Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2002 - Vol.7 - NΊ 1

Artigo do mês

Agorafobia, espaço e subjetividade*

Carlos Alberto Pegolo da Gama
Mamoel Tosta Berlinck

ÁPORO

Um inseto cava
Cava sem alarme
Perfurando a terra
Sem achar escape.

Que fazer, exausto,
Em país bloqueado,
Enlace de noite,
Raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
1

Introduzindo o espaço

Um bom caminho para começarmos o estudo da agorafobia é através da questão do espaço. Primeiro porque a agorafobia é reconhecida como uma fobia dos espaços em contraposição a uma fobia mais estruturada, com um objeto mais definido. O espaço, neste sentido, indicaria a existência de um objeto mais indefinido, etéreo ou aéreo. Segundo porque, na própria palavra "agorafobia" está a ágora introduzindo um espaço mais complexo, apontando para questões relativas ao espaço político, ao lugar ocupado por cada um a partir de sua opinião pessoal, de sua relação com o outro, de sua alteridade.

A introdução pelo espaço é interessante também porque permite ultrapassar uma dificuldade presente na maioria dos autores discorrendo sobre o quadro clínico, ou seja, definir qual é o medo em questão. Quando a agorafobia é descrita em 1872 pelo psiquiatra alemão Carl Westphal2, há o estabelecimento de um medo com relação aos espaços públicos, acentuando o caráter social desta fobia. Os pacientes não conseguem ficar sozinhos em grandes espaços abertos. Logo em seguida, Legrand Du Saulle, em 1878, questiona este medo específico de lugares públicos, argumentando que o medo é relativo às características e disposição do espaço. Propõe, então, a denominação "medo dos espaços". Segundo esse autor:

    "Não posso adotar a expressão "agorafobia", da qual fazem uso principalmente os alemães, porque ela limita o transtorno psíquico ao medo de lugares públicos. Ora, as observações clínicas dos autores e as minhas próprias, estabelecem ao contrário, como veremos a seguir , que os doentes têm medo do espaço, do vazio, tanto na rua quanto no teatro, na igreja, em andares pouco elevados, em janelas dando para um grande pátio ou para o campo, em um ônibus, em um barco ou sobre uma ponte. Ao escolher este termo vago "medo dos espaços", creio dar uma idéia exata do fenômeno complexo que será exposto aqui, e me agrada pensar que esta denominação, substituindo a de agorafobia, nada perderá ao ser expressa em francês." 3

Na CID-104, a agorafobia é descrita da seguinte maneira :

O termo "agorafobia" é usado aqui com um sentido mais amplo do que quando foi originalmente introduzido e como é ainda usado em alguns países. Ele é agora usado para incluir medos não apenas dos espaços abertos, mas também de aspectos relacionados tais como a presença de multidões e a dificuldade de escape fácil e imediato para um local seguro (usualmente o lar). O termo, portanto, refere-se a um agrupamento inter-relacionado e freqüentemente sobreposto de fobias abrangendo medos de sair de casa, medos de entrar em lojas, multidão ou lugares públicos ou de viajar sozinhos em trens, ônibus ou aviões. Embora a gravidade da ansiedade e a extensão do comportamento de evitação sejam variáveis, esse é o mais incapacitante dos transtornos fóbicos e alguns pacientes tornam-se completamente confinados ao lar; muitos são aterrorizados pelo pensamento de terem um colapso e serem deixados sem socorro em público. A falta de uma saída imediatamente disponível é um dos aspectos-chave de muitas destas situações agorafóbicas. (p. 133)

É quase impossível enumerar todas as situações fóbicas. A fenomenologia do quadro clínico pode se apresentar de diversas maneiras.

