Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Novembro de 2001 - Vol.6 - Nº 11

História da Psiquiatria

A Psiquiatria Brasileira na década de 60 (II)

Dr. Walmor J. Piccinini

Vivendo nosso dia a dia, nem sempre percebemos a real dimensão dos acontecimentos. Passados 40 anos, podemos olhar para o passado e reavaliar melhor algumas coisas, alguns períodos da História. Vistos com as nossas vivências atuais, os anos 60 foram riquíssimos em todos os sentidos. O espaço requerido para avaliar a nascente psicofarmacologia, a formação dos novos psiquiatras, a desconstrução do macro-hospital, os movimentos de idéias como a da Saúde Mental exigiram um espaço que não dispomos. Vou pinçando alguns aspectos interessantes da minha observação estimular outras idéias a respeito daqueles anos trepidantes. Em 1961, por exemplo, Michel Foucault publicou a História da Loucura. Uns vinte anos depois seu trabalho passa a ser citado em quase todas as Teses de pesquisadores na linha antimanicomial ou antipsiquiátrica brasileira. Um outro ícone deste grupo é David Cooper que, junto com R. Laing e A. Esterson lideram o movimento antipsiquiátrico. Em 1962, David Cooper instala o Pavilhão 21 dentro de um macro-hospital e ali instaura sua aventura que irá conduzi-lo a uma rejeição radical da psiquiatria Bleuleriana de um lado e da psicoterapia institucional do outro. Cooper e Laing afirmavam que a loucura não é doença, é uma passagem, uma metanóia. Porque não permitir que se exprima? Nasce a antipsiquiatria. Em 1965 Cooper funda com Laing a Philadelphia Asociation. Financiada por filantropos americanos, ela anuncia um programa libertário que tinha por objetivo libertar a loucura não apenas do asilo, o que já foi feito, mas da própria psiquiatria e, portanto, da doença. Kingsley Hall abre suas portas, dura pouco, mas atrai movimentos revolucionários de todo mundo; dos panteras negras aos dissidentes soviéticos. A aventura do Pavilhão 21 durou oito anos e no seu início apresentou uma história semelhante à de muitos lugares. Poderia citar a Divisão Melanie Klein dirigida por David Zimmermann no HPSão Pedro de Porto Alegre. Num hospital de 100 leitos a noroeste de Londres, foi entregue a Cooper uma antiga enfermaria de insulinoterapia, transformada para receber 19 pacientes psicóticos jovens. A idéia era tratar esses pacientes de primeira hospitalização, separados dos pacientes psicóticos adultos e cronificados.

Um segundo objetivo era o de estudar a interação familiar e grupal na esquizofrenia. O terceiro era criar uma unidade pequena, autônoma, fora do contexto institucional psiquiátrico.

Seu programa estava baseado nas idéias de comunidade terapêutica clássica. Formavam-se grupos "programados" e "espontâneos":

    a)encontros com a comunidade b) grupos terapêuticos c) grupos operativos

    d)reuniões de grupo do pessoal onde procuravam demonstrar a irracionalidade institucional de defender-se da loucura que se supõe conterem

    Perturbação, desintegração, violência, contaminação. Resumindo, no decorrer do trabalho foram desenvolvidas idéias de deixar os pacientes livres para decidir sobre levantar da cama, cuidado das roupas e funções fisiológicas. A enfermaria virou um inferno, pelo menos para quem olhava de fora. A ansiedade dos administradores foi aumentando e no final de oito anos o projeto terminou.

É bastante curioso que, tanto Foucault como Cooper e Laing, depois de um surgimento meteórico, sofreram substanciais contestações intelectuais nos meios pensantes do mundo ocidental, ressurgiram, como um cometa, no Brasil vinte anos depois e passaram a serem ícones de uma série de jovens trabalhadores da saúde mental.

