Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Junho de 2001 - Vol.6 - Nº 6

História da Psiquiatria

Voando sobre a Psiquiatria Brasileira

Dr. Walmor J. Piccinini

A escolha deste título para apresentar estudos e momentos da história da psiquiatria brasileira não é acidental. Começou com a leitura de um livro baseado na tese de doutoramento de um psiquiatra português: Dr.José Manuel Gameiro.

(Edições Afrontamento. Porto. Portugal, 1992).

"Voando sobre a Psiquiatria" : análise epistemológica da psiquiatria contemporânea. O autor é doutor pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.

O livro despertou meu interesse por apresentar estudos sobre a mudança paradigmática da psiquiatria, de psicológica para psicobiológica a partir dos anos 80. Curiosamente o autor se apresenta como piloto de avião e que gostaria de ter sido piloto de linha aérea, mas nunca conseguiu que aceitassem um psiquiatra numa companhia de aviação. Deixado de lado o humor português, quando o Dr.Giovanni Torello incumbiu-me da missão de contribuir para a Psiquiatria Online, resolvi adotar a idéia do dr. Gameiro, de voar sobre momentos da psiquiatria brasileira, procurando costurar assuntos variados e dar-lhes uma forma que pudesse tornar o conhecimento da história mais amistoso. Vou tentando... espero que interesse aos mais jovens. Não sou piloto de avião, é bom esclarecer.

A Psiquiatria em Transformação ou A Visão de uma Nova Psiquiatria

Você já pensou como seremos visto daqui a cinqüenta ou cem anos?

A Psiquiatria tem sofrido mudanças importantes ?

Algumas pessoas tem sido convidadas a pensar e escrever sobre o assunto. A mudança do século trouxe a luz uma série de trabalhos em que autores líderes de áreas do pensamento psiquiátrico fazem previsão sobre o futuro. Minha observação sobre estes trabalhos foi de que eles foram muito conservadores e não se apresentaram particularmente imaginativos. Talvez a necessidade da sobriedade exigida ou estimada para publicar em revistas científicas tenha limitado a criatividade dos autores. O assunto é interessante e vasto, foge da possibilidade de um simples artigo. Vamos abordá-lo pelas margens assim como quem come mingau quente.

Examinando a Psiquiatria do fim do século 19 e início do século 20 se tomarmos as conclusões Primeiro Congresso Mundial de Psiquiatria as referências eram de entusiasmo e de crescimento. A grande novidade era a criação de Colônias para os doentes crônicos e haviam promissoras pesquisas para enfrentar a sífilis terciária. Olhando de outro ângulo poderíamos dizer que a psiquiatria atravessava uma fase depressiva. Os hospitais estavam lotados de doentes, o "modelo moral" de tratamento tinha fracassado e não haviam perspectivas terapêuticas. Predominava a idéia da degeneração genética e o nihilismo terapêutico. (Os trabalhos de Freud recém começavam a ser publicados).

Cinqüenta anos depois, e com duas guerras mundiais no intervalo, os hospitais seguiam superlotados e os instrumentos terapêuticos tinham feito lentos progressos. Algumas vitórias tinham sido obtidas. A malarioterapia e, posteriormente a penicilina tinham resolvido a questão da sífilis. A praxiterapia, a ambientoterapia, as comunidades terapêuticas tinham humanizado o ambiente hospitalar. O eletrochoque era o grande avanço terapêutico. A psicocirurgia era uma tentativa empírica e agressiva. A psiquiatria dinâmica passava a atuar nos ambulatórios e nos consultórios externos ao macro hospital, a psicanálise atraia um número crescente de jovens para a psiquiatria.

