Part of The International Journal of Psychiatry - ISSN 1359 7620 - A trade mark of Priory Lodge Education Ltd
Psychiatry On-line Brazil (6) Outubro 2002

 

Home

Ediçao do mês

Arquivo

Internacional

Eventos

Links

Instruções

Endereços

Mailling list

Naupsi

Psiquiatria na Prática Médica

Corpo Editorial

Editor:
Giovanni Torello

Psiquiatria, outros olhares

Entre Rezas e Remédios

Dr. Antonio Mourão Cavalcante
Professor Titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina/UFCe, autor de O Ciúme Patológico e Drogas, Esse Barato Sai Caro (Ed. Record)

Ainda existe uma grande resistência aos terapeutas populares e suas práticas. A rejeição corre um duas vertentes: primeira, de ordem religiosa, onde só existiria lugar para as práticas consagradas pelas religiões oficiais; segunda, de ordem científica, onde estas atitudes são rechaçadas pela Medicina Oficial, como destituídas de caráter científico e credibilidade acadêmica.

IGREJA CATÓLICA

A rigor o discurso eclasiástico ao longo dos últimos tempos - segundo análise do Prof. Cândido Procópio Ferreira de Camargo - teria passado por quatro momentos interpretativos diferentes. Refere-se, particularmente, ao transe, mas poderia ser facilmente estendido a todas estas práticas:

1o. - a experiência do transe foi visto como uma "possesão", uma interferência diabólica, expressão do domínio do malígno;

2o. - seguindo as pegadas do preconceito médico foi associado à loucura e consistiria em um processo essencialmente patológico;

3o. - mais tarde, reconhecendo ocorrer alterações psíquicas, no transe, recorreu-se à chamada parapsicologia para interpretá-lo. Foi quando, por exemplo, tiveram imenso sucesso as idéias do jesuíta, Pe. Quevedo;

4o. - finalmente, pode-se considerar em rituais de transe a existência de uma experiência humana transcultural a ser observada com respeito e interesse. (CINTRA, 1985)

Com efeito, esta postura mais conciliadora da Igreja inaugura-se com o Concílio Vaticano II. É o próprio Cardeal Koning que na introdução da Declaração Nostra Aetate (Documents Conciliares, tomo 2, Ed. Centurion, Paris, 1965) afirma: "No decorrer de sua história a religião sempre apareceu revestida do particularismo que causa a separação, o ódio e a guerra. O cristianismo também está enredado nesta história. Se ela quiser encontrar um lugar no mundo de hoje, precisa revelar-se como força de ligação e de reconciliação."

ECOS DE MILÊNIOS

Paulo VI, em 1975, lança a Exortação Apostólica Evangelia Nuntiande (A Evangelização no Mundo Contemporâneo) onde afirma, a propósito das religiões não-cristãs: "A Igreja as respeita e estima, porque elas são a expressão viva da alma de vastos grupos humanos. Elas comportam em si mesmas o eco de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com sinceridade e retidão de coração. Elas possuem um patrimônio impressionante de textos profundamente religiosos, ensinaram gerações de pessoas a orar e ainda acham-se permeadas de inumeráveis "sementes do Logos".

Anteriormente Paulo VI já havia citado em Kampala (Uganda) em 1969 trecho de sua mensagem: "Africae Terrarum (1976): "Muitos costumes e ritos, antes considerados somente como excêntricos e primitivos, hoje, à luz do conhecimento etnológico, revelam-se elementos integrantes de particulares sistemas sociais dignos de estudo e respeito.".... "A Igreja considera com muito respeito os valores morais e religiosos da tradição africana, não só pelo seu significado, mas também porque neles vê a base providencial sobre que pode transmitir a mensagem evangélica, e encaminhar à construção da nova sociedade em Cristo."

