Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2001 - Vol.6 - Nš 1

O artigo do Mês

O psiquiatra do Führer

Fernando Portela Câmara
Psiquiatra, ABP

O promissor pintor paisagista Adolf Hitler deixou de lado suas tintas e pincéis para alistar-se no 1a Companhia do Regimento Bávaro de Infantaria da Reserva, e foi lutar na batalha de Ypres tornando-se um dos 600 sobreviventes dos 3.500 soldados enviados. Num lance jamais esclarecido, ele sozinho, armado apenas com uma pistola fez prisioneiros um oficial francês e 15 soldados inimigos, feito pelo qual foi condecorado com a cruz de ferro, evento que o marcou profundamente. Em 1916 foi ferido na perna, recuperou-se e reintegrou-se ao exército como mensageiro entre os quartéis e a linha de frente, e no último mês da I Grande Guerra, em 1918, ele sofreu um ataque de gás mostarda na frente de Flanders e ficou temporariamente cego. É este o fato que dá início à nossa história.

Rudolph Binion (1984) foi o primeiro a observar que algo crítico aconteceu com Hitler durante sua estadia no hospital militar de Pasewalk para curar-se das queimaduras e cegueira provocada por gás mostarda. Um homem tímido, com receio de falar em público, que nutria ódio pelos derrotistas, jesuítas e comuinistas, teria saído deste hospital inteiramente mudado: olhar penetrante, gestos firmes, gosto de falar em público, carismático, enfim, com os traços de personalidade que iriam caracterizar o futuro Führer.

Semelhantes mudanças sucedem a algumas figuras em épocas de crise que, de anônimas, passam a se tornar líderes entre o povo. Foi assim com Joana D'Arc, uma jovem camponesa que se tornou líder de exércitos ou com o advogado medíocre que se tornou o Mahatma Gandhi, e os exemplos se multiplicam ao longo da história. Entretanto, nada prova que tais ocorrências sejam decisivas para mudar o destino de um povo, senão que servem apenas como símbolos de resistência, mas sua ocorrência pode algumas vezes provocar um impulso irreversível, e para tal basta-nos lembrar o advento do profeta do Islã e o jovem que após o Batismo no Jordão tornou-se um profeta maior que João Batista chegando a ser alçado ao próprio Deus.

Após este episódio crítico, Hitler integrou o serviço de espionagem alemão e sua tarefa era observar os movimentos comunistas. Nessa época tornou-se membro do Partido dos Trabalhadores Alemães, uma organização política criada para ser oposição (inclusive armada) ao PT bolchevique. O PT germânico pregava um socialismo radical baseado no nacionalismo germânico, na supremacia da raça ariana e no anti-semitismo radical, ideologia, aliás, que teve financiamento de importantes sociedades e a simpatia geral na Europa. Mais tarde este partido se tornaria o famoso Partido Nacional Socialista.

O nacionalismo era a doutrina mais radical desse partido, tomando para si toda a mitologia da superioridade da raça ariana baseada numa pseudo-ciência fermentada desde o século XVIII. Este nacionalismo baseava-se em teorias sobre história e antropologia, cultos a deuses germânicos pagãos, valorização do folclore, ritos e rituais que ligavam a cultura alemã contemporânea aos antigos heróis e valores da "raça". Restava encontrar um bode expiatório para os problemas econômicos e os desmandos da Alemanha e os judeus preenchiam este papel.

De fato, este estratagema já fora desenvolvido no século XIX e disseminado pela propaganda russa e européia como, p. ex., através de uma publicação denominada "Os Protocolos dos Sábios do Sião". Embora este documento seja definitivamente uma fraude (v. Eco, 1994) elaborada possivelmente na Rússia, esta prova definitiva não surtiu efeito. A propaganda era intensa. Uma das obras anti-semitas mais lidas, comentadas e respeitada até mesmo por Churchil, que costumava citá-la, era a da escritora Nesta Webster (best-seller nos anos 20), que denunciava o marxismo como uma fachada para a "ameaça judaica". O clima, portanto, era favorável à ideologia nacional-socialista (ou nazismo), cujo populismo tinha a simpatia incondicional da maioria dos alemães e foi para cumprir a vontade desta maioria que Hitler tornou-se Führer firmando um pacto com essa vontade radical, irracional, que freqüentemente emana das massas.