Entretanto, aqui pretende-se entender o sintoma agorafóbico como algo devendo ser pesquisado a partir da própria configuração subjetiva. Para tanto, o interesse pelo espaço visa revelar a natureza deste imbricamento entre subjetividade e espaço. Freud faz o seguinte comentário a este respeito em Totem e Tabu (1913):

    Desse modo, seria tarefa vã, e na verdade tola, tentar compreender as complexidades e pormenores dos sintomas de (por exemplo) uma agorafobia, com base em suas premissas subjacentes; pois toda a harmonia e precisão da combinação são apenas aparentes. Tal como acontece com as fachadas dos sonhos, se procurarmos mais atentamente, encontraremos a mais gritante incoerência e arbitrariedade na estrutura dos sintomas. A razão real para os pormenores de uma fobia sistemática desse tipo reside em determinantes ocultos, que não precisam ter nada a ver com uma inibição de movimentos, e é por isto também que tais fobias assumem formas tão variadas e contraditórias nas diferentes pessoas. (Freud, 1913; p. 120).

Assim, é necessário situar, primeiro, a noção de espaço. Ele se opõe, inicialmente, a noção de ambiente. Este permitiria nossa existência (ou não), algo inespecífico e circundante. A noção de ambiente não comporta medidas, distâncias, posições. O ambiente está ligado à espécie, não comporta nenhuma configuração. O espaço, assim como o tempo, ao contrário, pressupõe a marca do sujeito, ele é fruto de sua organização, ou seja, o espaço se arranja a partir de cada sujeito. Dessa forma, pode-se pensar o espaço como o primeiro objeto psíquico. O objeto da agorafobia é o espaço. O sintoma agorafóbico está relacionado a impossibilidade de uma organização estável deste espaço.

O espaço, por sua vez, se refere a uma certa estruturação produzida a partir de uma série de objetos – fundo, limite, ponto de vista - articulando-se e produzindo algo que mantém uma certa estabilidade. Os componentes deste espaço não se resumem a objetos e seres concretos, isto é, ocupando um lugar físico, mas também a uma série de elementos sem concretude, como a altura, profundidade, perspectiva, luz, sons, odores, palavras, frases, discursos e fantasias. Estas articulações entre o sujeito e o espaço, isto é, distância, altura, largura, perspectiva, dinâmicas, são extremamente pessoais e estão relacionadas a experiências muito precoces. Assim, por exemplo, o tamanho dos mesmos objetos varia assim como varia o tamanho do mesmo sujeito, conforme a situação. Essa dinâmica espacial foi amplamente revelada por Lewis Carroll em Alice no país das maravilhas (2002).

Outro aspecto relacionado ao espaço é a questão externo-interno. Nas concepções tradicionais a respeito da agorafobia e dos demais quadros clínicos, o espaço é entendido como exterior ao sujeito em contraposição a algo psíquico, interno. Entretanto, seria necessário superar esta dissociação mesmo sabendo, em última instância, ser ela necessária para a construção do psiquismo e, portanto, do eu ( ego).

A separação interno-externo está ligada a um artifício egóico, necessitando estabelecer para se diferenciar um fora e um dentro, isto é, divisões, demarcações sustentando a construção. A crença nesta separação seria semelhante a crença numa identidade fixa. Sobre este ponto Berlinck (2000) afirma:

    O eu não supõe um substrato íntegro denominado identidade. Ao contrário, tudo indica que o eu é sempre uma bricolage de identificações, incorporações, possessões. Entretanto, é inegável que o eu sempre tem uma concepção íntegra de si podendo ser denominada de identidade que é imaginária. (p. 173)

Da mesma maneira, o externo, a separação é sustentada pelo ego como uma forma de garantir uma certa alteridade. Conceber o espaço como objeto, implica na possibilidade de reconhecimento por parte do sujeito, de que o mundo é uma criação sua e, desta maneira, por mais que seja olhado de fora , o sujeito está sempre implicado nele. Não existiria, assim, uma exterioridade independente do sujeito. O movimento feito em direção ao mundo para conhecê-lo , não tem um sentido oposto ao movimento feito para o interior (introspecção). Tanto num sentido , como no outro, há implicação com a mesma categoria: a subjetividade. Desta maneira, o foco do problema do espaço, entendido como externo ao sujeito, desloca-se para a questão de como se dá a construção da subjetividade ou, de como os diversos elementos se ordenam no espaço a partir da história de cada sujeito. Visto assim, o psiquismo seria uma organização narcísica do vazio, um espaço onde podem ocorrer os objetos e sua dinâmica: a presença, a ausência, o intervalo, a memória, enfim.