Nos últimos cinqüenta anos, graças a descoberta dos antipsicóticos, do lítio, dos antidepressivos mudanças importantes ocorreram e ocorrem na prática psiquiátrica. Eric Kandell assim se expressou sobre estas transformações. " Quando os historiadores da ciência focarem sua atenção para o surgimento da medicina molecular na última metade do século 20, anotarão a posição peculiar ocupada durante todo este período pela psiquiatria. Nos anos que seguem a segunda guerra mundial, a medicina foi transformada de uma arte prática em uma disciplina científica baseada na biologia molecular. Durante esse o mesmo período a psiquiatria foi transformado de uma disciplina médica em uma arte terapêutica. Nos 1950s, e que se estendeu aos 1960s, a psiquiatria acadêmica abandonou suas raízes na biologia e na medicina experimental e evoluiu em uma disciplina baseada na psicanálise e orientada socialmente. Surpreendentemente desinteressada com o cérebro como um órgão da atividade mental. Esta mudança no enfoque teve diversas causas. No período após a segunda guerra mundial, a Psiquiatria acadêmica assimilou as instrospecções da psicanálise. Estas introspecções forneceram uma janela nova de acesso aos processos mentais humanos e criaram uma consciência que as grandes partes da vida mental, incluindo algumas fontes psicopatológicas, teriam sua origem no inconsciente.

Inicialmente, estas introspecções foram aplicadas primeiramente às chamadas então doenças neuróticas e a alguns transtornos do caráter. Entretanto, seguindo a lição de Eugene Bleuler e de Carl Jung, a abrangência da terapia psicanalítica se estendeu sobre quase toda a doença mental, incluindo as principais psicoses: esquizofrenia e depressões maiores. Certamente, a extensão da psiquiatria psicanalítica não parou aqui; expandiu em seguida para incluir as doenças médicas específicas. Influenciado na parte por sua experiência na segunda guerra mundial, muitos psiquiatras acreditavam que a eficácia terapêutica das instrospecções psicanalíticas poderiam resolver não somente os problemas da doença mental mas também de doenças médicas de outra maneira intratáveis tais como a hipertensão, a asma, úlcera gástrica, e as Colites - ulcerativas. Doenças que não respondiam aos tratamentos farmacológicos disponíveis nos atrasados anos 1940s. Estas doenças foram consideradas psicossomáticas e seriam induzidas por conflitos inconscientes. Assim, por volta de 1960 a psiquiatria psicanalíticamente orientada tinha-se transformado em modelo predominante na compreensão de todas as doenças mentais e algumas físicas. "

Kandell lembra seu período de residência em Harvard nos anos 60. No enfoque totalmente analítico e no desestímulo a pesquisa. Descreve o dogmatismo dos professores, a ausência de questionamento e na idéia que a interação médico - paciente era o caminho para tratar a esquizofrenia. Ele defende um ponto de vista que atribui o empobrecimento da psicanálise ao fato de virar as costas para a biologia.

"Ao invés de aceitar novas maneiras de explorar o cérebro, a psiquiatria psicanalítica gastou a maior parte das décadas de seu predomínio, 1950 a 1980 na defensiva. Embora houvesse importante exceções individuais, os psicanalistas como grupo, desvalorizaram o inquérito experimental. Conseqüentemente, a psicanálise estagnou e deslizou num declínio intelectual que teve um efeito deletério na psiquiatria. Como esta atitude desestimulava novas maneiras de pensar, teve um efeito particularmente negativo no treinamento dos psiquiatras.

" Deixe-me ilustrar com um exemplo pessoal como esta atitude de não questionamento veio influenciar meu próprio treinamento como psiquiatra. No verão de 1960, eu deixei meu treinamento pósdoc em ciência neural nos institutos nacionais da saúde (NIH) para começar o treinamento como residente no centro de saúde mental de Massachusetts, o mais importante hospital de ensino da escola médica de Harvard. Eu iniciei o treinamento junto com 20 outros jovens médicos, muitos se tornarem líderes da psiquiatria americana: Judy Livant Rapaport, Anton Kris, Dan Buie, Ernst Hartmann, Paul Wender, Joseph Schildkraut, Alan Hobson, e George Vaillant.

Contudo, nos vários anos em que este grupo proeminente de médicos estava em treinamento, não lhes eram solicitadas nem recomendados estudos e leituras. Nós não recebemos nenhum livro texto; haviam raras referências a artigos científicos nas conferências ou nos casos em supervisão. Mesmo os artigos de Freud não eram leitura recomendada para residentes.

