Volume 8 - 2003
Editor: Giovanni Torello

 

Junho de 2003 - Vol.8 - Nº 6

Psiquiatria, outros olhares

O ENIGMA DE KAFKA
(Abordagem Psicopatológica)

Gerardo da Frota Pinto
Médico psiquiatra, titular da Academia Cearense de Medicina e professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.

Genialidade e doença mental têm sido com freqüência correlacionadas a produções literárias ou artísticas de diversos autores, que tiveram suas obras e suas vidas enquadrinhadas. Assim o tentaram Lombroso, Nágeia, Freud, Leme Lopes, Carvalhal Ribas, Neves Manta etc, tendo como alvo Nietzsche, Ibsen, Dostoiewiski, Edgard Allan Poe, Baudelaire, Thomas de Quericey, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Paulo Barreto... Aliás, há certos segmentos da cultura popular que professam a falsa idéia da suposta sabedoria dos perturbados mentais que seriam lindeiros da genialidade, tese admitida de até por W. Shakespeare e outros pensadores do mesmo jaez.

Não se pode esquecer ainda que a Psiquiatria e em particular a Psicanálise, devem muito dos seus postulados aos filósofos gregos Platão, Sócrates, Aristóteles e aos dramaturgos Sófocles, Esquilo e Eurípedes, que possuíam profundo conhecimento e compreensão de natureza humana. O próprio conhecimento é compreensão de natureza humana.

Kafka que viveu mais ou menos na mesma época e no mesmo país que Freud, mas que não se conheciam, empregam em suas produções literárias, técnicas de psicodinâmica como a fusão onírica, com o real e de catarse ou seja, a ab-reação ou descarga de idéias ou emoções em sua forma original que se libertam do inconsciente para o consciente, técnicas essas que Freud havia desenvolvido na terapia psicanalítica.

Tido até algum tempo como um louco consciente, seus escritos foram recebidos como patogramônios de um alienado mental. Atualmente, porém, é reconhecido como um dos maiores escritores de todos os tempos, um gênio da estirpe de um Shakespeare, salientando o psicanalista Prof. Portela Nunes que ninguém aprendeu com maior acuidade do que Kafka a situação absurda, estranha e paranóica do mundo atual, tanto que surgiu em nossa língua um novo adjetivo: kafkiano, justamente, para expressar tudo que é estranho, incoerente, incomparável, fantasmagórico, selo do mundo em que vivemos.

Em suas obras, Kafka centraliza todas as coisas que tornam difícil viver em nossa época, onde as organizações e as estruturas em vez de atuarem em prol da pessoa humana, contra ela se colocam. E o faz de modo alegórico, imitando a linguagem onírica, como se tudo não passasse de um pesadelo, mas que é uma realidade, contendo, entretanto, um sentido simbólico, uma analogia e uma sintetude com situações reais, absurdas, incompreensíveis, que por vezes se antolham no curso de nossa vida cotidiana.

Nas suas composições as personalidades são representadas metaforicamente por animais e com eles se assemelham, assim, no conto A metamorfose a personagem principal é uma barata, inseto em que um caixeiro-viajante se encontra transformado, ao acordar, depois de uma noite de sono. Mas, o importante é que não se trata de um pesadelo ou alucinação e sim de um fato social, de tal sorte que o cidadão Sanza deixou de ser gente e agora não passa de um mísero inseto. O que queria Kafka dizer com a possibilidade de um ser humano poder, de um momento para outro, virar uma barata?

O significado alegórico do fenômeno diz que o cidadão Sanza antes de ser transformado num mísero inseto era um respeitado pai de família, sustentáculo importante de sua gente, mas que devido a uma doença incapacitante tornou-se um peso morto para a família, um problema cuja solução seria o seu internamento num asilo de inválidos, valendo lembrar que no mundo moderno qualquer um pode se encontrar na mesma situação do cidadão Sanza.

Em outro livro, que se tornou famoso porque foi tema de um filme cinematográfico, dirigido por Orson Wells, chamado O Processo, Kafka relata a história de determinada pessoa o Sr. Joseph K que, ao acordar, após uma noite de sono, encontra sua residência cheia de gente a investigar com o objetivo de abrir contra ele um processo, apesar de não serem funcionários de Justiça, embora ninguém lhe diga qual a razão de semelhante processo.

Apesar de não ter sido preso, é obrigado a comparecer a várias reuniões no Tribunal de Justiça, sem culpa formada e sem saber qual a acusação de que é alvo. Inquieto, por desconhecer o que fez de errado, procura indagar, em vão, de pessoas estranhas qual o motivo da denúncia para que dela possa se defender. Enquanto isso, no próprio Tribunal acareiam fatos surpreendentes e um deles é que acaba tendo uma relação erótica com uma pessoa que não conhece!