Quando o espaço é tomado como referência e, conseqüentemente, as noções de altura, distância, profundidade, amplitude, plenitude etc., são levadas em consideração, percebe-se que todas elas são vivências subjetivas e relacionais. Apesar de mensuráveis e de necessitar do espaço para se realizar, ocorrem também no mundo interno apresentando uma indissolúvel continuidade. Cada uma destas dimensões é, porém, um acontecimento diferente segundo sua dimensão simbólica.

A vertigem, fenômeno muito comum em pacientes agorafóbicos, está relacionada com a perda de ponto de referência. O espaço se organiza a partir de pontos relativamente fixos, ocorrendo então um ordenamento de seus vários componentes. É freqüente a experiência de uma certa vertigem quando um ponto de apoio subitamente se coloca em movimento. Se a perda do referencial externo pode causar vertigem, pode-se pensar também que, na maioria das vezes, outra coisa ocorre, ou seja, uma perda de referencial interno provoca a sensação de perda de referenciais externos, uma desorientação espacial provocando acesso de angústia e até de pânico. São perdas de pilares de sustentação egóicos os responsáveis por esta aparente desorganização externa. O problema primordial, portanto, está relacionado com a perda de uma certa referência fundando um determinado tipo de organização. Se há perda externa, é porque também há perda de referência de si mesmo.

Os fenômenos fóbicos, e especialmente a agorafobia, têm uma estreita relação com a experimentação do espaço e sua relatividade. Na vivência cotidiana o sujeito não se dá conta das inúmeras operações realizadas no sentido de se orientar espacialmente. Esta orientação demanda um gasto de energia e uma atividade decisória extremamente rápida e complexa. Por exemplo, quando passeamos por uma praça num final de tarde e divagamos sobre algum fato de nosso interesse, não percebemos a série de operações sendo realizadas de maneira quase automática estando, de alguma forma, relacionada com a atividade consciente. O estado de espírito influi na escolha do caminho e, por outro lado, a paisagem dá rumo a nossas reflexões. Merleau-Ponty (1971) fala do tema numa passagem:

    ... para essa mistura com o mundo que para mim recomeça cada manhã, logo que abro os olhos, para esse fluxo de vida perceptiva entre ele e mim que não para de pulsar, da manhã à noite, fazendo que meus pensamentos mais secretos alterem o aspecto dos rostos e das paisagens, como os rostos e as paisagens, inversamente, me trazem alternadamente socorro e ameaça ... (p. 44)

A agorafobia apresenta, dessa forma, íntima relação com a saída da depressão pois esta freqüentemente vem acompanhada por aquilo que Berlinck e Fédida (2000) denominam de depressividade, ou seja, uma clara e intensa sensação de mudança de espaço. A depressividade desloca o sujeito de um espaço confinado onde ocorre letargia, insensibilização da sensorialidade, uma lentificação das funções perceptivo-vitais, lançando-o para um espaço aberto, com crescentes manifestações vitais.

