobridoras" geralmente são anódinas, sem importância, apenas situações paralelas a um grande acontecimento aludido por elas mas por elas ocultado. Assim, segundo Rubin, toda a interpretação da própria lembrança em pauta, revela-se sintomática, pois Freud deveria perguntar ao "universitário de 38 anos", quais as circunstâncias em que tais lembranças ocorreram, quando ficaria claro a importância das vivências em Freiberg, em 1872, tendo o "universitário" 17 anos, anos depois do tempo referido nas "lembranças encobridoras", quando tinha ele apenas 5 anos. Ou seja, Freud teve tal "lembrança encobridora" em Freiberg, aos 17 anos, quando reencontrou Gisela e se apaixonou por sua mãe Eleanora, como registra inadvertidamente em sua correspondência com "Berganza".

Rubin acredita que nesta viagem a Freiberg, Freud teria procurado comprovar suas fantasias derivadas do "romance familiar", pesquisando histórias sobre seus pais e sua família e a legitimidade de sua filiação. Neste clima, a forte vivência edipiana acontecida com Eleanora teria revivido a paixão pela mãe, vista então como a mãe-prostituta, analisada posteriormente em seus "Contribuições à Psicologia do Amor", especialmente os dois primeiros ensaios, o "Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens" e o "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor". Um outro elo seria a ligação da "lembrança encobridora", onde Freud e um amiguinho atacam a menina, com o sonho "mamãe querida com homens de bico de pássaro", quando fantasiaria a mãe sendo atacada por dois homens, o que leva novamente ao tema da dupla paternidade.

O que teria ocorrido em Freiberg? No relato das "lembranças encobridoras" há uma menção a duas criadas conversando. Teriam as "comadres" de Freiberg falado algo sobre seu nascimento? Algo antigo teria votado à tona? Sabe-se que em 1931, ao ser homenageado pela cidade, a placa que fazia referência ao nascimento de Freud, baseada em papéis locais, dava a data como sendo 6 de março. Embora o que o atormentava não fosse a data de seu nascimento e sim a paternidade, tal fato talvez indicasse problemas relacionados com seu nascimento.

É contra todo esse material que se "lembrança encobridora" se impõe. E, na opinião de Rubin, era isso que Freud temia ser descoberto com a re-mpressão de seu trabalho. E é o que terminou por acontecer, pois, como diz ela, ninguém, a não ser o próprio Freud, levantou suspeitas quanto a sua filiação, duvidou da paternidade de Jacob. Foi seu susto, seu temor em que algo pudesse ser descoberto que a fez enfocar a questão e dar-lhe a merecida visibilidade.

O "romance familiar", a fantasia de ter dois pais teria sido tão forte em Freud a ponto de determinar seu intenso interesse pelos heróis ou personagens mitológicos que tiveram dois pais. É o que ocorre com o Édipo, Shakespeare e Cristo. O exemplo mais cabal é o de Moisés. Rubin analisa "Moisés e o monoteísmo" detalhadamente, mostrando as grandes incongruências da argumentação de Freud. Freud faz questão de alterar a biografia de Moisés para coincidir com seu próprio romance familiar. Ao insistir que Moisés é um egípcio, faz com que tenha dois pais. Mais um de filiação duvidosa.

O livro de Gabrielle Rubin não é apenas um ensaio de construção histórica da vida de Freud. Ao centrar suas hipóteses dentro do referencial do "romance familiar", aponta para uma importante questão da clínica psicanalítica. Seguindo as idéias de Abraham e Torok, procura marcar a diferença entre "romance familiar" e "segredo familiar".

O "romance familiar" é uma fantasia inconsciente, faz parte do mundo interno da criança ("fantasme", segundo Abraham). O "segredo familiar" não é uma fantasia e sim uma realidade objetiva, é um acontecimento histórico da família mantida em segredo e, por isso, provocando efeitos no psiquismo daqueles que o desconhecem ("fantôme", ainda segundo Abraham) . Os dois estão interligados, pois na medida em que existe um "segredo familiar", um não-dito na história da família, isso favorece a criação de um "romance familiar", a criança cria um fantasia para prencher aquele vazio. Mas o enfoque analítico é muito diferente em cada caso, pois o "fantasme" foi reprimido, o "fantôme" não.

Para deslindá-los é fundamental que o analista tenha conhecimento da realidade histórica da família do paciente.

No caso de Freud, não sabemos se o que estava em jogo era um "romance familiar" ou um "segredo familiar". Talvez os papéis que o Arquivo Freud mantém na Biblioteca do Congresso Americano, e que só serão abertos ao público em 2100, contenham a resposta. Quem estiver vivo então (faltam apenas 93 anos!), saberá.

De qualquer forma, isso abre questões teóricas e técnicas da prática analítica, mostrando como a ênfase exclusiva no mundo interno do paciente, pode levar a grandes distorções e equívocos. Mostra ainda que a psicanálise da família é um campo que se impõe.


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