Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Maio de 2002 - Vol.7 - Nº 5

No Paíz dos Yankees

Uma epidemia de loucura?

Fuller Torrey, Esquizofrenia, Gatos e alguma epidemiologia

Dr. Erick Messias

Entre as vozes que discutem os caminhos da psiquiatria nos Estados Unidos ganhou destaque nos últimos anos as diatribes de Fuller Torrey. Durante muitos anos marginalizado pela correntes psicanalíticas Torrey emergiu nos anos noventa como campeão da causa dos doentes mentais graves. Seu foco gira em torno de esquizofrenia e transtorno bipolar, mas seu discurso e práticas apresenta pouco em comum com os ativistas que atuam no Brasil e por isso acho que notícias sobre Torrey e suas idéias merece atenção no lado de baixo do Equador.

Torrey é um psiquiatra e pesquisador, que começou se dedicando a epidemiologia e mais recentemente procura utilizar biologia molecular para desvendar o quebra-cabeças chamado esquizofrenia. Suas idéias eram encaradas como tolices, inclusive sua defesa da velha concepção de esquizofrenia como doença do cérebro era ridicularizada pela psiquiatria oficial. Acredito que essa foi uma das razões pelo seu livro The Death of Psychiatry (A morte da psiquiatria) lançado em 1974 – Freudian Fraud (Fraude Freudiana) é outra contribuição para o debate psicanalítico. De lá para cá muito as coisas mudaram. O conceito de esquizofrenia como doença do cérebro se tornou um truísmo e alguns de seus livros viraram best sellers incluindo o Surviving Schizophrenia.

Duas de suas idéias tem despertado controvérsia: primeiro que esquizofrenia é uma doença moderna, com origem em algum lugar durante a revolução industrial – essa idéia foi esmiuçada em seu livro The Invisible Plague ( A Peste Invisível) lançado em 2001. Uma curiosidade: Machado de Assis é citado – naquela passagem d’O Alienista no qual Simão Bacamarte conclui que a loucura, que ele pensava ser uma ilha, era na verdade um continente.

Todo o livro se baseia no seguinte gráfico:

De acordo com esses dados estaríamos vivendo uma epidemia silenciosa de loucura que teria começado em no final do século 18. E no livro Torrey defende essas idéias com unhas e dentes. Isso por conta de sua hipótese de que esquizofrenia seria o resultado de alguma infecção, provavelmente viral que aconteceria cedo na infância, talvez durante o desenvolvimento fetal. Há vários problemas nessa hipótese: primeiro esses dados colocam no mesmo grupo todos os indivíduos hospitalizados em instituições para os insanos. Devido a esse método estarão incluindo diferentes tipos de doentes, incluindo muitos sifilíticos. Outra limitação vem do aspecto de controle social que a internação psiquiátrica possui e o próprio Torrey discute esse aspecto no capítulo final. Ainda outro problema é a falta de padrão na classificação e diagnóstico dos pacientes. O diagnóstico psiquiátrico sem dúvida tem um desenvolvimento histórico importante e assim uma comparação entre os diagnosticados em 1800 e aqueles classificados em 1980 possui dificuldades inerentes. Para uma competente discussão sobre o diagnóstico psiquiátrico ver o livro, com esse nome, do Luiz Salvador Miranda Sá-Jr.

Mesmo com todas essa dificuldades a discussão sobre uma possível variação na incidência da esquizofrenia merece atenção e uma lida cuidadosa e crítica das idéias de Torrey também.

A segunda idéia controversa de Torrey é que esquizofrenia seria uma doença infecciosa e que os gatos seriam o veiculo em que esse agente, possivelmente viral, passaria para humanos, particularmente para os cérebros em desenvolvimento in útero. As evidencias contra os gatos são ‘circunstanciais’ mas incluem: o possível mecanismo que atua na toxoplasmose; o fato de gatos terem voltado ao convívio doméstico com o fim da idade média – época em que o potencial agente causador teria iniciado a epidemia, ainda na mente de Torrey – e o maior contato dos gatos com mulheres grávidas no inverno, causando a sazonalidade de nascimentos observada na esquizofrenia.

Essas são algumas das idéias mais discutidas de Fuller Torrey nessa terra de ianques. O fato dele ser o diretor da Fundação Stanley, uma das mais vigorosas agencias de financiamento de pesquisa em esquizofrenia com certeza ajuda a fazer com que essas idéias sejam levadas em consideração. Fuller Torrey não é mais o pária que costumava ser. Ele mesmo debocha desse prestígio súbito: "quando eu tenho milhões de dólares para distribuir, as pessoas que não falavam comigo dez anos atrás decidiram que devem falar comigo. Sou perigosamente respeitável agora". E ainda que não concorde com todas as idéias vindas desse porta-voz de uma ala cada vez mais hegemônica da psiquiatria, há que se respeitar sua dedicação para com os doentes e sua apreço pela pesquisa.


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