Assim, um dos problemas enfrentados pelo pesquisador quando tenta descrever o quadro clínico da agorafobia está relacionado à heterogeneidade das manifestações sintomáticas. A relação com o espaço apresenta diversas facetas e mudanças no decorrer da evolução do quadro, sendo praticamente impossível delimitá-lo a partir da sintomatologia. A dimensão simbólica, constitutiva do espaço, precisa ser levada em consideração e é a partir desta colagem existente entre externo-interno onde se encontra um caminho profícuo para a compreensão do quadro clínico. A sensação de constrição ou de amplitude, por exemplo, apresenta uma íntima correlação com a esfera espacial e a vida interior. Ela é manifestação do espaço vital interior do ser vivente, uma amplitude psíquica permitindo ao ego introduzir-se por via motora-visual na extensão do mundo e reconhecer a espacialidade do circundante. Vivenciar a amplitude espacial significa introduzir-se no espaço, apossar-se dele, seja por meio da fantasia, da visão, do andar ou do ego. Surge, então, a possibilidade de poder seguir sempre adiante. As ações humanas acontecem neste espaço articulado dividido em planos, territórios próximos e distantes, superfície e fundo sendo, ao mesmo tempo, o psiquismo e o mundo. A amplitude, enquanto representante desta infinitude das possibilidades do mundo, está relacionada com o destino, com o futuro. A posição do homem com relação ao futuro depende em grande parte de sua vivência com a amplitude e a perspectiva espacial. O sentido atribuído a amplitude dependerá de vivências influenciando a confiança com respeito ao destino e ao futuro. A perspectiva está relacionada com a amplitude, mas, também, com as realizações, com o êxito, com a dominação e com o ponto de fundo ao qual está relacionada. Ao contrário, a um mundo estreito, oprimido, deprimido, corresponderá a necessidade de constrição, defesa, proteção e segurança. A amplitude e a perspectiva seriam, assim, um convite à realização; elas colocam a problemática de estar no mundo e seguir em frente, rumo ao futuro; colocam a questão do enfrentamento da vida e, principalmente, do desejo enquanto o que se coloca no lugar da falta sempre referida ao vazio próprio do espaço.

O espaço do agorafóbico está, portanto, povoado por fantasmas ligados à sua própria subjetividade. Então, quando o psicoterapeuta se depara com o sintoma agorafóbico, é levado a pensar num arranjo deste espaço indicando uma configuração interna do sujeito em questão.

Que fantasmas seriam estes? Por que a partir de um dado momento este espaço se tornaria tão aterrorizante para o sujeito?

O ego e o desamparo

O ser humano nasce desamparado não possuindo recursos para sobreviver frente aos perigos do mundo. Este desamparo é constitutivo da subjetividade e por mais que tentemos negá-lo, eliminá-lo, durante toda nossa existência ele continuará manifestando-se das mais diversas maneiras. O ego, então, pode ser pensado como construção tentando administrar o desamparo.

Seria tarefa muito extensa para os objetivos deste artigo, expor de maneira detalhada os diversos momentos da constituição egóica. No entanto faz-se necessário algumas considerações para associá-lo ao desamparo.

Uma das questões fundamentais está ligada ao questionamento da autonomia egóica e da consciência como plano absoluto. A introdução do conceito de inconsciente permite questionar a crença na consciência e pensar um sujeito encontrando-se além dela, cheio de lacunas e incertezas. Para Freud a subjetividade tem sua origem numa diferenciação do id e por este motivo seria em parte inconsciente. O ego administra as relações do sujeito com o mundo externo, com o id e com o superego. Estes também teriam estatuto de mundo externo para o ego. Assim, o ego administra a todo momento as demandas ligadas ao inconsciente e ao sexual. O desejo, como representante destas demandas provocaria a organização egóica produzindo reorganizações no sentido de integrar diversas demandas existentes.

Por outro lado, toda teoria do narcisismo revela as bases da subjetividade alicerçadas num descentramento em relação ao outro. Há uma alienação no outro constitutiva do sujeito.

O nascimento do ego está associado a uma tentativa de integração corporal. Por um lado há o pulsional, sendo a pulsão um conceito limite entre o psíquico e o somático, e por outro o ego tentando integrar as pulsões parciais numa criação denominada corpo e revestida de subjetividade a partir de uma rede de representações sustentada por ele.

Na teoria freudiana, o momento do nascimento é tratado como protótipo da situação de invasão pelo pulsional. Neste momento haveria uma grande perturbação da libido narcísica do recém nascido provocando uma grande excitação sendo extremamente desprazerosa. Esta força pulsional primitiva deixaria suas marcas e o conceito de angústia sinal é criado para sinalizar ao ego a proximidade com o perigo de ficar exposto ao pulsional.