Muito desta atitude vinha de nossos professores, das chefias do programa de residência. Fizeram um ponto de incentivar-nos a não ler. Leitura, segundo sua perspectiva, interferia com a habilidade de um residente de escutar pacientes e da sua percepção da historia da vida dos pacientes. Uma famosa, observação muito citada era que " há aqueles que se importam com povos e há aqueles que se importam com a pesquisa. "

Os anos 60 determinaram o ponto de virada da psiquiatria americana e mundial sob o efeito das novas drogas. Finalmente a psiquiatria dispunha de um arsenal terapêutico que propiciaram seu retorno a Medicina. O afastamento da visão psicanalítica tornou-se inevitável. Os psicofármacos não foram bem aceitos pelos psicanalistas, uma das observações da época, é que serviam mais para acalmar o terapeuta do que real efeito no paciente.

Talvez tenha me extendido um pouco alem do necessário para colocar em pauta algumas das idéias de Kandell, quem desejar ler o trabalho por inteiro deve procurar no (Am J Psychiatry 1998; 155:457–469) A New Intellectual Framework for
Psychiatry Eric R. Kandel M.D

Não desejo discutir as relações entre a psicanálise e a biologia, nem psicanálise e a nova psiquiatria, esta longa apreciação inicial tornou-se necessária para introduzir o trabalho que apresenta uma visão hipotética de um historiador de 2047 sobre a psiquiatria dos últimos 25 anos do século 20. Ele descreve de forma bem humorada como era a atividade de um psiquiatra neste período. Trabalhava isoladamente, num consultório e sua maior fonte de comunicação externa era o telefone. Alguns mais ativos usavam, desde os anos 80, o aparelho de fax. Uns poucos informatizaram seus consultórios e utilizavam e-mail, mais para confraternizar com os amigos do que na prática profissional em si. Os recursos de apoio podiam incluir exames laboratoriais e alguns exames radiológicos. Comparava com o futuro em que os psiquiatras trabalhavam em grupos, o computador tem uso rotineiro como auxiliar diagnóstico e terapêutico e uma série de procedimentos não invasivos são utilizados. Destaca o autor a constante auditoria dos procedimentos realizados e dos resultados dos tratamentos instituídos. Aparentemente o autor é um defensor do atendimento gerenciado e está alertando que as resistências dos psiquiatras ao "managed care" são inúteis.

A mudança de paradigmática da psiquiatria, de psicanalítica ou psicogência para biológica, com a presença do cuidado gerenciado trazem profundas modificações na maneira que se pratica a psiquiatria. Pretendo apresentar algumas delas neste artigo.

Quando estamos diretamente envolvidos nos acontecimentos nem sempre percebemos as mudanças que ocorrem pràticamente sob nossos olhos. Outras vezes nós as percebemos, mas temos dificuldades em avaliar sua profundidade. O esvaziamento dos hospitais psiquiátricos, o crescimento das práticas ambulatoriais, o crescente aumento de leitos em hospitais gerais e uma maior integração com a medicina tradicional são algumas das evidências dessas transformações.

Todos percebemos o profundo impacto da psicofarmacologia sobre a prática psiquiátrica. Parecem distantes as discussões sobre a possibilidade ou não de associar a psicoterapia psicodinamica com o uso de medicamentos. Discute-se agora a eficácia da psicoterapia psicanalítica que era algo indiscutivel e estabelecido como definitivo.

Algumas das mudanças bem evidentes que observamos são;

1. Redução significativa do tempo de internamento

2. Uso generalizado de psicofármacos

3. Abandono das psicoterapias de longa duração em favor de técnicas psicoterápicas breves, comprovadas em pesquisa, como a IPT (Interpersonal Psychotherapy de Klerman e Weissmann) e a Cognitive-Behavioural Therapy de Aron Beck)

4. Integração com as demais especialidades médicas. Interconsulta

5. Co-morbidade

6. Afastamento da psicanálise do meio acadêmico.

7. Maior precisão diagnóstica

8. Casos mais graves e presença importante de álcool e drogas

Mudanças no Paradigma da Psiquiatria.