Portanto, não se verifica ao nível da Igreja Católica uma postura fechada. Aliás, o Frei Boaventura Kloppenburg (1961) relata que o Bispo Gonaives, no Haiti, há já alguns anos decidiu tomar uma atitude violenta em relação ao culto Vodu - correspondente da Umbanda brasileira no Haiti - colocando os 550 mil habitantes na sua diocese diante da opção: ou professavam o catolicismo e deixavam o culto Vodu, ou, abandonariam a Igreja Católica. Feita a consulta 24 757 (5% do total) disseram-se fiéis ao catolicismo, o restante 525 mil (90%) preferiram o Vodu. Os bispos das Antilhas resolveram mudar de tática...

RELIGIOSIDADE

No Brasil, já existem muitos trabalhos e reflexões feitas por teólogos. Para não nos alongarmos citaríamos apenas um trecho da Homilia feita pelo Papa João Paulo II, em Salvador, quando de sua viagem ao Brasil em julho/1980: "Verifico com alegria que mesmo no Brasil realizam-se pesquisas, escrevem-se ensaios e faz-se um esforço sempre maior no sentido do respeito à religiosidade popular, que, aliás, é também ela, expressão de uma dimensão profunda do homem. É a própria alma do povo que aflora nas expressões e manifestações da religiosidade popular, algumas de grande singeleza. No mais profundo da religiosidade popular encontra-se sempre uma verdadeira fome do sagrado e do divino.(...) "É preciso pois, não desprezá-la, não ridicularizá-la".

Portanto, Roma falou...

O LADO MÉDICO

Quanto ao aspecto médico, a situação é também muito clara. Detendo-se no documento da Organização Mundial da Saúde: "Promoção e Desenvolvimento da Medicina Tradicional" que emite a posição desta organização: "Tem-se notado que uma grande parte do pessoal de saúde, altamente qualificado, tem com frequência a tendência a ver a medicina tradicional como uma prática em declínio, não apresentando qualquer interesse, o que é, sem dúvidas, um grande erro considerando que a cultura da qual a medicina tradicional faz parte integrante não é nem imutável, nem morta." (OMS, 1978 - pp.10)

MEDICINA TRADICIONAL

Alerta, ainda, o documento para os desvios e manipulações que possam existir: "A pesquisa contemporânea, estando mais fortemente inclinada para as plantas medicinais, dá-nos a impressão que se deveria privilegiar o aspecto de que a medicina tradicional se reduz ao uso de plantas para tratar e curar as doenças.

É preciso não perder de vista o campo mais largo que cobre a medicina tradicional, tal como ela se pratica efetivamente no quadro dos sistemas de saúde de diversos países. Deste modo, deverá ser assegurado o acompanhamento numa abordagem holística, não deixando de lado nenhum dos aspectos da pesquisa". (pp.10)

Sobre a validade da medicina tradicional é dito: "A utilidade da medicina tradicional dispensa de ser demonstrado, é preciso promovê-la e explorar o máximo possível as possibilidades no interesse de toda a humanidade. É preciso avaliar, reconhecer seu justo valor e torná-la o mais eficaz possível, mais segura, mais acessível e menos dispendiosa a fim de facilitar o seu uso. Trata-se desde agora do sistema de saúde que a população considera como seu e o aceita sem reservas. Ademais, onde quer que seja, ele apresenta vantagens sobre os sistemas médicos importados porque fazem parte integrante da cultura do povo. Ela é particularmente eficaz para resolver certos problemas de saúde ligados à cultura. Ele pode trazer uma contribuição à medicina científica e universal, o que aliás já o faz generosamente. Reconhecê-la, promovê-la e desenvolvê-la são também marcas de respeito em relação à herança cultural de um povo." (pp. 14)

SEGUNDA CLASSE?