3-A angústia e as oscilações inerentes à subjetividade

A manutenção de uma estrutura organizada como o ego depende da preservação de certos parâmetros. Existe um corpo físico envolto por uma camada de pele. A partir deste limite corporal físico, invólucros imaginários se formam e englobam este corpo físico: é o que se denomina psiquismo do qual o ego é parte; uma imagem, uma entidade psíquica representante desta unidade corporal. Este invólucro pode sofrer ameaças à sua integridade, isto é, toda esta construção pode ser destruída, aniquilada, se o equilíbrio energético não for preservado. Este invólucro pode sofrer um ferimento, ou seja, a noção de psíquico e de "eu" pode ficar abalada. Na teoria freudiana, esta ameaça seria conseqüência de um afluxo energético demasiado intenso modificando o nível de energia responsável por manter esta estrutura e a colocaria em risco. Esta possibilidade de desestruturação, de ameaça à construção narcísica é o desencadeante da angústia adquirindo, assim, o estatuto de sinalizadora, no sentido de prevenir uma possível desestruturação.

Na agorafobia, a maneira como cada um ordena o espaço tem relação com a própria manutenção de uma certa noção de eu, uma imagem imbricada neste espaço acomodando-se às suas mudanças a todo momento. É importante lembrar que, a priori, o espaço é desrealizante, desintegrador, pois detém todas as possibilidades de ordenações e não somente uma garantindo determinada configuração subjetiva. Qualquer ordenação neste espaço é perturbadora e demanda uma resposta reintegradora. A angústia aparece no exato momento deste tensionamento da ordenação estabelecendo contato com o projetado no espaço. Assim, a angústia está sempre ligada a uma transformação do espaço e a uma desestruturação possível, a uma ameaça da integridade da forma narcísica constitutiva do psiquismo.

A resolução da angústia solicita uma outra disposição deste espaço, fundando um lugar, isto é, a ordenação do espaço como um campo, segundo certos parâmetros e limites relacionados a determinada subjetividade. A fundação de um lugar coloca em jogo uma série de elementos e mecanismos próprios do psiquismo , abrangendo mecanismos muito arcaicos associados com outros muito mais sofisticados. Há sempre uma certa dose de onipotência na fundação de um lugar, pois todas estas construções - visando manter uma certa noção de integração - são ilusórias e partem do princípio de que há diferenciação, previsibilidade, isto é, tentam contornar o desamparo. Este lugar é articulador, propõe um certo arranjo e uma certa disposição localizando o sujeito e definindo certa posição. Além disso, a criação de um lugar mantém estreito vínculo com a questão edípica e toda a ordenação subjacente a ela, ou seja, a inscrição do sujeito num espaço familiar regido pela lei da proibição do incesto. Esse mesmo lugar inscreve o sujeito na ordem da linguagem e do discurso. A manutenção e organização deste lugar depende diretamente da capacidade de articulação do ego frente às possíveis demandas subjetivas. O ego é formado por identificações tomando o lugar de investimentos abandonados do id. O complexo de Édipo oferece uma espécie de matriz a partir da qual o jogo identificatório irá ocorrer.

Imagine um eixo que tenha de um lado o ego, a pretensa identidade, a alteridade, o controle, o consciente, a separação externo-interno. De outro lado o pulsional, o desamparo, o perder-se no outro, no espaço, sem possibilidades de identificação e diferenciação. A este respeito Birman (2000) afirma:

    Portanto, o que a leitura freudiana da subjetividade nos revela é a permanente oscilação do sujeito entre o descentramento e o centramento, entre o fluxo pulsional e o eu, entre o inconsciente desejante e a consciência. Vale dizer, aquela leitura indica a oscilação insistente da subjetividade entre os pólos da precariedade e da auto-suficiência. Por isto afirmei anteriormente que a formação ilusória da auto-suficiência seria um dos eixos fundamentais do sujeito que se oporia à presença insistente do descentramento e do desamparo. (p. 194).

Esta oscilação e dramaticidade do eu é acompanhada muito de perto pela manifestação do que Freud chamou de angústia sinal demarcando o espaço de relação do sujeito e indicando a proximidade de possíveis ameaças à estrutura egóica. A possibilidade de uma certa abertura permitindo ao sujeito vivenciar alternadamente estes pólos subjetivos indica capacidade de elaboração psíquica.

