Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Outubro de 2001 - Vol.6 - NΊ 10

Psicanálise em debate

 

Uma Psicanálise que não resiste a si mesma

Dr. Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 – Imago – Rio)

O atentado em Nova York mostra a atualidade e premência dos temas tratados por Jacques Derrida em seu discurso nos "Estados Gerais da Psicanálise" em Paris, 2000. O atentado concentra vários ítens abordados ali por Derida: violência, guerras, soberania de estados, nacionalismos, meios de comunicações, tempo real na mídia, globalização, fronteiras, xenofobia, preconceitos, manifestações fanáticas, práticas religiosas, migrações, estrangeiros, chegantes, o Outro, penas de morte, loucuras, pulsão de morte.

De todos eles, certamente o central é o problema do mal e suas conseqüências sobre as relações humanas e as organizações sociais, ao se manifestar sob a forma de violência e crueldade.

Partindo do princípio de que é inelutável a existência do mal na humanidade, Derrida diz ser irrealístico tentar negá-lo ou suprimi-lo.

Lembra que, antes, o mal era compreendido em termos religiosos, o que não mais se sustenta.

Na atualidade, o único discurso capaz de enfrentá-lo, dimensioná-lo, entendê-lo é o discurso psicanalítico. Assim, para a construção de uma nova democracia, de novos padrões de relacionamento social entre pessoas e estados, para a revisão dos projetos políticos, jurídicos e éticos que regem tais relações, é imprescindível que sejam eles vistos à luz dos conhecimentos psicanalíticos.

É preciso contar com a pulsão de morte, que gera a destrutividade e a violência nas relações humanas, e entender que ela transcende a lógica racional. Freud mostrou que o mal que existe na essência do homem é conseqüência de uma das pulsões que regem o destino humano; é manifestação de Tânatos, a pulsão de morte que se espressa a nível individual ou inter-relacional como sado-masoquismo (no prazer em fazer sofrer, no prazer em sofrer) e, como não poderia deixar de ser, se infiltra em suas organizações e instituições sociais, como o estado, aparecendo sob a forma de uma pulsão de poder, que se exerce como crueldade e soberania. O conceito aí introduzido por Derrida de "soberania", tão carregado de sentidos jurídicos e políticos referentes ao funcionamento autônomo do estado, de seu poder "sem limites" e "independente", parece-me poder ser entendido como um correlato, no campo do social, ao conceito de "lívre arbítrio" a nível individual, no que ambos se referem à primazia da consciência. Um exemplo cabal da crueldade soberana do estado é a pena de morte, contra a qual Derrida tem publicamente se manifestado.

Ao dizer ser imprescindível a inclusão do saber psicanalítico nos discursos que regem o social, Derrida está longe de qualquer ilusão ingênua ou megalomaníaca que colocaria a psicanálise como a panacéia que vai curar todos os males da humanidade.

É um reconhecimento de que a psicanálise ensina como funciona o psiquismo humano.

Derrida lembra que a psicanálise não pode condenar, reprimir ou censurar a agressão e a destrutividade, por sabê-la constitucional e ter por objetivo sua compreensão e análise, cabendo assim a outros campos – a justiça, a ética e a política - este exercício, que deve ser praticado levando em conta o saber psicanalítico. São estes discursos que estabelecerão as diferentes responsabilidades sobre os atos praticados por pessoas singulares, grupos e estados. Também eles estabelecerão a diferença entre a expressão justa e necessária da força e da violência que impõem a lei e a pura crueldade ("Macht und Recht" era o título inicial do trabalho de Freud que veio a se chamar "Porque a Guerra?").

Por muito tempo a afirmação que Derrida agora expressa era combatida tanto por psicanalistas – participantes daquela psicanálise que, como ele diz, "resiste a si mesma" -, como por sociólogos e políticos, que a consideravam uma intrusão indevida do pensamento psicanalítico no âmbito do social. Supostamente, este deveria ser lido quase que com exclusividade pela economia, cuja lógica se escondia e disfarçava nas superestruturas por ela mesmo criadas, até ser desvendada por Marx.