Dentre as propostas, o documento sugere como processo de integração da medicina tradicional nos cuidados primários de saúde:

1. Conferir um status oficial aos práticos tradicionais e fazê-los participar dos programas de desenvolvimento comunitário;

2. reciclar os terapeutas tradicionais para torná-los mais capazes nas ações de cuidados primários de saúde;

3. familiarizar os médicos e os estudantes de medicina com os princípios de medicina tradicional para valorizar o diálogo, a comunicação, a compreensão mútua e, finalmente, a integração das duas categorias de terapeutas;

4. fazer compreender ao público que a medicina tradicional não é uma medicina de segunda classe." (pp. 15/16)

Como exemplo histórico poderíamos citar a experiência que foi vivenciada, no Ceará, pelo dr. Galba Araújo, Chefe da Maternidade Escola (UFC). Em depoimento de sua rica experiência ele assinalava: "O convívio mais íntimo com as parteiras tradicionais, fez-se observar a atmosfera de inverdade que pairava em seu redor: "só sabem fazer aborto", "Só sabem infectar as mulheres". Nade de mais inverídico. Constatamos que elas só passam a fazer abortos quando deram uma "passada" por um hospital qualquer. Não são, também, causadoras de infecção. O respeito que tem ao pudor feminino, impede-lhes de uma conduta agressiva, com interferência ou interveniência no trabalho de parto. Consideram a chegada de um novo ser como um evento feliz, um evento alegre a ser partilhado pelos componentes da comunidade. E tudo quanto se fizer para facilitar esse evento - sem quebra dos princípios e tradição locais - é recebido com satisfação e com decidido apoio da comunidade.." (..)

"Colhemos destas parteiras proveitosos ensinamentos: não trabalham como profissionais interessados em proventos. O que fazem é com puro e simples sentido de prestação de auxílio". Mais adiante, referindo-se às rezadeiras: "Foge-me a possibilidade de dizer se o seu trabalho é ou não possuidor de conteúdo racionalmente válido. Contudo, um fato é incontestável: daquela população ali presente, inúmeros foram os casos por elas atendidos. Atendidos e salvos. Vidas que se preservaram e onde o êxito não pode ser atribuído a nós médicos, a farmacêuticos, a infermeiras ou outros profissionais de mesma categoria. Simples coincidência? Falece-nos a capacidade de dizê-lo. A rezadeira, no seu trabalho, comporta-se com dignidade e segue um ritual próprio. É na comunidade considerada um membro respeitável. E sua contribuição tem se revelado proveitosa, demonstrando, inclusive, uma dedicação incomum." (ARAÚJO, 1980)

O Dr. Galba tornou-se famoso, no mundo inteiro, porque ele inovou os serviços de obstetrícia em dois aspectos. Primeiro, ele descobriu que a melhor posição para parir é de cócoras. A mulher sentada em cadeira ginecológica especial. Ela pode apoiar-se e parir com mais facilidade. Descobriu, igualmente, que não é necessário submeter as mulheres à tricotomia. Manter os pêlos não tem nada de anti-higiênico. Segundo, o menino quando nasce tem que ficar no colo da mãe e não no berçário. Doutor Galba foi ensinar e aprendeu. Ficou famoso por aprimorar uma cadeira ginecológica, baseada em outras tantas usadas pelas parteiras leigas.

Tem razão Mestre Xavier, pai-de-santo de Candomblé: "Se você não conhece, estão não condene. O que a gente não conhece, não pode julgar."

Referências Bibliográficas

  1. ARAÚJO, Galba - Anais do Seminário Sobre Atenção Primária de Saúde, Fortaleza, agosto/80;
  2. CAMARGO, Cândido P. Ferreira – Kardecismo e umbanda, São Paulo, Ed. Pioneira, 1961;
  3. CINTRA, Ramundo - Candomblé e Umbanda, o desafio Brasileiro, São Paulo, Ed. Paulinas, 1985;
  4. JOÃO PAULO II - Pronunciamentos do Papa no Brasil, São Paulo, Ed. Loyola, 1980; OMS, Série de Relatórios Técnicos, No. 662, Genève, 1978;

Voltar para Editorial Voltar para Editorial

Home | Edição do mês | Arquivo | Internacional | Eventos | Links | Instruções | Endereços | Mailling List | Naupsi
|
Corpo Editorial | Psiquiatria na Prática Médica |