4-Agorafobia – Um medo protegendo do pavor

A agorafobia pode ser relacionada a uma dificuldade de vivenciar esta oscilação. O complexo de Édipo é estruturador do ego onde a castração determina uma posição para o sujeito. Esta posição oferece certas garantias e permite a crença num ordenamento do mundo. A agorafobia é uma falha nesta passagem onde o sujeito, num primeiro momento, fica restrito a um dos pólos, o da auto-suficiência, numa posição denominada narcísica. Mecanismos de defesa entram em ação para promover separação e dissociação.

Nesta ótica, o sintoma pode ser pensado como um momento de passagem. O momento anterior ao sintoma está relacionado a uma dinâmica narcísica e freqüentemente depressiva. É caracterizado por uma separação e dissociação dos dois pólos apontados acima. Existe, porém, a crença num mundo sem falhas, coeso, previsível, embasada por um sentimento de onipotência. Não há possibilidade ainda de contato com o diferente e as relações acontecem na base da idealização.

O momento de irrupção do sintoma está associado a um acontecimento tensionando a estrutura egóica e exigindo sua modificação, isto é, existe a necessidade de uma espécie de metamorfose libidinal. O sujeito precisa sair do lugar onde está narcisicamente deprimido e assumir uma nova posição. A maneira confinada do ego funcionar não consegue mais manter um mundo coeso e a sensação é de catástrofe iminente. Entretanto, há um certo aprisionamento com relação a este lugar ligado às figuras parentais embasando sua subjetividade. Esta injunção do real precipitando o sintoma coloca o sujeito frente a um mundo aterrorizante, sem garantias, cheio de falhas e lacunas, onde não são encontrados sinais orientadores. O sintoma propicia a manutenção de um certo grau de organização mas possibilita também o contato com o pólo pulsional condensando tanto um movimento transgressivo, de enfrentamento, de encontro com o desejo como, por outro lado, mantendo um lugar de passividade para a depressão.

O sintoma neste caso sinaliza uma possibilidade de passagem; o salto existente entre o antes e o depois possibilita uma nova maneira de estar no mundo, podendo-se falar de uma positividade do sintoma. A instauração do sintoma agorafóbico implica a criação de uma dinâmica complexa revelando uma espécie de amplificação e crescente complexidade objetal do mundo bem como o reconhecimento implícito do espaço como o objeto onde objetos podem existir. Há uma tentativa de diferenciação, há a instauração de uma interrogação onde antes talvez houvesse ausência.

No texto "Inibições, sintomas e ansiedade" (1926), Freud trabalha o caso do pequeno Hans a respeito desta questão. Ele nos dá elementos para pensarmos a agorafobia como uma organização sintomática garantindo a distância, mas também conservando a proximidade. Se, por um lado, sair de casa pode expor o sujeito à sexualidade, ficar dentro de casa pode estar relacionado à entrega passiva ao pai.

Os pacientes agorafóbicos, em vez de evitarem a situação produtora de angústia, ao contrário, necessitam dela e a procuram exercendo um controle a respeito da distância. Não fosse isso, teriam de continuar mantendo íntimo contato com a depressão e angústias primitivas e catastróficas. Freud estabelecendo um vínculo entre as diversas vivências de angústia, apresenta a angústia sinal como a forma mais elaborada e controlável de algo remetendo ao traumatismo e ao desamparo.

A clínica com estes pacientes revela o pavor ocupando uma posição fundamental. Freud esforçou-se para estabelecer as diferenças entre os termos medo (furcht), angústia (angst) e pavor (schreck). No texto "Conferências introdutórias sobre psicanálise" (1916) observa:

    Evitarei aprofundar-me na questão de saber se nosso uso idiomático quer significar a mesma coisa, ou algo nitidamente diferente, com a palavra "Angs"t [angústia], "Furcht" [medo] e "Schreck" [pavor]. Apenas direi que julgo "Angst"‘ referir-se ao estado e não considera o objeto, ao passo que "Furcht" chama a atenção precisamente para o objeto. Parece que "Schreck", por outro lado, tem sentido especial, isto é, põe ênfase no efeito produzido por um perigo com o qual a pessoa se defronta sem qualquer estado de preparação para a angústia. Portanto, poderíamos dizer que uma pessoa se protege do pavor por meio da angústia. (Freud, 1916-1917; p. 461 – grifos do autor)