Um breve interlúdio.

Binion (1984) considera que o ódio de Hitler pelos judeus teria sido motivado por um incidente ocorrido em sua infância: a morte de sua mãe. Hitler era o quarto filho de Klara, que perdera seus três primeiros rebentos em tenra idade pela difteria. Cinco anos depois de Adolf nascia Edmund, que também morreria (de sarampo), e finalmente Paula, que cresceria junto com Adolf. Klara agarrou-se tremendamente ao pequeno Adolf, que ela temia perder. Mãe e filho viviam numa simbiose afetiva.

Quando Klara desenvolveu um câncer de seio o desespero tomou conta da vida de Adolf. Ele decidiu contratar o dr. Edmund Bloch, médico famoso, judeu, de honorários elevados. Este médico deixou como testemunho jamais ter visto um jovem tão transtornado com a morte iminente de sua mãe, testemunho também deixado por um amigo de infância, August Kubizec. Bloch propõe usar, como medida heróica para tentar minorar o terrível sofrimento de Klara, a aplicação de gaze embebida em iodo sobre as chagas cancerosas, avisando que tal medida poderia envenenar a paciente. O jovem Hitler insistiu em que tal tratamento fosse realizado e, de fato, Klara morreu da intoxicação hepato-renal provocada pelo iodo, abreviando-se o curso de sua morte já próxima e inevitável. Hitler sentia-se culpado desta morte e reprimiu um tremendo rancor pelo médico. Sean Wilder (1990), baseado neste relato de Binion, faz um jogo de homofonias entre "Jod" (iodo) e "Jud" (judeu), e entre "Gaze" (gaze) e "Gas" (gás)...

Retornando à narrativa.

Após receber a cruz de ferro algo mudou no comportamento do arredio Hitler. Entre os períodos de atividade militar e exercícios, Hitler passava suas horas calado, meditando e ocasionalmente escrevendo. Vez por outra ele se inflamava e pregava a supremacia do espírito alemão e profetizava a rendição da Alemanha e toda infelicidade que daí viria para o povo germânico. Este patriotismo profético, que se tornou um traço peculiar, que se manifestava em exaltações, não deixou de ser notado por todos os que conviveram com ele neste período, particularmente pelo psiquiatra que o trataria. Tais manifestações não se caracterizavam por delírios ou alucinações e o seu pensamento era organizado. Não havia traços psicóticos na personalidade de Hitler, mas o caráter histriônico era patente e também um passado de acidentes histéricos (conversões).

A cegueira de Hitler, que será comentada a seguir, certamente foi um típico acidente histérico, uma histeria de conversão. Além de seus evidentes traços de personalidade histriônica, teria ele uma história pregressa sugestiva? Erich Fromm (cit. por Binion, 1984) cita um sintoma positivo de conversão na história clínica do Führer, relatado por Speer, ministro do III Reich e também amigo íntimo de Hitler. Por duas vezes ele testemunhou uma convulsão parcial no braço direito de Hitler: a primeira após o fracassado putsch de Munich, e a segunda quando soube da derrota alemã em Stalingrado. Estes fatos e seu caráter episódico apontam para um distúrbio conversivo, sendo pouco provável uma epilepsia bravais-jacksoniana.

Uma estranha história

Após o ataque de gás mostarda no front (15 de outubro de 1918, em Flanders), queimado e temporariamente cego, Hitler foi recolhido ao hospital militar de Pasewalk, próximo de Berlim. Aí ele foi cuidado e recuperou a visão sem nenhuma seqüela. Contudo, com a notícia da rendição alemã em 11 de novembro deste mesmo ano, ele entrou em desespero e ficou novamente cego. A intensidade desse desespero e o retorno da cegueira impressionaram tanto os médicos deste hospital, que eles apelaram aos conhecimentos de um professor universitário especialista em histeria de guerra, o psiquiatra Edmund Forster.

Na sua autobiografia Hitler omite o nome deste médico, e muito menos que foi tratado por um psiquiatra, ele diz ter sido ajudado por uma enfermeira de espírito maternal que lhe transmitiu palavras de incentivo que o curou. Não podemos deixar de notar que este ocultamento da figura do psiquiatra por uma figura materna é muito significativo aqui. Não podemos deixar de notar também que ele se refere especificamente à uma cura pela palavra.