Áreas em transformação: comparando a Psiquiatria Tradicional com a Nova Psiquiatria

  1. Integração com os colegas da área da saúde.
  2. Avaliação e tratamento
  3. Manutenção e Resultados
  4. Prioridades nas pesquisas
  5. Fianciamento e apoio )

1) Integração (com a área da saúde.)

Psiquiatria Tradicional

Nova Psiquiatria

Diferente da Medicina

Totalmente integrada na Medicina

Isolacionista

Participativa

Ideológica (mente)

Científica (cérebro)

Confidencialidade

Co-tratamento

Setting (ambiente)psiquiátrico

Settings na comunidade e Cuidados primários.

2) Avaliação e Tratamento

Psiquiatria Tradicional

Nova Psiquiatria

Paciente Internado

ambulatorial

Longas avaliações

Triagem

"worried well"

Casos mais severos

Tratamentos longos

Tratamentos curtos

Psicoterapia

Abordagem biologica/ biopsicosocial

Psicodinâmica

CBT, IPT e outras.

3) Manutenção e Resultados

Psiquiatria tradicional

Nova Psiquiatria

Doença Reativa

"Lifetime" illnesses

Tratamento episódico

Tratamento de manutenção

Consequências, os estudos interferem

Consequências, estudos são essenciais.

4) Pesquisa

Psiquiatria tradicional

Nova Psiquiatria

Fundos crescentes

Fundos dimuindo

Temas mecanísticos

Temas sobre serviços e molécula

Pesquisa, ensino e tratamento numa só pessoa

Pesquisadores indicados e exclusivos

Projetos indiviuais

Projetos colaborativos

Fundos governamentais

Outras fontes.

5) Financiamento e Suporte

Psiquiatria Tradicional

Nova Psiquiatria

Pagamento por serviço

Per capita /gerenciado

Psiquiatria cresce

Cuidados primários crescem

Custos crescentes

Economia de custos

Todas essas transformações criam ansiedade e temor quanto ao futuro. O profissional se vê diante de uma situação com menos estabilidade, menos segurança, mais pressão, menor autonomia, menos tempo para si, medo de perder o emprego pelo "rightsizing", salários congelados e mais competição.

(Como os grupos reagem as mudanças:

Inovadores (Entusiastas)

Os primeiros a adotá-las (Visionários)

A primeira maioria (Pragmáticos)

A maioria tardia (conservadores)

Os lentos na mudança (céticos))

A Nova Psiquiatria é então:

Parte integral da Medicina Integrativa

Ciência do Cérebro

Ênfase no Co-tratamento

Settings no Atendimento Primário

Links Comunitarios

Ambulatorial

Triagem e Tratamentos rápidos

Doenças mais graves

Baseada na Biologia e atendendo aspectos biopsicosociais.

Tratamentos combinados

Informatizada

Mudanças na forma de enfrentar a doença;

A doenca é vista como de duração pela vida do indivíduo.

Ênfase na manutençao do tratamento

Acompanhamento dos resultados

Pesquisa molecular com investigadores especificamente dedicados a ela

Forma de pagamento capitated/managed"

Crescimento nos cuidados primarios

Psicoterapias especializadas

Preocupada em diminuir custos

Pacientes vem primeiro, facilitar acesso, discutir o uso da medicação, os pára-efeitos

Obs. Alguns dados aqui referidos fazem parte de uma apresentação interna do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Michigan e não foram publicados. Em 1996, no Congresso de Psiquiatria da APA em Nova Yorque, o Prof. John Greden apresentou no pré-congresso da Society for Psychiatric Informatics o trabalho "A Informática e o futuro da Nova Psiquiatria. Fiz algumas adaptações mas a idéia de uma nova psiquiatria em tempos de managed care foi expressada por aquele autor.


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