Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2001 - Vol.6 - Nş 12

Psicanálise em debate

Algumas idéias sobre Esaú e Jacó e Memorial de Aires de Machado de Assis

Dr. Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 – Imago – Rio)

Esse artigo apresenta, inicialmente, uma leitura de Esaú e Jacói e Memorial de Airesii, na qual se pretende evidenciar a grande proximidade que os une, o que os coloca como romances "gêmeos". Uma segunda leitura, essa mais propriamente analítica, aborda Esaú e Jacó, levantando hipóteses sobre o porquê de sua feição abrupta, que gera no leitor uma sensação de frustração e incompletude. Tal sensação seria efeito gerado pelo enredo, que mostra o sujeito não inteiramente constituído, mantendo-se alienado no desejo do Outro. A questão é ilustrada com a interpretação de Hamlet, Antígona, e dos gêmeos bíblicos que emprestam o nome ao título do livro. Passo seguinte, fala-se da importância da psicanálise de família e do objeto transgeracional.

1

Esaú e Jacó e Memorial de Aires são escritos pelo mesmo personagem, o Conselheiro Aires, que, ao morrer, deixara "sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão"iii. Em tinta encarnada, estão numerados de I a VI, tendo o sétimo o título de "Último". Este foi transitoriamente chamado de "Ab Ovo" até receber o nome definitivo de Esaú e Jacó. Seu autor adota a posição de narrador onisciente, aparecendo como personagem com seu próprio nome. Dos demais cadernos, escritos sob a forma de diário, somos informados que o material referente aos anos de 1888-1889, "decotado de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões" foi publicada com o título de Memorial de Aires. Vê-se aí um certo desacerto, pois os livros que deveriam ser o "último" e o "penúltimo" são publicados na ordem inversa.

Esaú e Jacó conta a história do rico casal Santos e Natividade, pais dos gêmeos Pedro e Paulo. Com um ano de idade, uma vidente diz terem eles brigado ainda no ventre da mãe e que seriam grandes homens, destinados a importantes coisas no futuro. Os pais se impressionam com tal vaticínio e dele muito esperam. Os filhos crescem dentro de grande rivalidade, que toma especial colorido quando se posicionam em lugares opostos frente à ebulição política causada pela iminente queda do Reinado e a instalação da República. Ambos se apaixonam por Flora, filha do casal Cláudia e Batista, ele um político conservador. Flora é ambígua e não define quem ama. Adoece gravemente e termina por falecer, sem escolher nenhum dos irmãos. Estes abandonam suas carreiras de medicina e advocacia, impostas pela mãe, e entram na política, como deputados republicanos de facções rivais. Os irmãos, que não casaram e não fizeram grandes coisas, apesar de terem jurado à mãe que seriam amigos, logo após sua morte reinstalam a velha hostilidade que os mantêm inimigos, frente à indiferença do Conselheiro Aires, que muitas vezes fora chamado pela mãe para intervir e orientá-los em suas querelas.

Em Memorial de Aires, seguimos o Conselheiro Aires freqüentando a casa do casal Aguiar, que acolhe a rica Viúva Fidélia Noronha, impossibilitada de aproximar-se de sua família de origem (os Barões de Santa Pia), por ter casado contra os desejos paternos. Os Aguiares e a Viúva Noronha estabelecem relações de pais e filha, fonte de muita alegria para ambos os lados. Os Aguiares não tinham filhos e, anos antes, ligaram-se intensamente a Tristão, filho de um casal amigo que partira para Portugal. Tristão retorna, a negócios, ao Brasil e conquista a até então inconsolável Fidélia, levando-a para Lisboa, onde fora eleito para um cargo legislativo. De passagem, é referida a Abolição dos Escravos, o que tem uma certa importância na liquidação da fazenda Santa Pia, antes da viagem definitiva para Portugal.

Esaú e Jacó e Memorial de Aires não gozam dos mesmos prestígio e reconhecimento que banham os outros três romances realistas, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, onde Machado cunhou seu estilo e marcou a literatura brasileira com sua devastadora ironia e ceticismo, cobrindo com sarcasmo a grande mascarada da vida em sociedade, aproximando-se, como já foi notado, do distanciamento clássico dos moralistas e iluministas do século 16 e 17iv e da fina observação analítica pós-freudiana.