No Brasil dos anos 60 as preocupações eram bem outras. Começava a formação regular de psiquiatras e as residências em psiquiatria abriam suas portas para receber uma leva de jovens deslumbrados pela psicanálise. As drogas eram vistas com reservas, a moda era a Psiquiatria Dinâmica e a Comunidade Terapêutica. Surgiam novas Revistas que se somavam às já existentes Neurobiologia (1938) J. Bras.Psiquiat (1948). No RGS surgiram a Rev. Psiquiatria e os Arquivos da Clínica Pinel em 1961. No Rio de janeiro, em 1962, a Revista Psiquiatria do Centro de Estudos da Casa de Saúde Dr. Eiras.

Nos EUA o Presidente Kennedy assina o Action for Mental Health em 1963. As palavras introdutórias pronunciadas por ele, são atuais até os dias de hoje.

JFK: "Boa saúde para todos é um objetivo continuado. Numa sociedade democrática onde toda e qualquer vida humana é preciosa, não podemos esperar menos. Povo sadio constrói uma nação forte e dá uma máxima contribuição para seu crescimento e desenvolvimento. Esta necessidade nacional precisa de um esforço comum que envolve indivíduos e famílias, estados e comunidades, grupos profissionais ou de voluntários em cada pedaço do país. O papel do Governo, embora substancial, é essencialmente estimulador e de suporte. A tarefa é tão grande que todos nós temos que partilha-la para melhorar nossa saúde e aquela das gerações que estão vindo". O Plano previa a construção de Centros Comunitários de atendimento e foi a semente para a psiquiatria comunitária que surgiu com toda força nos anos 70.

Em 1961 foi fundada a World Psychiatric Association e em 1966 surge a Associação Brasileira de Psiquiatria.

Os antipsicóticos, os antidepressivos e os benzodizepínicos revolucionam o atendimento hospitalar. Começaram a ajudar a esvaziar os hospitais e permitiram o tratamento extra-hospitalar de muitos pacientes. Nos nossos macro-hospitais os novos psiquiatras formados dentro da linha dinâmica, tomavam de assalto as trincheiras da loucura. Em quase todos hospitais existiam alas que os psiquiatras não entravam e isso foi mudando. Consultórios eram colocados na linha de frente, para lá iam os médicos acompanhados dos estagiários dos nascentes cursos de Psicologia, das assistentes sociais, e dos novos auxiliares psiquiátricos, muitos eram estudantes de medicina e psicologia. Surge a praxiterapia e o embrião de uma nova profissão, os terapeutas ocupacionais. O golpe de 1964 não modificou o clima de entusiasmo. Achei curiosa a coincidência do título de um trabalho de Kemper publicado nos Arq. Da Clin. Pinel em março de 1964. O paciente silencia.

A Unificação da Previdência em 1967, criando o INSS, o IAPAS e o INAMPS prometia novos tempos no atendimento. Surgiram novas instituições privadas, muita gente começou a ganhar dinheiro com a doença mental. Cada paciente era um cheque ao portador e isso provocou distorções que perduram até os dias de hoje. Os efeitos dessa política foram aparecer nos anos 70.

Os psiquiatras se sentiam mais fortes, começaram a se congregar em congressos nacionais e ai nasceu a Associação Brasileira de Psiquiatria em 1966.

O primeiro presidente foi o Prof. José Leme Lopes. A ABP, nos anos 60 teve três presidentes 1966-67: Prof. José Leme Lopes-RJ.

1967-68: Prof. Antonio Carlos Pacheco e Silva - SP

1968-71: Prof. Álvaro Rubim de Pinho – BA

Os três eram catedráticos e mantinham um certo distanciamento em relação à psicanálise que fazia o coração e mentes dos jovens psiquiatras.

Leme Lopes era tolerante e um crítico irônico dos tempos psicanalíticos. Extraí das suas palavras de abertura do Simpósio sobre Raízes e Tendências da Psiquiatria Brasileira, realizado no Recife por ocasião da jubilação do Prof. José Lucena (1978) as seguintes observações: "As raízes da psiquiatria como raízes vegetais descem fundo, na profunda obscuridade e aí sofrem um complexo metabolismo. Difícil de fatorizar". "Essa é a dúvida: há uma psiquiatria brasileira?" "Como ramo da medicina científica, a psiquiatria foi para aqui transplantada e enxertada, no conjunto do que era a medicina brasileira. Não sofreu aclimatação ou aculturamento. Continuou como veio, européia, francesa ou germânica. Seus cultores não conseguiram muda-la no sentido de uma mutação ou de um hibidrismo, como a enxertia em botânica produziu novos frutos".