As explicações exclusivamente econômicas sobre as realidades sociais não mais são consideradas suficientes. Ao enfatizar a absoluta necessidade da presença dos conhecimentos psicanalíticos nas formulações e na prática da política, da ética e da justiça, Derrida sublinha a radical estranheza da pulsão de morte, que desafia toda e qualquer economia - desde a macroeconomia dos estados, passando pela micro-economia doméstica, até chegar ao que Freud chama de economia psiquica. Diz: " Pode-se acreditar que a economia é desafiada pela especulação dita "mitológica" sobre a pulsão de morte e sobre a pulsão de poder, portanto sobre a crueldade, como sobre a soberania. Na pulsão de morte (..) pode-se reconhecer, com efeito, uma aparência de aneconomia (ausência de economia). E o que é mais aneconômico, dir-se-á, do que a destruição? E do que a crueldade?"(1)

A lógica e a racionalidade conscientes eram os pilares sobre os quais a modernidade acreditava poder realizar o projeto iluminista de levar o progresso e a civilização para toda a humanidade. Entretanto, essa lógica e essa racionalidade foram as responsáveis pela exploração colonialista do século XIX, o neo-colonialismo do século XX com suas duas grandes guerras, a formação dos totalitarismos stalinista e nazista, culminando com a organização dos campos de extermínio em massa, dos quais Auschwitz é o paradigma. Essas mesmas lógica e racionalidade são as responsáveis pelos atuais desmandos loucos da economia, pelo "mercado" - que continua gerando situações de profunda injustiça social.

Lyotard, mostra isso de forma muito clara, ao afirmar:

"O pensamento e a ação dos séculos XIX e XX são governados pela Idéia de emancipação da humanidade. Essa idéia elabora-se no final do século XVIII na filosofia das Luzes e na Revolução Francesa. O progresso das ciências, das técnicas, das artes e das liberdades políticas emancipará a humanidade inteira da ignorância, da pobreza, da incultura, do despotismo, e não fará apenas homens felizes, mas nomeadamente graças à Escola, cidadãos esclarecidos, senhores de seu próprio destino. (...) Essas idéias estão em declínio (...). A classe política continua a discorrer segundo a retórica da emancipação. Mas não consegue cicatrizar as feridas que foram feitas pelo ideal "moderno" durante cerca de dois séculos de história. Não foi a ausência de progresso, mas pelo contrário, o desenvolvimento tecnocientífico, artístico, econômico e político que tornou possível as guerras totais, os totalitarismos, o afastamento crescente entre a riqueza do Norte e a pobreza do Sul, o desemprego e os "novos pobres’, a desculturação geral com a crise da escola, ou seja, da transmissão do saber, e o isolamento das vanguardas artísticas. O neo-analfabetismo, o empobrecimento dos povos do Sul e do Terceiro Mundo, o desemprego, o despotismo da opinião e portanto dos preconceitos repercutidos pelos media, a lei de que é bom o que é "preformativo" - isso não é devido a falta de desenvolvimento, mas ao desenvolvimento. É por isso que já não ousamos chamar-lhe progresso.(2)

É nesse sentido que deve ser entendida o famoso apostrofar de Adorno – "não se pode mais escrever poemas depois de Auschwitz". Queria ele dizer que se o pensamento racional do qual a humanidade tanto se orgulhava e que era a base de nossa civilização, se tal pensamento racional podia levar a tais extremos de irracionalidade, esse pensamento teria que ser radicalmente questionado, posto em dúvida, rejeitado.

O projeto iluminista, que acreditava na emancipação da humanidade através da racionalidade e do saber consciente concretizados nos desenvolvimentos técnico-científicos, fracassou, como Lyotard descreve, pelo desconhecimento da dimensão inconsciente descoberta por Freud.

O projeto iluminista terá continuidade na medida em que se soma o conhecimento freudiano psicanalítico. Será – como diz Derrida - o advento de ‘novas Luzes para nosso tempo".