Aqui nestes livros o tom é outro. Esmaecidas estão a ironia e a acidez. O viúvo Conselheiro, que – no meio de suas andanças diplomáticas – enterrara a mulher em Viena, a tudo vê com comedimento e frieza, quase indiferença. Registra, reconhece o que acontece, mas nada o atinge. Não se compromete em suas opiniões, sua preocupação maior é evitar aborrecimentos. Repetindo um verso de Shelley, diz que não pode mais dar aquilo que os homens chamam de amor (I can not give what men call love)v e ao responder às conversas, faz gesto de dois sexosvi. Essas referências de claras ressonâncias sexuais, que remetem à impotência e à indefinição sexual, parecem caracterizar o abandono de uma atitude viril e impositiva, fazendo Aires enfrentar passivamente os dois grandes momentos da história brasileira relatados em seus livros: a Abolição da Escravatura, em Memorial de Aires, e a Proclamação da República, em Esaú e Jacó.

É verdade que a antiga verve não está inteiramente apagada. Em Esaú e Jacó, é vista nas maquinações de D. Cláudia, que sentindo no ar as mudanças políticas, trata de apresentar seu marido Batista, político arqui-consevador, com as vestes de um antigo liberal, para espanto do mesmo, o que provoca efeitos hilariantes. E no Memorial, a perfídia, a maledicência ficam por conta de Dona Cesária, que bisbilhota a vida de todos, para deleite do casto e prudente Conselheiro.

Neste tempo de grandes mudanças, todas as identidades estão em jogo, precisam ser repensadas, reforçadas ou trocadas, colocando em jogo as funções adaptativas do ego. Até onde essa adaptação à nova realidade implica num reconhecimento de lutos e perdas ligados à situação anterior, em ansiedades frente ao desconhecido, flexibilidade para reconhecer novas oportunidades, fixação em padrões superados, desvelamento de oportunismos os mais deslavados, é o que Machado esboça com vários personagens: a atitude distante e indiferente de Aires, que a tudo vê como se nada importasse; a perplexidade de Custódio, o confeiteiro surpreendido pelos acontecimentos no momento em que mandara repintar a tabuleta de seu estabelecimento comercial, até então Confeitaria do Império, e que manda parar no D, temeroso de fazer uma opção politicamente perigosa e economicamente desastrosa para seu negócio; D. Cláudia, uma Lady Macbeth fluminense, que de forma oportunista pretende continuar à tona, dando nova "leitura" ao repertório político do marido.

É de se pensar até que ponto o próprio Machado, funcionário público de carreira, não teria ocultado seus temores frente às mudanças políticas atrás do fleugma do Conselheiro Aires ou dos desmandos tragicômicos de Custódio e D. Cláudia.

O retraimento do Conselheiro Aires refletiria o humor depressivo dos últimos anos do também viúvo Machado, humor que acentuava seu ceticismo frente às esperanças exageradas que muitos depositavam na abolição da escravatura e na proclamação da república. Mas a forma descrente com a qual Machado encara, nos dois livros, os dois momentos históricos não deve ser confundida com mero conservadorismo.

Se lhe cabia melhor o chapéu do império, como diz um personagem, era por desconfiar daquela República que se proclamava, naquele momento, daquela forma. Olhava com desdém a corrupção e a plutocracia que se instalavam brutalmente e que se manifestavam com o encilhamento, a especulação financeira desenfreada, que dava vez a uma nova e desprezível casta no poder.vii

Essa descrença com a República poderia ser a motivação secreta que o levou a dar uma morte prematura a Flora, personagem cujo nome passa a ser significativo quando notamos a semelhança fonética com o de Floriano, a grande figura política do momento, responsável pela consolidação dos novos tempos. Também é muito expressivo que Flora seja enterrada em 10 de abril de 1892, dia em que Floriano Peixoto decreta estado de sítio, decreto que valeu só por 72 horas , debelando uma rebelião contra seu governoviii. O final inconcluso e incerto do livro poderia ser visto como uma metáfora reveladora das dúvidas de Machado quanto ao futuro da república no país.

Ao contrário da Proclamação da República, que ocupa significativo espaço em Esaú e Jacó, a Abolição da Escravatura mal aparece em Memorial de Aires. É apenas um detalhe no romance de Tristão e Fidélia. É claro que Machado mostra ironicamente a "bondade" dos senhores brancos frente a seus escravos, mas seus excessivos distanciamento e indiferença frente à abolição, atitude característica de Aires, parecem sintomáticos, uma dificuldade de abordar um tema que pessoalmente o feria, sendo ele neto de escravos e mulato.