A cada tentativa de defesa sente-se cada vez mais culpado, terminando por ser condenado a despeito de ignorar qual foi o seu crime. Um horrível pesadelo, interminável, esquisito, estranho e agressivo, mas, real, apesar de fantasmagórico.

Dizem os estudiosos do assunto que o crime do qual é acusado Sr. Joseph K. no conto O Processo, é uma alegoria ao pecado original segundo um mito religioso, que teria ocorrido há milhões de anos e que deu lugar ao sentimento de culpa fundamental e remorso, base da angústia humana. Teólogos, filósofos, antropólogos têm procurado explicar, sem êxito, o fator gerador desse pecado original, do qual toda pessoa humana é acusada sem saber por que e por quem foi condenado, numa extraordinária situação Kafkiana.

Lembramos, apesar que do mito da culpa original, conforme a cultura judaico-cristã, ninguém nasce isento dela e que não escapamos das idéias que nos acompanham durante toda a vida, de que fizemos algo no passado filosófico que não teríamos feito se fossemos melhores.

Segundo a antropologia psicanalítica o sentido da culpa essencial do homem foi o parricídio e a posse da mãe, que serviu de tema à tragédia Édipo, do dramático grego Sófocles e que S. Freud chamou de impulso de Édipo. O parricídio, ocorrido na horda selvagem primitiva, renasce depois, simbolicamente, no banquete totêmico (morte do pai e canibalismo) e cerimoniais eucarísticos de cultos religiosos judaíco-cristão.

Em O Castelo, outro conto de Kafka, relata-se a história absurda de um agrimessor que foi contratado para realizar certos serviços profissionais num Castelo, mas que nele nunca conseguiu penetrar por causa de inúmeros obstáculos e impedimento que não lhe deixaram realizar o seu trabalho. Singular e estranhamente, porém, dias depois recebe do dono do Castelo, uma absurda carta na qual, depois de muitos elogios, agradece o trabalho que nunca conseguiu realizar.

Neste conto, espécie de pesadelo onírico, existe uma situação dialética peculiar de Kafka, contraditória, onde ele pretende mostrar que na vida real nem sempre somos tomados pelo que fazemos, enquanto somos elogiados pelo que deixamos de fazer, ou seja, deixamos de ser tomados pelo bem que fazemos, em troca somos agraciados pelo mal que deixamos de praticar.

Na novela Diante da Lei, Kafka nos surpreende com mais uma situação dialética contraditória, inconsciente, em que determinada pessoa desejando informar-se sobre a Lei, dirige-se ao pórtico do Tribunal de Justiça e é impedido de entrar, por um guarda que lhe explica ser ele, o guarda, o menor de uma série de obstáculos para o seu acesso à Lei. E ele, então, se detém nessa situação durante anos e anos, sempre impedindo de ter acesso à Lei, apesar de inúmeras tentativas feitas, até que, já velho, e sentindo prestes à morrer, indaga do guardião a razão dessa situação absurda até porque todos esses anos jamais viu alguém transpor, a porta do Tribunal, ao que ele responde: realmente, ninguém pode entrar por essa porta uma vez que ela é só para você. Isto é, só você podia penetrar nela.

Estamos aqui diante de mais um paradoxo Kafkiano que muitas vezes ocorre na vida de uma pessoa que não obstante ter o direito constitucional ao estudo, a saúde, à prestação da lei, ao trabalho, etc, na prática nada disso acontece. Apesar da pauta da Lei ser nossa, ela nos é proibida por uma série de obstáculos, entre eles o guardião é o mais fraco de todos.

Tendo falecido muito tempo antes da fabricação da bomba atômica, Kafka mostra-se também um profeta, pois, no seu canto O Texugo, descreve as atribulações de um texugo (pequeno mamífero parecido com uma espécie de raposa que vive em toca) que sentindo-se em perigo, resolve se defender cavando um túnel onde guarda alimentos e disfarça sua entrada de modo a se esconder do mundo externo, mas fica sempre inquieto, atento ao menor ruído denunciador de uma possível invasão, e por isso começou a viver permanentemente dentro do túnel, numa situação grandemente inquietadora e paranóica.

Percebe, então, ruídos originários não mais do exterior da toca, mas, dentro mesmo da terra, contra os quais sabe não poder se defender e assim vive continuamente inquieto e aterrorizado. Semelhante vicissitude de “se “correr o bicho pega e se ficar o bicho come”, significa mais uma representação alegórica do autor, uma metáfora significativa da permanente angústia humana no mundo, presente sob a forma de uma fábula que retrata o desejo de fugir de homens, a uma realidade agressiva e assaz periculosa.

Mas, afinal, quem foi esse profeta louco que por meio de um realismo onírico, fantasmagórico, conseguiu sacar e delinear tão bem a condição humana contemporânea?