Com ele poderemos "desconstruir" de forma mais eficaz as velhas formas que organizam o social. Com ele poderemos entender como o inconsciente nelas se imiscui, tendo mais elementos para combater as inevitáveis intrusões da pulsão de morte e dos vários mecanismos usados para negá-la, cindí-la, projetá-la, etc, além da compreensão mais acurada do funcionamento psíquico dos grupos, da dimensão narcísica infantil e idealizada que pode subsistir na relação entre os líderes e seus liderados.

Sendo o discurso analítico o único atualmente capaz de lidar com o problema do mal e suas manifestações pessoais e sociais, Derrida lamenta a omissão da psicanálise nesta que seria sua contribuição essencial. Diz que se de há muito se conhece a resistência do mundo à psicanálise, é necessário falar agora da resistência da psicanálise ao mundo. Seguramente não era essa a postura de Freud, como por exemplo em "Considerações Atuais sobre Guerra e Paz" e "Porque a guerra?".

Nem a de Hanna Segall, que disse: "`Geralmente se aceita que a psicanálise fale com autoridade só de psicologia individual e de seu trabalho na sala de consultas. Fenômenos sociopolíticos deveriam ser reservados, portanto, a especialistas de outras áreas, economistas, sociólogos, políticos e até, na área da guerra, a generais. Defendo, porém, que a psicanálise tem no seu campo inúmeros aspectos da mente humana e de suas atividades, e que, portanto, a exploração dos aspectos sociais é uma área legítima de investigação psicanalítica. Além disso, penso que a psicanálise pode oferecer uma contribuição especial no entendimento destes fenômenos; especialmente devido à nossa experiência a respeito do conflito entre as atitudes construtivas e as destrutivas no indivíduo, que nos qualifica a lançar alguma luz sobre forças destrutivas com que temos de lidar socialmente". (3)

Derrida naquele trabalho coloca três tarefas para a analista praticar uma psicanálise que não resiste a si mesma, engajando-se na leitura do mundo: a constatativa (da órdem do saber teórico) , a performativa (da órdem do fazer) e a "mais além" (uma postura mais existencial, de envolvimento pessoal político do analista com o desejo de lutar por um mundo melhor).

É tentando cumprir com essas tarefas, que retomo agora a leitura de alguns aspectos do atentado de Nova Iorque.

Em primeiro lugar, o ato terrorista é uma assustadora mostra de até onde podem ir a loucura humana, o fanatismo, a onipotência psicótica, a consumação da destrutividade mais desimpedida, a inquietante expressão da pulsão de morte.

Passado o choque inicial, começamos a pensar. Vemos aí uma evidência, a nivel social, dos mecanismos psíquicos de negação, isolamento, cisão, e projeção, com as conseqüentes distorções de percepção a que isso induz.

O isolamento permite descontextualizar o ato terrorista, concebendo-o como algo-em-si, uma emergência autônoma desvinculada de qualquer outra realidade a a não ser ele mesmo, sem nenhuma justificativa ou explicação. A cisão e a projeção do Mal permitem

a construção de pensamentos como aqueles enunciados na mídia – "o mal (terroristas) atacam o bem (Estados Unidos)", é a "Barbárie contra a Civilização", que negam, por fim, uma realidade psíquica mais complexa.

Quando desfazemos o isolamento, insere-se o ato terrorista dentro de um contexto.

A cisão e a projeção tentam negar a realidade psíquica de nossa ambivalência estrutural, o conhecimento de que somos – todos e cada um de nós - uma mistura inevitável de pulsão de vida e de morte, de Eros e Tanatos, de amor e ódio, de capacidade de construir e de destruir. Para tanto, fica a agressão localizada no outro, o que dá margem a pensamentos do tipo "eu sou o bem, você é o mal, e portanto estou autorizado a destruí-lo".

Essa cisão entre o bem e o mal, ficando o interessado com o bem e o mal projetado num inimigo, é um mecanismo básico do funcionamento psíquico primitivo, típico do funcionamento psicótico paranóico. E, como vemos, rege ambas as posições em jogo, a dos terroristas (que sempre se vêem como representantes de uma "boa causa" que os autoriza a atacar o mal localizado no inimigo) e a do "establishment" (Pres. Bush , em seu primeiro discurso, disse iniciar uma a guerra do Bem contra o Mal).