Entretanto, diz Bosi, "esse é um dos traços mais fugidios e inquietantes da fisionomia machadiana: o seu olhar passa de aparentemente conformista , ou convencional, a crítico, sem que o tom concessivo deixe transparecer qualquer impulso de indignação"ix.

De fato, preferia fazer como Erasmox, apreciando de seu observatório o desfile da loucura humana se esfalfando nos jogos do poder. Sua visão irônica e darwinista da sociedade compreendia a motivação humana regida por "duas naturezas" - o desejo e o interêssexi, sendo o objetivo primordial de todos a ascensão social, que se realiza às custas do patrimônio ou do matrimonio. O sarcasmo com o qual vê tal escalada mal esconde a identificação com suas denodadas heroínas, que, a duras penas sobem os degraus das classes sociais. "O fato de essas figuras voluntariosas e autocentradas serem mulheres (...) foi interpretado como obra de disfarce, de raiz autobiográfica, pelo qual Machadinho dos anos 70 em plena ascensão convertia e sublimava a sua própria escolha existencial", observa agudamente, Lucia Miguel Pereiraxii.

O pouco entusiasmo de Machado pelas mudanças que supostamente seriam trazidas pela Abolição e pela República decorria de sua convicção de que a luta pela escalada social continuaria da mesma forma, a humanidade continuaria regida pelas "duas naturezas", presa aos pressupostos darwinistas da sobrevivência do mais forte. Ao vencedor, as batatas, é o mote de Quincas Borba, divulgando sua doutrina do Humanitismoxiii.

Abstraindo os magnos eventos políticos referidos nos dois romances gêmeos, o grande tema que os une é o reconhecimento da passagem do tempo, que a tudo muda. Parar no D é uma tentativa inútil de tentar impedir seu inexorável fluir: o Império já se fora e a República era uma realidade. Aires, se começa por criticar a mudança de sentimentos da Viúva Noronha ao se apaixonar por Tristão, ou das mudanças deste em relação aos Aguiares, termina melancolicamente aceitando que as coisas sejam assim mesmo: os jovens não podem ser censurados por se darem o direito de viver suas próprias vidas e deixarem os velhos sozinhos, com a "saudade de si mesmos"xiv.

2

Focalizarei agora mais atentamente Esaú e Jacó. Embora possa ser visto, como já foi feito acima, como uma metáfora da situação política brasileira, esse romance dos gêmeos, estranha historia em que tudo é dobra ou cisão , como diz Bosixv, transcende essa contingência.

Esaú e Jacó exala um odor de coisa abortada, de algo que não amadureceu inteiramente, que cresceu apenas para murchar, sem que as necessárias floração e frutificação tenham-se dado. Há uma incompletude, uma insatisfação, algo que fica suspenso e não cai como devia.

Minha hipótese é que o desconforto e estranheza que o livro causa no leitor é o efeito psicológico, afetivo e estético decorrente da trama, que mostra como os gêmeos Pedro e Paulo não se constituíram como sujeitos, permanecendo submetidos ao desejo da mãe, nele alienados, impossibilitados de se assenhorearem de seus próprios desejos. É o que procurarei fundamentar a seguir, analisando o enredo da obra.

Em seu início, vamos ver que, ao saber da gravidez, que ocorre 10 anos após o casamento, ao contrário do marido Santos, que ficou feliz, Natividade – curioso nome que remete diretamente à maternidade, à função materna – não demonstra nenhuma alegria. Pelo contrário, achava que a criança vinha deformá-la por meses, obrigá-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e do resto. Essa foi sua primeira sensação e o primeiro ímpeto foi esmagar o germe e criar raiva do marido. Somente num momento posterior, reconciliou-se com seu estado. Santos, por sua vez, se alegrava com a chegada desta criatura tirada da coxa de Abrãao , uma outra curiosa referência bíblica ao fato de Abrãao e Sara terem gerado o filho Isaac já velhosxvi.

Algumas observações iniciais. A demora em engravidar, de dez anos, pode ser entendida como sintomática, mostrando a relutância de Natividade em assumir a maternidade, relutância que se explicita sem mais demora no desejo de abortar, de esmagar o germe, destruir o filho.

Os pais ficam surpresos com a chegada de gêmeos, mas logo se acostumam e ficam imaginando o que seriam no futuro. A mãe determina que um será médico e o outro advogado, mas seguramente serão grandes homensxvii . Quando as crianças já estavam com mais de um ano, Natividade soube, através das criadas, da existência da Cabocla do Castelo, uma advinha à qual sente imperiosa necessidade de consultar, pois velhas idéias que lhe incutiram em criança vinham agora emergindo do cérebro e descendo ao coraçãoxviii.