O medo se diferenciaria dos outros dois por ter um objeto circunscrito e preciso. Na angústia e no pavor este objeto não é encontrado. A angústia seria um sinal de proteção contra a repetição de uma primeira vivência mítica do perigo. O sinal de angústia remete, então, a uma situação fundamental, isto é, ao pulsional. O pavor seria a reação a esta angústia primordial. Assim, a angústia sinal é uma defesa contra o pavor de se expor ao pulsional. O sintoma agorafóbico insere-se neste contexto, podendo-se traçar uma linha indo do mais primitivo (o pulsional) até a ágora (o situar-se enquanto sujeito) mostrando os dois pólos da problemática. O termo "agorafobia" parece muito apropriado para descrever o quadro porque a ágora não é somente o espaço público, mas um espaço muito complexo, o espaço dos discursos, das posições, do enfrentamento, da alteridade e do preconceito, do diálogo onde posições diversas são sustentadas por sujeitos. O agorafóbico necessita ocupar um lugar, mas não consegue enfrentar a incerteza de perder-se no seu próprio desamparo. Aquele que teme a ágora, teme um espaço onde há potencialidades tanto para a constituição de algo próprio como para a perda de limites e dissolução de fronteiras.

 

    * Este trabalho foi escrito no âmbito do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP e foi lido e comentado pelos pesquisadores desse grupo a quem agradecemos a generosa colaboração.

    1 Drummond, C.A. Reunião: 10 livros de poesia, Rio de Janeiro: José Olympio, 1978 – pág. 92

    2 C. Westphal, "Die agorafhobie, eine neuropattische Erscheinung", Archiv fur Psychiatrie und Nevenkrankenheit,1872, 2-3, 138-161. cf. Pereira, M.E.C, Pânico Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico, São Paulo, Lemos, 1997.

    3 H. Legrand du Saulle, Étude clinique sur la peur des espaces ( agoraphobie des allemands) – névrose émotive,Paris, V. adrien Delahaye et C,1878. cf. Pereira, M.E.C, Pânico Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico, São Paulo, Lemos, 1997.

    4 Classificação Internacional das Doenças – Organização Mundial de Saúde. Porto Alegre, Artes Médicas,1992

 REFERÊNCIAS

  1. BERLINCK, M.T. "O que é Psicopatologia Fundamental". In Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000, pp.11-26
  2. BERLINCK,M.T. e FÉDIDA,P.- "A clínica da depressão: questões atuais" in BERLINCK,M.T. Psicopatologia Fundamental , São Paulo, Escuta, 2000, pp. 73-91.
  3. BIRMAN, J. – "Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos!" In KHEL, M.R. (org.) Função Fraterna - Rio: Relume Dumará, 2000, pp. 171-208
  4. CARROLL, L. – Aventuras de Alice no país das maravilhas e Através do espelho. Edição comentada. Trad. de Maria Luiza X. de A Borges, Rio, Jorge Zahar, 2002.
  5. CID-10 Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 OMS, Porto Alegre, Artes Médicas, 1972
  6. FREUD, S. Totem e tabu (1913).– ESB, Rio: Imago, 1976 XIII, p. 13-163.
  7. FREUD, S. O ego e o Id (1923). ESB, Rio, Imago, 1976 XIX , pp. 15-80.
  8. FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926).– ESB, Rio– Imago, 1976 - XX, pp. 81-171.
  9. FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (1916). ESB, Rio, Imago. 1976 XVI pp. 251-497.
  10. GAMA C.A.P. Agorafobia um estudo psicanalítico – as relações entre o espaço e a subjetividade humana. Dissertação de mestrado – PUC-SP, 2001.
  11. LACAN, J. O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio: Jorge Zahar, –1985.
  12. MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971.
  13. PEREIRA.M.E.C. Pânico-Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos, 1997.
  14. PEREIRA. M. E. C. Pânico e desamparo: um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta. Biblioteca de Psicopatologia Fundamental, 1999.

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