Volume 8 - 2003
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2003 - Vol.8 - Nº 1

Psicanálise em debate

Mas não é psicanálise “aplicada” o que nos propõe Derrida?

Dr. Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 – Imago – Rio)

RESUMO – O autor tece comentários sobre a conhecida dicotomia entre psicanálise "clínica" e "aplicada", onde esta última é objeto de grande ambivalência. Dever-se-ia isso a impedimentos epistemológicos inerentes à análise "aplicada" ou seria resultado de um movimento repressivo que obedece ditames ideológicos? A proposta de Derrida faz caducar tal dicotomia?

PALAVRAS-CHAVE – psicanálise "aplicada", epistemologia, história, ideologia

"Como uma ‘psicologia profunda’, uma teoria do inconsciente mental [a psicanálise] pode tornar-se indispensável para todas as ciências ligadas com a evolução da civilização humana... o uso da análise para o tratamento das neuroses é apenas uma de suas aplicações; o futuro talvez mostre que não é a mais importante delas"

Freud – "A Questão da Análise Leiga" – 1930

Sabemos que Derrida em seu "Estados d’Alma da Psicanálise"1, conferência pronunciada no Primeiro Encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, conclama a psicanálise a "não resistir a si mesma" e ocupar um lugar de destaque, imprescindível até, no mundo moderno. Para Derrida, os campos da ética, do juridíco e do político não podem mais prescindir dos conhecimentos da psicanálise.

Esvaziado o discurso religioso que explicava a violência e a destruição em termos de um mal decorrente da queda de Adão, Derrida diz que somente a psicanálise tem uma hipótese de trabalho válida para enfrentarmos o problema. Fenômenos como a guerra e a soberania dos estados não podem mais ser compreendidas como exclusiva decorrência de forças econômicas em conflito. O Nazismo e sua capacidade de encantamento e fascínio das massas, sua ideologia da raça pura com o extermínio daqueles a ela não pertencentes, o Holocausto dos judeus, tudo isso exige uma compreensão que somente a psicanálise pode oferecer.

Mas, como, dirão logo alguns, não seria isso psicanálise "aplicada"? Não seria isso um equívoco, um extrapolar dos recursos da teoria analítica, que deveria ser testada e confirmada exclusivamente nos consultórios, nos diálogos com os analisandos?

Bem, se vamos manter essa divisão entre psicanálise "clínica" e "aplicada", ou "em extensão" versus "em intensão", a resposta é sim.

Mas o que Derrida nos convida é a exatamente "desconstruir" ou – o que é o mesmo – psicanalisar essa dicotomia entre análise "pura" e "aplicada" e, consequentemente, a superá-la.

Todos sabemos que a chamada ‘psicanálise aplicada’ ocupa um lugar muito curioso no corpo teórico. Desprezada por alguns, que a consideram um uso indevido e inadequado das hipóteses analíticas, só sustentáveis em seu forma "nobre" , que seria o da clínica. Outros, a consideram um campo legítimo e valioso da psicanálise, não só por favorecer às ciências humanas, trazendo-lhe um aporte do qual não dispõem, ao mesmo tempo que fertiliza a psicanálise no contato com outras disciplinas e áreas de conhecimento.

Edelson, citado por Esman2, define análise aplicada como "a aplicação do conhecimento analitico a problemas explanatórios, metodológicos ou tecnológicos emergentes em disciplinas ou empreendimentos humanos distintas da psicanálise". Moore e Fine (também citados por Esman) a definem como "o uso de conhecimentos obtidos pela psicanálise clinica para alargar e aprofundar a compreensão de vários aspectos da natureza, da cultura e da sociedade humanas".

Roudinesco3 rastreia o grande interesse de Freud pela análise aplicada desde o início de suas descobertas até o final de sua obra. Para Freud a análise aplicada era um importante campo de ampliação de sua descoberta, permitindo sua vinculação com outras ciências humanas. De tal forma a valorizava, que se empenhou para a criação, em 1912, de uma revista totalmente dedicada a ela, a "Imago". Esse grande interesse de Freud era contrapartida de uma certa reticência frente a esses trabalhos. Por exemplo, refere-se ele ao "Moisés de Michelangelo", que publicou anonimamente na "Imago" como um "filho do coração" mas um "filho não analítico". Em outros momentos, considerava os artigos da "Imago" como "diletantes". Roudinesco lembra, reforçando um argumento abaixo descrito de Esman, que a maioria desses trabalhos aplicados tiveram grande repercussão teórico-clínica, como em "Leonardo", onde avança hipóteses sobre a sexualidade e a homossexualidade e "Psicologia das massas", que estabelece as bases da Segunda Tópica.