Vai à vidente e esta lhe pergunta se os filhos tinham brigado antes de nascer, no ventre. Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos e dores, insônias..., e adota imediatamente a interpretação da advinha, incorporando-a como verdade, assim como sua relutante afirmação de que os gêmeos fariam grandes coisas futuras, coisas bonitas, afirmando que seriam gloriososxix.

Tais profecias serão posteriormente confirmadas por um sábio espírita amigo do pai, selando assim a sorte dos gêmeos: teste David cum Sybillaxx.

O que podemos ver aí? Antes de mais nada, a mãe reluta em ter um filho e quer matá-lo. Depois do parto, vendo as crianças, somos informados que velhas idéias vindas da infância começam a atormentá-la, o que a levam a querer adivinhar o futuro dos filhos. Tais velhas idéias parecem indicar a regressão a padrões infantis sofrida por Natividade durante o pós-parto. A preocupação recorrente com o futuro grandioso dos filhos parece ser uma supercompensação obsessiva, uma formação reativa frente a seus desejos assassinos contra os filhos – se eles são gloriosos, ela (a mãe) não os danificou. Por outro lado, se são eles os brigam no seu ventre, coisa que a posteriori passa a acreditar, ficam eles como os portadores da agressividade, livrando-a (a mãe) do pesado ônus de carregá-la, e sobrecarregando os frágeis ombros infantis com a carga, marcando-os indelevelmente. Para a mãe, assim, é necessário que os filhos sejam gloriosos como uma confirmação narcísica fálica, que restaure antigas feridas infantis, que retornaram nas velhas idéias já mencionadas.

Vemos como a fantasia da mãe (e do pai) envolve os filhos desde o momento da concepção e até mesmo muito antes dela, como quando se fala das velhas idéias da mãe enquanto menina.

É interessante notar como é freqüente nos mitos e nas histórias de fadas, a presença de profecias em relação aos futuros filhos e ao futuro dos filhos. A tragédia de Édipo, sabemos, decorre de uma profecia feita a Laio e Jocasta pelo oráculo de Delfos, que lhes avisa que darão luz a uma criança que matará o pai. Isso faz com que Laio e Jocasta planejem o assassinato do filho, abandonando-o nas montanhas para que morra.

As profecias que anunciam o filho como um futuro assassino do pai já aparecem nos mitos gregos mais antigos, como no primeiro casal Céu e Terra, pais dos titãs e dos ciclopes. Céu detestava os filhos e quando eles nasciam os escondia no seio da Terra, condenando-os a viver ali para sempre. Terra se revolta contra esse comportamento e incita os filhos a se insurgirem contra o pai. Os jovens titãs não aceitam tal conclamação, exceto Saturno, que castra o pai jogando seus testículos ao mar. Saturno, ao se casar com a titânia Cibele, recebe a profecia de que seria destronado por um de seus filhos. Por este motivo, os devora à medida que nascem. Entretanto, ao nascer Júpiter, Cibele o esconde e dá ao marido uma pedra, que ele engole pensando ser o recém-nascido. Júpiter escapa e mais tarde dá ao pai uma poção que o faz vomitar os filhos engolidos anteriormente. Por dez anos Júpiter e Saturno lutam, até o primeiro ser o vencedor. Também Júpiter, então casado com Métis, recebe a profecia de que seria destronado por um filho, o que o faz engolir Métis.

Como entender essa sistemática profecia de que o filho engendrado matará o pai? Tais profecias são reveladoras da fantasia dos pais, projetada nos oráculos que a veiculam. Essas fantasias, ligadas às estruturas narcísicas e edipianas dos pais, mostram a regressão neles provocada pela fecundação e gestação de um filho. Elas podem atingir uma intensidade critica com o nascimento do filho, o que fez Carel denominar tal momento de "traumatose perinatal"xxi.

Isso mostra o descompasso entre o soma e o psíquico, dá provas de que a plena maturidade fisiológica do corpo, condição da procriação, independe da maturidade psíquica, pois não é raro que justamente nestes momentos se exponha a fragilidade emocional dos pais, que mergulham em fortes movimentos regressivos.

O poder determinante da fantasia parental é constituinte e estruturante do psiquismo do filho. No caso de Édipo, antes de ser engendrado, os pais já o viam como a um assassino e isso terminou por se realizar. No caso de Pedro e Paulo, igualmente depositários da agressividade da mãe, serão eternos inimigos em luta. Também depositários do narcisismo materno, estarão sempre querendo ser os "grandes homens", fazer "grandes coisas".