Desfeitos o isolamento, a cisão, a projeção e a negação, nos deparamos com a realidade sócio-político-econômica do mundo onde o atentado se insere. A história mostra que o terrorismo sempre se manifesta atacando um determinado "establishment" – seja ele qual for. Terrorismo e "establishment" têm uma relação dialética cuja compreensão se impõe. É necessário ver o que no "establishment" cria condições para o aparecimento do terrorismo.

Esta visão nos mostra que dificilmente alguém medianamente informado, diria que o "establishment" – no caso, representado pelos Estados Unidos – são o "bem".

Não se pode negar que o poder do "establishment" se exerce no comando da economia mundial, que essa dá hegemonia aos valores culturais ocidentais eurocêntricos e empurra para o ostracismo e para a miséria uma larga parcela da humanidade.

Fica claro como a "civilização", que é o "establishment" detentor do poder econômico e que impõe o padrão cultural, se relaciona com a "barbárie". Se antes os conceitos de "civilização e barbárie" talvez refletissem a estranheza do encontro com o Outro, hoje podemos pensar diferente. Fosse a "civilização" tão "civilizada", teria como prioridade máxima a superação do estado de "barbárie" de grande parte da humanidade, através da educação e da mais justa distribuição da riqueza econômica e cultural. Não é isso o que ocorre. O que vemos é que a tal "civilização" – em função de seus interesses - mantém e explora a "barbárie".

Assim, se antes falei da loucura e irracionalidade expressas no atentado de Nova York, é necessário que se fale também da inequívoca loucura e irracionalidade do "establishment" na condução da economia mundial, responsável que é pelas imensas diferenças que se evidenciam tão claramente nas imagens do esquálido Afeganistão, preso nas misérias de uma teocracia do século X e dos escombros nova-iorquinos, cenas de um filme futurista de ficção científica do século XXI.

É verdade que no ato terrorista - com a qual não se pode compactuar e se deve condenar em princípio – há um tom de recurso último desesperado que deve ser escutado. Somente assim poderemos discriminar até onde ele advém da onipotência delirante de loucos que não se dobram frente as evidências da realidade e preferem a morte e reconhecer as limitações de suas pretensões; até onde ele decorre da arrogância do "establishment" em se negar a ouvir queixas que denunciam suas distorções e injustiças e assumir suas culpas.

Assim, é importante lembrar que se nos assusta a destrutiva loucura do ato terrorista, não devemos esquecer a loucura destrutiva de uma economia dissociada do social, dos milhões de seres humanos despojados de qualquer esperança, à margem da história, alijados das confortos e facilidades que o progresso proporciona.

Assimilando-se à ética, à politica e ao direito, o pensamento analítico poderá ser de grande ajuda para "desconstruir" o discurso do poder do "establishment", ajudando-o a assumir as responsabilidades e obrigações decorrentes de sua posição de riqueza e poder que o colocam – à sua própria revelia– no papel de quem pode exercer as funções paterna e materna num mundo de pobres e carentes. Também seria possível "desconstruir" o discurso dos pobres e excluídos, tornando compreensível seu pedido de socorro.

Oportunamente, lembramos que Derrida se pergunta: "Porque a psicanálise nunca fincou pé no vasto território da cultura árabe-islâmica?"(4)

 Referências Bibliográficas

  1. J. Derrida, "Estados-da-alma da psicanálise – O impossível para além da soberana crueldade" – São Paulo – Editora Escuta – 2001 – p. 83
  2. J.-F. Lyotard, "O Pós-moderno explicado às crianças" – Lisboa – Publicações Dom Quixote – 1999 – 3ª edição – p. 101-2, 114-5
  3. H. Segall, "Psicanálise, Literatura e Guerra" – Rio de Janeiro – Imago Editora - 1998 – p. 167
  4. J.Derrida, opus cit, p.40

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