Sabemos que só é possível descobrir a razão das idéias de uma pessoa através do conhecimento de sua personalidade e do seu meio. Franz Kafka foi um escritor judeu de língua alemã, nascido em Praga (Tchecoslováquia) a 3 de julho de 1833 e falecido de tuberculose pulmonar em 1924, filho de pais judeus mas que nunca professou os preceitos da religião judaica. Apesar de criado, no seio da sua típica família judia, gloriava não ter nada com os judeus.

De temperamento introvertido (esquizotímico), grandemente inquieto e desastroso com as condições do mundo onde vivia, e que achou muito estranho, sempre foi uma pessoa deslocada de sua ambiência. Desde criança, sempre teve problemas com o pai, uma figura autoritária e ao qual escreveu uma missiva tornada célebre (e que nunca chegou a ser entregue), sob o nome de “Carta ao pai”, onde com patética penetração, expõe o conflituoso relacionamento pai-filho, afirmando que tal falta de compreensão e entendimento era de responsabilidade de ambos.

Na sua vida funcional foi empregado da Companhia Estatal de Seguros da Tchecoslováquia, onde se angustiava ao presenciar filas de pessoas que entregavam requerimentos que sabia jamais seria despachados e, por isso, sentia-se deslocado do serviço. Esses traços caracterológicos e temperamentais assimilam e distinguem, de modo permanente, toda a obra do autor que gira em torno de um mundo predominantemente absurdo, insensato, paradoxal, inconseqüente que fá-lo difícil de ser vivido. Mas, o específico e residual nela é a aparência de onirismo que contém, o onírico confundindo-se com o real, assumindo uma feição fantasmagórica, porém, sem perder o seu fundo de realidade.

Apesar de não ser um escritor político no sentido estrito da palavra, os seus trabalhos continham sempre um teor de denúncia contra a feição autoritária e brutal com que se verificam as relações das pessoas com aqueles que são autoridades, daí porque ele foi um escritor proibido tanto nos países comunistas como nos nazistas, tendo seus livros queimados pelo Estado mesmo depois de sua morte, em 1924.

Também foi condenado na Tchecoslováquia como responsável pela revolta chamada de “Primavera de Praga”, ocorrida em 1968, em um processo autenticamente kafkiano. Até pouco tempo antes do seu falecimento só tinha publicado retalhos de suas produções, tendo mesmo recorrido, textualmente, ao seu grande amigo Max Brade para que destruísse todos os seus manuscritos e evitasse o reedição dos já publicados.

Aliás Kafka quando vivo não teve a menor repercussão literária, sendo tido e havido como um maluco e seus escritos só depois da 2ª Grande Guerra, é que as pessoas começaram a sentir, por experiência própria, as contradições de um medo eminentemente kafkiano onde as grandes potências gastam enormes fortunas visando a acumular potentíssimos armamentos para a defesa e ataque contra possíveis inimigos hipotéticos.

Por essa razão, não é de admirar que neste mundo louco em que moramos, um mundo absurdo como que egresso da imaginação (catártica de Kafka). Suas obras, antes interpretadas como simples delírios de uma mente patológica, passaram a ser vistas como uma realidade.

Thomas Carlyle no seu admirável “Os heróis e o culto dos heróis”, onde estuda a forma pela qual os grandes homens apareceram nos negócios do mundo, diz que o característico mais significativo da história de uma época é a maneira como ela acolhe um “grande homem”. No tempo do paganismo todo o grande homem era tido como um Deus, a forma mais antiga do heroísmo. As mitologias atestam isso.

Depois o “grande homem”, aquele que se destacou entre os demais, passou a ser considerado pelos habitantes de sua época, não mais como um Deus e sim como um inspirado por Ele, ou seja um Profeta (segunda fase do culto dos heróis). Em seguida, veio o herói-rei ou ditador. v.g. Napoleão, Lenine, etc (terceira fase do culto dos heróis).

Atualmente, “o grande homem”, aquele que se destacou como político ou administrador (quarta fase de cultos dos heróis) passou a ser encarado como “estadista”.

Para terminar chegou o momento de decidir se Kafka foi um louco, um gênio, um profeta. Se ele tivesse vivido nos tempos bíblicos certamente seria classificado como um profeta, na competência de Isaias, Jeremias, Ezequiel, Zacarias, Daniel, por outro lado, se os profetas bíblicos tivessem vivido nos tempos atuais, dificilmente escapariam de ser internados como pacientes psiquiátricos.

O papel cumprido por Kafka, no seu tempo foi sobretudo o de um profeta anunciando o que ainda não estava sendo percebido e sentido. Por isso, foi considerado um louco e visionário, mas um louco de gênio! Os acontecimentos do mundo atual vieram mostrar a razão de sua aparente desrazão!


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