Édipo, Pedro e Paulo, estão alienados no desejo dos pais, da mãe, impossibilitados de se constituirem inteiramente como sujeitos desejantes, sabedores e conhecedores de seus próprios desejos.

Essa alienação estrutural no desejo do outro, da mãe, pode ser exemplificada nas interpretações que Lacan faz de Hamletxxii e Antígonaxxiii. Sabemos que a conhecida interpretação freudiana sobre a hesitação que impede Hamlet de matar Cláudio, como o fantasma do pai o exige, é estar ele edipianamente identificado com o assassino. Também ele, na fantasia infantil, teria matado o pai para se apoderar do amor de Gertrude, portanto não se sente moralmente autorizado para julgar alguém que fez o que ele gostaria de ter feito. Lacan mostra um ângulo mais primitivo do impedimento de Hamlet. Se o fantasma do pai só acusa quem o matou, Hamlet não esquece que a mãe foi cúmplice do assassino do pai, ela ativamente participou do crime. Ou seja, ela o desejava e o realizou. Hamlet, identificado com o desejo mãe, o assume temporariamente como seu, ficando por isso paralisado. Só mais tarde estará livre para ter seu próprio desejo, com trágicas conseqüências.

O mesmo se dá com Antígona. Classicamente se interpreta sua rebeldia contra Creonte como símbolo da luta contra o poder do estado e o respeito às leis do sangue. Lacan mostra como Antígona está totalmente perdida no desejo criminoso da mãe Jocasta, ela quer ser criminosa. A disposição em dar um enterro honrado para o irmão seria mera racionalização de um desejo mais recôndito, inconsciente.

Um outro exemplo da importância do desejo materno e paterno no futuro dos filhos é o sugerido pelo próprio Machado de Assis ao dar o nome de Esaú e Jacó ao seu livro. Vemos no episódio bíblico que, antes do nascimento dos dois, acontece uma profecia divina assegurando que os gêmeos comandarão duas nações diferentes e o mais velho servirá ao mais novo. Os dois teriam brigado no ventre materno. Jacó teria segurado o tornozelo de Esaú, tentando ser o primogênito. A mãe, Raquel, claramente prefere Jacó e isso a leva a enganar o marido Isaac, pai das crianças, fazendo-o dar a benção ritual ao segundo e não ao primeiro filho. Ao ser indagada, diz ter seguido o desejo de Deus. Sabemos que antes da benção ritual, Esaú, peludo e ruivo, caçador, imediatista, tinha vendido seus direitos de primogenitura por um prato de lentilhas, que o caseiro Jacó cozinhava.

A fraude perpretada por Raquel e Jacó tem conseqüências desastrosas. Este, para escapar ao ódio de Esaú, foge para outra nação, onde fica por vinte anos, com o tio Labão. Raquel morre sem voltar a ver o filho predileto. A interpretação judaica é que todos sofrem por terem desobedecido a Deus. Esaú, por desprezar a primogenitura, vendê-la e depois requisitá-la. Isaac pela cegueira em amar demais Esaú e não querer obedecer ao desejo de Deus expresso na profecia. Raquel e Jacó, por não acreditarem no poder divino e terem achado necessário ajudá-lo com artifícios desonestos.

A história de Esaú e Jacó é interessante na medida em que mostra toda uma dinâmica conflituosa própria das famílias, dos complexos relacionamentos entre pais e filhos, com amores e ódios, mentiras, traições, alianças, preferências, vinganças, ameaças de morte, ciúmes.

Um item interessante é a ambigüidade demonstrada por Esaú frente aos direitos de primogenitura. Despreza-o, vendendo por uma ninharia, mas depois o requisita e persegue durante anos o irmão usurpador. Como ainda hoje acontece em algumas situações, com os direitos da primogenitura, o filho mais velho recebe o encargo de assumir o patrimônio da família, os bens materiais e as tradições das quais passa a ser o guardião. Ou seja, ao primogênito está vedado toda e qualquer autonomia e liberdade no planejar de seu futuro, que está inteiramente determinado pela tradição, pelos usos e costumes.

Não seria o direito da primogenitura uma manifestação social e jurídica deste fato psicológico que estamos apontando como a alienação no desejo do outro, dos pais, a concretização do desejo dos pais em no futuro dos filhos? Se assim for, fica clara a ambivalência de Esaú em assumir tão pesado cargo, pois fazê-lo é submeter-se ao desejo paterno e abdicar do próprio.