"O petróleo é nosso, mas, a ciência da loucura é mundial. As formas do adoecer psíquico são restritas. Nos candomblés, os transes são iguais às possessões do vodu, da África ou dos filmes de Hollywood".

"Nós psiquiatras fomos tutorizados e" spoon-fedd " por Paris, Munique, Viena, Londres, Nova Yorque e Buenos Aires (ai! de nós). Mas digerimos tudo isso à nossa maneira." Mais adiante ele cita um cartão de Natal de uma amiga que escrevia: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra entre a turma da pílula e do divã.

Os novos analistas que tinha ido a Buenos Aires em busca de uma formação reconhecida pela IPA influenciaram marcadamente os meios universitários brasileiros e são deles algumas iniciativas que atraíram muitos jovens para a área da psiquiatria. O Dr. Alcyon Baer Bahia é considerado o iniciador da psicoterapia de grupo em nosso meio em 1954. (Enrique Pichón Rivière foi quem introduziu a psicoterapia de grupo na América Latina em 1947). O Dr. Bernardo Blay Neto foi o primeiro em São Paulo, seguido de Ligia Amaral. No Rio Grande do Sul foi iniciada por David Zimmermann e teve ainda como nomes destacados Paulo Luiz Vianna Guedes, Cyro Martins e Manoel Albuquerque.

O motivo de eu estar citando a psicoterapia de grupo se deve à realização de importantes congressos da especialidade que marcaram os anos sessenta. O Primeiro Congresso Latino Americano de Psicoterapia de Grupo foi realizado em Buenos Aires ( Presidente Jorge Mom) em setembro de 1957. O segundo foi em Santiago do Chile em janeiro de 1960 ( Pres. Ramon Ganzarain). O terceiro foi no Rio de Janeiro em julho de 1962 ( Pres. Walderedo Ismael de Oliveira) e o quarto em Porto Alegre em 1964 ( Pres. David Zimmermann). Este foi o primeiro a ser realizado independentemente do congresso Psicanalítico.

Os Congressos de Psiquiatria de maior amplitude eram realizados pela Sociedade de Neurologia Psiquiatria e Higiene Mental fundada por Ulysses Pernambucano em 1938. O primeiro congresso da SNPMH fora do nordeste aconteceu em Minas Gerais em 1962. Seguiu-se o histórico congresso de 1965 em Fortaleza, onde foram lançadas as bases para a fundação da ABP. Em 1967 realizou-se o VIII congresso nacional em Porto Alegre. A ABP só foi realizar seu primeiro congresso em 1970, em São Paulo. A SNPHM realizou 23 congressos, sendo o último em Brasília em 1997. Ela terminou se integrando a ABP que hoje organiza os congressos nacionais.

Os Congressos de Psicologia médica eram uma festa, reunindo estudantes, professores e outros profissionais. Lembro do segundo realizado em Ribeirão Preto em 1962. Organizado pelo Prof. Hernan Davanzo Corte, hoje psicanalista no Chile, tinha como colaboradores destacados David Azoubel e Flávio Fortes D’Andréa.

No período de 1963/64 nos EUA, de 3.617 residentes em psiquiatria, 1009 faziam formação analítica concomitante. Kandel que foi residente em Harvard nos anos 60 relata a dificuldade de se fazer qualquer pesquisa que se afastasse da psicanálise. No Brasil, pelo menos no eixo sul sudeste começava a se repetir o mesmo padrão. Sob influência psicanalítica os hospitais psiquiátricos sofriam mudanças, surgiam os ambulatórios, desenvolvia-se a psiquiatria infantil e a prática privada de consultório começou a crescer.

*Psiquiatra. Prof. Da Fundação Universitária Mário Martins de Porto Alegre. Autor do Índice Bibliográfico Brasileiro. Webmaster da Associação Brasileira de Psiquiatria


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