O método de Forster não era bem visto pelos seus colegas. Ele atuava de modo direto, incisivo, autoritário, através do hipnotismo e da sugestão, repreendendo e incentivando, mas apesar de ser criticado por alguns de seus pares, seus pacientes demonstravam-lhe gratidão, respeito e estima. Se o hipnotismo e a sugestão não eram suficientes, ele recorria a métodos mais drásticos, repreendendo o paciente sob a acusação de criar sua doença para fugir à responsabilidade para com a Pátria e seus companheiros e o ameaçava com o Conselho de Guerra ou mesmo com a Corte Marcial. Este método, contudo, não era estranho aos psiquiatras que atuavam na frente de batalha. Urgia tirar o paciente da sua neurose e reintegrá-lo imediatamente às fileiras das armas, ainda mais porque o exemplo era contagioso e soldados que se beneficiavam da neurose adquirida na batalha servia para espalhar o temido contágio histérico. Assim, o psiquiatra no front não estava muito preocupado com repressão e defesa, mas com um objetivo imediato fossem quais fossem os meios, e estes tinham de ser rápidos e eficazes para seus propósitos. É assim que Wilder (1990) indaga se, nestas palavras de Hitler, em seu "Mein Kampf", não ecoava a voz de Forster numa das sessões decisivas de sua terapia: "... quando o gás queimava e cegava meus olhos e eu me desesperava, a voz da minha consciência ecoava contra mim: 'Miserável, ousas lamentar agora enquanto milhares sofrem neste momento cem vezes mais que tu?'".

Binion (1984) argumenta se Forster não teria usado o fanatismo patriótico de Hitler contra sua cegueira histérica, e cita ainda estas palavras do próprio Forster sobre o seu método hipnótico-sugestivo: "Quando eu uso o método da sugestão (...) eu faço meus pacientes saberem que não estou me servindo de um meio de cura, eu digo a eles que [se eles recuperam sua vontade por tal] este método prova somente que eles não estavam doentes, pois, se o estivesse, a sugestão não serviria para nada". São palavras verdadeiras, pois, a sugestão não cura, apenas modifica um comportamento inadaptado por outro mais adaptado à situação, e a histeria não está fora desta consideração.

Forster foi a Paris em 1933 e aí entrou em contato com imigrantes alemães editores do jornal anti-fascista "Das Neue Tagebuch", aos quais teria contado a sua incrível história. Ernst Weiss, um cirurgião que fora um antigo discípulo de Freud foi chamado para testemunha-la e inspirou-se no relato de Forster para escrever o seu romance "Le Témoin Oculaire". Foi este romance, no qual Weiss descreve a milagrosa cura da cegueira histérica do personagem A.H. no hospital P. (está claro que A.H. são as inicias de Adolf Hitler e P. o hospital militar de Pasewalk, porém o nome do psiquiatra nunca é revelado), que Binion acredita ser um relato fiel do que Weiss ouviu do próprio Forster. Embora seja apenas um romance, e não uma biografia ou um relato histórico, é interessante especular, como fez Binion, sobre o assunto uma vez que a narrativa está cheia de fatos que sabemos ser verdadeiros na biografia do famoso neurótico.

No romance de Weiss, uma cura milagrosa opera-se em A.H., um herói de guerra atingido por gás mostarda e recolhido ao hospital P. para ser tratado. O psiquiatra observara longamente aquele homenzinho arredio, moralista, que pregava ódio aos inimigos da Alemanha e de seu ardente desejo de retornar ao front para dar a sua vida pela Pátria, e então usou o próprio fanatismo patriótico do doente contra seu sintoma mórbido.