Já que estamos no Gênesis, não devemos esquecer, quando falamos do narcisismo dos pais projetado nos filhos, que Deus criou os homens à sua imagem e semelhança, deles exigindo total obediência. Não seria esse o protótipo da relação narcísica paterna, na medida em que – neste modelo - os filhos têm que ser iguais aos pais, não podem ser diferentes, e não podem fazer escolhas próprias?

O modelo oposto, da paternidade-maternidade não narcísicos está expressa na bela e conhecida poesia de Gibranxxiv:

      Vossos filhos não são vossos filhos.
      São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
      Vem através de vós, mas não de vós.
      E embora vivam convosco, não vos pertecem.
      Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vosso pensamento,
      Porque eles têm seus próprios,
      podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas,
      pois suas almas moram na mansão do amanhã,
      que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
      Podeis esforçar-vos por ser como eles,
      mas não procureis fazê-los como vós.
      Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
      Vós sois os arcos dos quais vossos filhos,
      são arremessados como flechas vivas.
      O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e
      vos estica com toda a sua força.
      Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
      Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria.
      Pois assim, como Ele ama a flecha que voa,
      ama também o arco que permanece estável.

3

A importância do desejo parental na organização do psiquismo dos filhos tem diversas formulações teóricas, a começar com Freud ao descrever o narcisismo dos paisxxv, desdobrando-se nas elaborações lacanianas em torno do Outroxxvi, passando pelo "contrato narcisista" de Piera Aulagnierxxvii, pela teoria da "sedução generalizada" de Laplanchexxviii, pelos "roteiros narcísicos dos pais" de Manzano, Espasa e Zilkhaxxix, para citar alguns.

A meu ver, elas formam uma vertente teórica que permite postular uma terapia familiar propriamente psicanalítica, levando ao estudo da transmissão psíquica transgeracional ("objeto transgeracional"), tal como teorizado por Kaës. Diz ele: "O desenvolvimento das pesquisas sobre a transmissão da vida psíquica a partir de novos dispositivos psicanalíticos implica em um novo modelo de inteligibilidade da formação dos aparelhos psíquicos e de sua articulação entre os sujeitos do inconsciente. Essas pesquisas criticam as concepções estritamente intradeterminadas das formações do aparelho psíquico e as representações solipsistas do indivíduo.(...) Os trabalhos psicanalíticos sobre o grupal, nos encorajam a integrar, no campo da psicanálise, todas as conseqüências teórico-metodológicas que derivam do levar em consideração a exigência do trabalho psíquico que impõe à psique sua inscrição na geração e na intersubjetividade". (grifos de Kaës)xxx.

A discriminação entre os espaços psíquicos intra-subjetivos, intersubjetivos e transubjetivos permite dar o devido realce à interpretação dos diversos vínculos que se organizam na intersubjetividade de uma geração familiar e na transubjetividade de sua história.

Neste sentido, Olga Correa salienta a relevância dos trabalhos de Abraham e Torok, que introduziram importantes conceitos operacionais como os segredos de família que atravessam gerações (clínica do fantasma ou assombração), o luto impossível por uma pessoa significativa (o que o torna patológico), a identificação secreta com um outro (fantasma de incorporação) e o enterro intrapsíquico de uma vivência vergonhosa e indizível (cripta)xxxi.

Ainda falando sobre família, mas agora voltando a Machado de Assis, Schilxxxii examina as diversas configurações familiares em sua obra e aponta algumas intuições machadianas que antecipam descobertas de Freud, tal como a importância das experiências infantis como determinantes na estruturação do sujeito, evidenciada no título de um capítulo do Memórias Póstumas de Brás Cubas, "O menino é pai do homem". Cita um trabalho de Leme e Lopes que descreve a sintomatologia paranóide de Bentinho e a refere à dinâmica de uma família carente de figuras paternas com as quais pudesse se identificar. Schil discorda de Afrânio Coutinho, para quem, na obra de Machado, "não há nada na vida familial de que os membros possam se orgulhar; o egoísmo é a força diretora e as mulheres são geralmente estéreis, sem desejos nem aptidões maternais; os filhos nascem para sofrer e causar aos pais tormentos, tristezas e aborrecimentos". Afrânio Coutinho conclui que Machado pouco destacou crianças e vida infantil em suas obras porque o autor teve uma infância infeliz, o que me parece bastante plausível.