Hoje em dia, diz Roudinesco, a análise aplicada é correntemente usada no mundo anglófono, coisa que não acontece na França, onde é alvo de violenta rejeição. Entre as explicações levantadas por ela, está a influência de Lacan, que numa intervenção sobre o assunto disse "A psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, e portanto, a um sujeitoque fala e que ouve". Com isso indicava que a análise aplicada só o seria figuradamente, ou seja, no campo do imaginário, baseada na analogia e desprovido de eficácia.

Não é essa a opinião de Esman. Lembra ele que o que sustenta classicamente a dicotomia entre análise "pura" ou "clínica" e análise "aplicada" é a afirmação de que somente através do contato clínico entre analista e analisando se forja o "ouro analítico". Ali se fariam as descobertas definitivas que alimentam o progresso da teoria. Além disso, no encontro clínico, as intervenções do analisando interagirão com as hipóteses interpretativas do analista, corrigindo-as, ampliando-as, confirmando-as, etc. Enfim, somente ali, assentada numa base empírica, a validade das hipóteses interpretativas analíticas poderão ser referendadas ou não, numa situação que se aproximaria à de um laboratório científico. Tudo o que se afasta desse modelo, passa a ser análise "aplicada", se aproximaria perigosamente da análise "silvestre" ou da mera projeção do analista, sem possibilidade de correção através de um diálogo, que ocorreria exclusivamente na clínica.

Vamos ver que as coisas não são tão simples. Em primeiro lugar, Esman mostra não ser correta a crença de que a grande massa de conhecimentos analíticos deu-se no contato clínico entre analista e analisando, aspecto já mencionado acima por Roudinesco. Moore e Fine afirmam que "a distinção entre psicanálise clínica e aplicada não é absoluta, desde que achados de valor clínico foram recolhidos em trabalhos de psicanálise aplicada", sendo para eles o exemplo mais taxativo o Caso Schreber. (grifos do autor)

Mas, lembra Esman, em Freud a íntima imbricação entre análise "clinica" e "aplicada" como fornecedoras de material para a formação do corpo teórico psicanalítico acontece muito antes dos trabalhos formalmente ditos de análise "aplicada", como "Gradiva" e "Escritores Criativos e seus devaneios". Já em suas cartas a Fliess, o que faz Freud ao relatar sua identificação com "Édipo Rei", fato que estende a Hamlet? Trabalhos fundamentais para a teoria, como "O Chiste e sua relação com o inconsciente", "Psicopatologia da Vida Cotidiana" e até mesmo "Três Ensaios sobre a Sexualidade", não derivam da experiência clínica direta. A própria "Interpretação dos Sonhos", também não veio de uma situação "clínica", tal como é convencionalmente concebida. (grifos do autor).

A propósito destes dois trabalhos, "A Interpretação dos Sonhos" e "Chistes", disse Freud: "[Essas duas obras] mostraram desde logo que os ensinamentos da psicanálise não podem restringir-se ao campo médico, mas são susceptíveis de se aplicar a outras diferentes ciências do espírito"4.

O mesmo se dá no texto sobre Leonardo, "Psicologia das Massas e analise do eu", "Totem e Tabu", "O futuro de uma ilusão", "O mal-estar na cultura", "Moisés e o monoteismo", "Moisés de Michelangelo", para citar apenas alguns de uma longa lista que só vai cessar com a morte de Freud.

Assim, o que Esman diz é que se a crítica à análise "aplicada" advém de não ser ela considerada como fonte confiável de dados que esclareçam e ampliem a teoria, isso não é verdade. Os trabalhos de Freud acima listados, todos de análise "aplicada" , enriqueceram muito questões teóricas, com amplas repercussões na clínica, como igualmente afirma Roudinesco.(grifos do autor)

A questão da análise aplicada reflete uma questão epistemológica mais geral. Richard Levotin, citado por Esman, lembra que "não é possível existirem observações sem um imenso aparato teórico que as precede. Antes que as experiências dos sentidos [sensações] se transformem em "observações" [científicas], necessitamos de uma questão teórica, e o que conta como observações relevantes depende da moldura teórica na qual está inserida. Observações respeitáveis que não se encaixem nesta moldura são desprezadas".