Retomando os gêmeos de Esaú e Jacó, vamos vê-los crescendo na luta e na ambição, até se apaixonarem por Flora. Como sabemos, Flora morre sem escolher nenhum dos dois e os deixa sem muita disposição e garra, de volta aos braços da mãe, que vivia agora enamorada dos filhos; levava-os a toda parte, ou guardava-os para si, a fim de os gostar mais deliciosamente, de os aprovar por atos, de auxiliar a obra corretiva do tempoxxxiii. Abandonam as profissões escolhidas, onde não se sobressaíram como esperado pela mãe, e são ambos eleitos deputados. Até a morte, a mãe espera grandes coisas. Natividade não confessava, mas a ciência já não lhe bastava: A glória científica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de gabinete, entendida por poucos. Política não. Para um cético Conselheiro Aires, disse: Talvez já pensem na presidência da repúblicaxxxiv.

E o livro acaba assim, abruptamente, dando a impressão de inacabado, de não concluído, como se algo não tomasse forma definida e completa, não se configurasse, não se constituísse. Pedro e Paulo não casaram, nada indica que venham a ser grandes homens no futuro. Não "floriram", não desabrocharam plenamente.

Isso causa no leitor desconforto e perplexidade, um estranhamento diante do vazio. O sentimento despertado no leitor decorre da não constituição de Pedro e Paulo enquanto sujeitos. Assujeitados ao desejo da mãe, jamais puderam ter acesso a seus próprios desejos, fadados à alienação e ao fracasso.

Assim, vemos que o outro título do livro que Machado imaginara, Ab ovo, com suas conotações de desde o ovo, desde o começo, desde a origem também seria muito pertinente por referir-se ao que, efetivamente, é a origem de tudo, ou seja, a fantasia e o desejo parental que antecedem, em muito, a própria concepção de cada ser humano. Somos imaginados, falados, desejados (ou não), muito antes de existirmos.

A saída desta alienação no desejo do outro dá-se pela castração simbólica, pela entrada no Édipo, quando o pai joga papel da maior importância, rompendo a relação narcísica especular do filho com a mãe. Em Esaú e Jacó, o narrador nos mostra o pai de forma curiosa. Descreve-lhe uma alegria maior do que a da mãe ao saber da concepção e faz um comentário ambíguo ao associar a gravidez com o nascimento de Isaac da coxa de Abraão. Claro que essa citação refere-se mais imediatamente com a já mencionada espera de 10 anos pela gestação, o que faria os pais "velhos" e com o estabelecimento da aliança entre Deus e Abraão. Mas evoca também o nascimento de Dionísio da coxa de Júpiter, assim como o nascimento de Minerva da cabeça de Júpiter, figuras mitológicas que caracterizam o pai numa disputa com a mãe pelo papel feminino e maternal na concepção e gestação, ou seja, fora de seu papel masculino, paterno. Posteriormente, o pai é descrito sempre muito ocupado, às voltas com a grande finança, ficando os gêmeos sob o influxo exclusivo da mãe. Na medida em que o pai não exerce a função paterna, Pedro e Paulo não conseguem romper a ligação com a mãe e quando, adultos, fracassam em estabelecer uma relação exogâmica, fracassam. A relação dos dois com Flora é um tênue disfarce da fixação à mãe, de quem ambos continuavam enamorados.

Esaú e Jacó poderia ser visto como uma ilustração da importância do desejo dos pais em relação ao psiquismo dos filhos. Ao criá-los como gêmeos, Machado reforça essa imagem, na medida em que a gemelaridade simboliza a divisão interna estrutural do ser humano, a percepção de seu duplo, do inconsciente, e a compreensão de que esse inconsciente é o desejo de um outro estranho com o qual mantemos essa relação especular narcísica..

Publicados em 1904 e 1908, respectivamente os anos da morte da mulher Carolina e de sua própria morte, Machado exibe em Esaú e Jacó e Memorial de Aires um distanciamento depressivo com o qual olha a vida já vivida, na qual não se pode "parar no D", é impossível deter a corrente do tempo.

Embora a ausência de filhos seja um tema recorrente em Memorial de Aires, vamos encontrá-lo, de forma menos explícita, nos outros grandes livros de Machado. Quincas Borba, Rubião e Brás Cubas não procriaram, é conhecida a forma como se encerram as Memórias Póstumas: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa misérixxxva. Bentinho, por sua vez, o único dos grandes personagens que tem filho, na verdade o rejeita, na medida em que pensa ser ele filho de Escobar, suposto amante de Capitu.