Um exemplo irrefutável é citado por Esman, ao lembrar que disse Freud, "muito antes de estar ele no mundo, eu já sabia que o pequeno Hans viria e ficaria tão ligado a sua mãe a ponto de ser levado a sentir medo do pai por causa disso".

Ou seja, antes do dado "clínico", a moldura teórica que permite a visualização do observado.

Isso quer dizer que a postura cuja expressão maior se cristaliza no aforisma de Bion, "o analista não tem memória nem desejo", é, na opinião de Esman, uma "esperança piedosa mas irrealística e irrealizável".

Todos nós temos nossos referenciais teóricos e práticos, adquiridos em nossas análises pessoais, nas supervisões e nos cursos teóricos. É com eles que acolhemos o paciente. Esse acervo nos permite elaborar hipóteses sobre a estrutura do paciente e o material que nos traz cotidianamente. E não há nada de mal nisso. Na verdade, estamos seguindo um comportamento padrão de observação e interação científicas.

Em última instância, como disse Edelman, citado por Esman, "Falando estritamente, a psicanálise como tratamento é também análise"aplicada", pois envolve a aplicação do conhecimento a problemas técnicos (... ....).a teoria da aplicação terapêutica da psicanálise não é na maioria das vezes rubricada como análise "aplicada", apesar de o assim considerá-la poder resultar numa abordagem bem instrutiva. (grifos do autor)

Penso que essa forma de entender a própria clínica com análise aplicada, apesar de parecer uma provocação escandalosa, tem seus benefícios. Ela lembra ao analista que existe um corpo teórico, uma experiência pessoal de análise, que esses são instrumentos válidos, recursos legítimos a serem usados no seu ofício, juntamente com sua sensibilidade, seu senso de oportunidade, o cuidado em fazer as interpretações corretas no momento adequado. Tal visão evidentemente não nega a importância da transferência, instrumento "princeps" no trabalho analítico. Muito menos quer implicar numa aplicação mecânica e "silvestre" da teoria analítica a infelizes e incautos analisandos. Mas desidealiza a transferência, deixando claro que a própria compreensão que o analista tem sobre ela (transferência) está inscrita numa moldura teórica, a mesma com a qual escuta a associação livre de seus analisandos.

Penso que isso desmistifica a prática analítica, às vezes descrita em meio a constrangedoras "sensibilidades" e etéreas "intuições", quando não entendida como uma lupa absurda sobre o "aqui e agora" que ignora ou exclui toda a realidade que circunscreve a analisando, situação que remonta iatrogênicamente uma situação fusional narcísica primitiva, a relação dual de uma mãe psicótica que exige a exclusiva atenção de seu filho-falo.

Tomando a crítica feita à análise aplicada que se apoia no fato de que não teria um interlocutor que corrija os equívocos da interpretação, papel exercido pelo analisando, Edelman discorda mais uma vez. Como os trabalhos que enfoquem a cultura, arte, acontecimentos não estão cercados do sigilo inerente aos casos clínicos e não há necessidade de disfarces e alterações, o raciocínio interpretativo do analista pode ser seguido com muito maior clareza pelos leitores, que poderão constatar a força ou a debilidade de sua argumentação. Sobre isso diz Kohut (citado por Esman): "[Na análise "aplicada"] O leitor tem acesso a todo o material que sustenta as conclusões do autor e não há nenhuma necessidade em disfarçar informações ou omitir dados em função do sigilo, coisa imprescindível quando se trata de material clínico; o procedimento do autor é, então, exposto diretamente ao exame e estudo. A análise ‘silvestre’ do amador pode ser identificada pelo leitor qualificado, enquanto a perícia, a cautela e o tato daqueles mais experientes e talentosos de nosso campo podem ser estudados em sua interação com aquele livre fluxo de imaginação que sempre permanecerá indispensável ao psicanalista".

Nesta mesma linha, Roudinesco afirma que a rejeição à análise aplicada na França tem origem histórica no fato de ter sido escrito muita tolice sob esta rubrica, o que desmoralizaria a psicanálise para o grande público. Cita o famoso caso da análise de "A Carta Roubada" de Poe perpretado pela Princesa Maria Bonaparte. Como sabemos, apesar de se dizer contra a análise aplicada, Lacan também analisou o mesmo conto em célebre artigo, que tem múltiplas leituras, como mostrou René Major5.

Mas seria esse um bom motivo para censurar a análise "aplicada"? Não é verdade que se alguns se expõe ao ridículo com suas especulações, isso seria neutralizado pela produção de melhor nível realizada por outros, como disse Kohut acima?

Quanto à suposta proximidade que a análise "aplicada" teria com a análise "silvestre", penso que é bom lembrar que Freud não critica a validade de estabelecer hipóteses interpretativas a respeito da paciente, como fez o analista "silvestre". O que é inaceitável é a forma como tal hipótese é entregue à paciente, que não a pediu, não está ali com este intuito, não há transferência que a autorize, o que transforma a hipótese interpretativa numa intromissão invasiva e inadequada da privacidade do paciente.

Ao interpretar a cultura e seus derivados, jamais faremos tal indiscrição, na medida em que estamos lidando com elementos públicos.

Esman termina seu artigo com uma leitura de uma obra de Man Ray, sem antes argumentar, como Freud fizera antes, que a análise aplicada amplia as fronteiras da psicanálise, permitindo sua troca em instituições universitárias, onde – independente da opinião dos analistas – muitos outros especialistas dela tiram proveito.

Se, de fato, é artificial a diferença entre as duas análises – a "pura" e a "aplicada" – como entender essa ambivalência que nasce já com o próprio Freud e é mantida até hoje?

Se considerarmos como correta a argumentação que seguimos até aqui, concluimos que a análise aplicada não incorre em erros metodológicos que comprometam a qualidade do saber analítico. Pelo contrário, muitas formulações teóricas dela derivaram. O outro obstáculo, a falta do interlocutor que interagiria com a interpretação, como vimos, não procede, pois o texto dialogaria com os leitores e interessados nos objetos da cultura analisados e poderiam eles mesmo avaliarem a coesão interna, a força hermeneutica, sua capacidade de iluminar o objeto estudado.

Afastados esses obstáculos, poderíamos pensar que a ambivalência ou franca rejeição à análise aplicada expressa uma resistência inconsciente que nos cabe elucidar. Essa atitude é tanto mais chamativa se observarmos que praticamente todos os autores, em suas obras, têm fragmentos, trechos, abordagens que poderiam ser tranquilamente denominados de análise "aplicada".

Uma primeira aproximação apontaria para os problemas decorrentes da institucionalização da psicanálise. Ao se organizar institucionalmente, a psicanálise constitui uma estrutura de poder que terá de manter relações com os demais representantes do poder espalhados nos mais variados nível da realidade sócio-política na qual está ela inserida.

Em determinadas situações sócio-políticas, como nos estados totalitários, o simples exercício privado da psicanálise não é tolerado. Nestas circunstâncias, produzir qualquer interpretação que envolva os fatos que a realidade sócio-política está permanentemente gerando se constitui em ato extremamente temerário, expondo a psicanálise a riscos incomensuráveis.

A realidade externa ameaçadora pode ser extremamente agressiva com a psicanálise, como efetivamente foi durante o nazismo, desmantelando toda sua organização institucional e forçando o êxodo de todos os psicanalistas de lingua alemã.

É possível que essa experiência traumática tenha levado a instituição analitica a se recolher sobre si mesma para sobreviver, passando a preconizar uma prática menos exposta a perigos, aquela nos consultórios.

Se naquele momento a atitude se impunha, sua manutenção no presente passa a ser sintomática, revelando-se, talvez, como uma tática política e ideológica, não científica.

Pergunto-me se as reticências frente a análise "aplicada" não decorreriam de uma repressão por seu caráter disruptivo, de não acatamento de idéias consensuais, desconstruindo, apontando e desvendando o que socialmente deveria ficar oculto. Ou seja, por interpretar o inconsciente do grupo, da instituição e dos grandes laços sociais.

Como mostra Derrida em "Mal de Arquivo"6, desde o início o poder detém os arquivos, a memória, organiza a história. O poder estabelece uma "história oficial", onde os acontecimentos são dispostos de forma irrealística e idealizada para atender a seus interesses, restando suprimido tudo o que os incomode. O desvelamento da história oficial, o levantar a repressão que paira sobre ela, e que a organiza, é um trabalho de desconstrução, de psicanálise "aplicada".

Se na época de Freud, era sobre a sexualidade onde incidia mais fortemente a repressão, não seria sobre os mecanismos do poder onde ela mais incide atualmente? Não é isso que Derrida coloca ao nos convidar a pensar sobre a crueldade e a soberania dos estados? Pensarmos sobre a violência do poder, sua legitimidade, seus excessos, suas loucuras? O poder quer exercer-se, não está interessado em ser analisado, pois a análise desconstrói e ameaça todo poder comprometido primordialmente com o narcisismo, não regido por princípios democráticos.