Estaria isso ligado aos sentimentos de Machado frente ao fato de nunca ter tido filhos? Seguramente teria sublimado o desejo da paternidade biológica com a criação de grandes obras literárias, mas o tom de desalento em sua obra final talvez indique a permanência da dor provocada pela ausência dos filhos, causa de funda ferida narcísica como mostrou Freud no caso Schreberxxiv.

 

iMachado de Assis, Esaú e Jacó, Editora Ática, São Paulo, 1999, 12ª edição

iiM. de A.,  Memorial de Aires, Editora Ática, São Paulo, 2000,  6ª edição, 2ª impressão

iiiM. de A., E.saú e Jacó, p. 13

ivBosi, Alfredo, O enigma do olhar,  Editora Ática, São Paulo, 2000, p.155

vM. de A.,  Memorial de Aires,  p. 22

viM. de A., Esaú e Jacó,  p. 37

viiFaoro, Raymundo, Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio, Editora Globo, 2001, 4ª edição revisada, p.386-91

viiiM. de A. , Esaú e Jacó, p. 176

ixBosi, Alfredo, op.cit., Editora Ática, São Paulo, 2000, 1ª edição, p.54

xM. de A. , Memórias Póstumas de Brás Cubas, Abril Cultural, São Paulo, 1971, p. 166

xiBosi, Alfredo, op. cit.,  p. 17

xiiBosi, Alfredo, op. cit, p. 20

xiiiM. de A.. Quincas Borba, L&PM Pocket, Porto Alegre, 1997,  p. 22

xivM. de A., Memorial de Aires, p.134

xvBosi, Alfredo, op. cit.,  p. 130

xviM. de A., Esau e Jacó, p. 26

xviiM. de A.,  op. cit.,  p. 30

xviiiM. de A., op. cit.,  p. 31

xixM. de A., op. cit., p. 18

xxM. de A.,  op. cit., p.40

xxiCarel, A., “A Posteridade de Geração” in Alberto Eiguer (org.), A transmissão do Psiquismo entre gerações – Enfoque de Terapia Familiar Psicanalítica, São Paulo, Unimarco Editora, 1998,  p. 101-2

xxiiLacan, Jacques, Hamlet por Lacan, Escuta/Liubliú, Campinas, 1986,  p. 34-6

xxiiiLacan, Jacques, O Seminário, Livro VII, A Ética da Psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1986, p. 342

xxivGibran, G. Khalil, O Profeta, Ediouro, Rio de Janeiro, 2001,  p.19

xxvFreud, Sigmund, Sobre o narcisismo, uma introdução, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. XIV, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1ª edição, 1974, p. 107-8

xxviLacan, Jacques, O Seminário, Livro 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979, p.198-202

xxviiRuiz Correa, Olga B., Os novos territórios do grupo familiar e a terapia familiar analítica, Pulsional Revista de Psicanálise, no. 149, setembro de 2001, p. 16

xxviiiLaplanche, Jean, Da teoria da sedução restrita à teoria da sedução generalizada, in Teoria da Sedução Generalizada e outros ensaios, Artes Médicas, Porto Alegre, 1988, p.108-125

xxixManzano, J.; Palacio Espasa, F.; Zilkha, N.; Os roteiros narcísicos dos pais, in Livro Anual de Psicanálise XV – 2001 – International Journal of Psycho-Analysis – Editora Escuta, São Paulo, 2001

xxxKaës, René, Os dispositivos psicanalíticos e as incidências da geração, in A transmissão do psiquismo entre gerações – Enfoque em terapia familiar psicanalítica – São Paulo, Unimarco Editora, 1998, p.18-9

xxxiRuiz Correa, Olga B.,  Colóquio em homenagem a Nicolás Abraham e Maria Torok, in Olga B. Ruiz Correa (org.), Os avatares da transmissão psíquica geracional, Editora Escuta, São Paulo, 2001,  p.9

xxxiiSchil,  Mary Huseby, Pais e filhos nos romances de Machado de Assis, Luso-Brazilian Review, XXV, 2, 0024-7413/88/075, 1988, Wisconsin, USA

xxxiiiM. de A., op. cit., p.179

xxxivM. de A.,  op. cit., p.187

xxxvM. de A., Memórias Póstumas, op. cit., p.173

xxxviFreud, Sigmund, Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paanoides) – Obras Completas, Volume XII, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1969,  pg. 78


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