Como vimos, a intituição psicanalítica se organiza como estrutura de poder e mantém relações com as demais instâncias de poder da sociedade onde está inserida.

Uma análise "aplicada" poderia revelar segredos ocorridos nas relações da instituição com os poderes externos da sociedade, como no conhecido caso vivido por Helena Basserman. Isso fica ainda mais inquietante quando voltado para a situação intra-institucional. Uma análise "aplicada" que enfocasse a formação de cada núcleo psicanalítico, examinasse sua história, sua constituição, a relação de seus membros, as disputas e as guerras entre grupos rivais, a eliminação dos indesejáveis, a forma como elaborou seus lutos e erros, seria extremamente incômoda.

É o que nos conta Roudinesco7, em seu trabalho pioneiro de historiadora do movimento psicanalítico francês, onde abordou três grandes tabus nas instituições analíticas - a questão dos suicídios, a dos homossexuais e a da transgressão da interdição da sexualidade nos tratamentos". Diz ela: "Não fiquei surpresa com as polêmicas suscitadas por meu trabalho sobre a história da psicanálise. Habituada a transitar pelo fanatismo, pelo não dito, o rumor, a confidência, a alcova ou o divã, a comunidade psicanalítica francesa – em todas as suas tendências – sofreu um verdadeiro trauma. Descobriu subitamente que a imagem que tinha de si mesmo não correspondia a simples verdade dos fatos. E preferiu muitas vezes recalcar essa verdade, ou denegá-la, para não confrontar-se com ela. Por isso ocorreu-me, em debates particularmente difíceis, decidir abrir mão de convencer aqueles que, desprezando os arquivos, se obstinavam em negar a existência de algum acontecimento desagradável para conservar intato o esplendor de uma ilusão. Percebi assim que nossos profissionais do inconsciente não estavam melhor preparados do que outros para enfrentar uma realidade histórica cujo domínio, por definição, lhes escapava. Resumindo, eles se recusavam a aplicar à sua história coletiva um método de análise que, na prática cotidiana do tratamento, eram os mais aptos a utilizar".

Penso que o que ela diz do ambiente francês não deve ser muito diferente do nosso e do norte-americano, a crer nas declarações do controvertido Masson8.

A intolerância frente a análise de elementos que a realidade externa imediata oferece, aqui no caso, o próprio funcionamento institucional, levanta sérias questões.

É de se pensar até que ponto um artefato ideológico passa a ser um princípio teórico. A psicanálise deve enfocar o mundo interno do paciente, suas fantasias e conflitos, tudo mais é desconsiderado derrisoriamente como "aplicado". As implicações teóricas e técnicas daí decorrentes são o fechamento do campo analítico para a realidade externa do paciente - sua família, sua realidade social.

Assim, o que Derrida conclama nos Estados Gerais é a criação de uma psicanálise nova juntamente com uma diferente organização institucional, uma psicanálise que não resista a si mesmo, que possa aplicar seus conceitos onde eles caberem e dialogue com todos os campos.

Seguramente, para usar o termo de Major, numa "psicanálise desistencial, derridaiana9" superaria inteiramente a dicotomia entre psicanálise "pura", "clínica" e a "aplicada" – dicotomia que, como vimos, no fundo, parece tem expressão apenas ideológica e não científica. Nela haveria espaço para a psicanálise dos grupos, instituições, famílias e do transgeracional, interesse nos arquivos e na história bem como nela a compreensão e discussão analítica de assuntos dos campos juridico, ético e político seriam uma prática essencial.

Nesta psicanálise "desistencial" a análise do inconsciente transita do singular, pessoal, particular, ao social em seus diversos níveis.

Esman, Aaron H. – What is ‘applied’ in ‘applied psychoanalysis? – Int. J. Psycho-Anal. (1998) 79, 741

Derrida, J. – Estados da alma da Psicanálise – O impossível para além da soberana crueldade – São Paulo, Escuta Editora, 2001, 104p.

Derrida, J. – Mal de Arquivos – Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2001, 130p.

Roudinesco, E. – Genealogias – Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995,303 p.

Roudinesco, E e Plon, M. – Dicionário de Psicanálise – Rio de Janeiro, 1998, Jorge Zahar Editor, 874p.

Major, R. – Lacan com Derrida – Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002, 252p.

Masson, J.M. – Final Analysis- The making and unmaking of a psychoanalist – New York, Pocket Books, 1990, 212p.

Major, R. – "Desistantial" Psychoanalysis – www.estadosgerais.org


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