Weiss descreve um longa sessão noturna onde o psiquiatra deixa A.H. à vontade para falar de si mesmo e o incentiva a expressar seu patriotismo exaltado. Numa segunda sessão, também à noite, realizada na obscuridade tendo apenas uma vela acesa, o psiquiatra, após examinar os olhos do paciente, lhe afirma que sua cegueira não tem cura dentro da medicina e em seguida, adotando uma postura hierática, diz a A.H. que somente ele poderá curar a si mesmo, despertando em seu interior forças espirituais curativas poderosas. Então ele pede ao ilustre paciente para se concentrar na luz da vela que está na sala, e enquanto este, impressionado, se concentra, ouve a voz solene do psiquiatra dizer-lhe: "A Alemanha precisa de homens como você... A Áustria acabou... mas a Alemanha ainda persiste... para você tudo é possível! Deus irá ajudá-lo em sua missão, se você ajudar a si mesmo agora", e conclui com a imperiosa sugestão: "Se você confiar cegamente nesta missão, sua cegueira desaparecerá!".

Deu-se então a "cura milagrosa": A.H. recuperou neste mesmo momento sua visão. E mais que isto, era agora um homem diferente, mudado, olhar penetrante, a fala segura, personalidade carismática, um predestinado. Tão diferente daquele homem que o psiquiatra observara longamente antes de planejar a sua terapia: um homem tímido, arredio, com inibição de falar em público, que exprimia seu ódio pelos bolcheviques, jesuítas, e derrotistas (o câncer de sua mãe?), e um amor filial pela Alemanha (sua mãe?), que estava nas mãos deste inimigos (o médico judeu?)? Agora uma transmutação tinha se operado. Aquele insignificante herói de ocasião, plúmbea personalidade, transformara-se em uma liderança fanática, um ouro diabólico que iria até as últimas consequências do seu delírio.

O resto do romance descreve as peripécias deste psiquiatra perseguido pelo Estado liderado agora por seu antigo paciente A.H. De fato, com a ascensão de Hitler seu dossiê psiquiátrico desapareceu por ordens do mesmo. Uma cópia ficou com Canaris, chefe do serviço secreto da Wehrmacht, e outra com Himmler até 1940. Todos os documentos nazistas, contudo, foram queimados e nenhum prova aparentemente restou. Foster se viu em perigo não apenas com a ascensão de Hitler, mas também de figuras como Göering, que Forster diagnosticou como cocainômano, e Bernard Rust, ministro da educação nazista, que fora acusado de estupro, e que Forster diagnosticou como psicopatia amoral.

Edmund Forster suicidou-se logo após seu retorno para a Alemanha ainda em 1933. Em 1940 Ernst Weiss fez o mesmo quando as topas alemãs entravam em Paris.

Criação monstruosa de um psiquiatra?

Tal como o haxixe ou o álcool nada provocam que já não seja do próprio caráter e disposição do indivíduo, nenhuma hipnose ou sugestão muda ninguém. A psicoterapia pode reestruturar comportamentos, esclarecer motivações, atualizar tendências, mas não pode criar um novo ser. Hitler certamente não foi criação de Forster, como sugere Binion após a leitura de Weiss, mas sua própria criação atualizada por forças poderosas consteladas dentro de um contexto de crise e conduzido por tais numa sequência de oportunidades que soube utilizar. Tal como Joana D'Arc, ele foi um produto de suas próprias fantasias e levado por elas na multidão sequiosa de revanche. Se anjo ou diabo, é o juízo da história que decide. Talvez Forster tenha sido o catalisador desta reação, atualizando um desejo longamente reprimido, mas ainda assim isto não seria suficiente para o advento do Führer se não houvesse o referendum da vontade do Partido Nacional-Socialista e a pressão da vontade popular. Ou Hitler teria sido um mero profeta apocalíptico panfletando nas ruas, ou ele seria o que foi dentro da geometria inevitável que a imprevisibilidade e a instabilidade da história criou num determinado tempo e num determinado lugar, permitindo que uma vontade coletiva elegesse aquele que poderia realizar sua catarse. Este e um fenômeno que observamos nos grandes movimentos da história.

A ascensão de Hitler é marcada por uma vontade coletiva longamente reprimida e mantida sob recalque pela política internacional. A humilhação da perda da I Grande Guerra e a provação que o povo foi submetido pela dívida de guerra e juros da dívida interna, a falência dos projetos social e econômico, ansiava pelo messias libertador. Foram estas forças coletivas que o elegeram, dentre os fracos, oprimidos e neuróticos, aquele que se dispunha a ser o seu instrumento. E é esta a finalidade de todo líder carismático: promover a catarse, encontrando o bode expiatório mais adequado (o comunismo internacional, tido então como a fachada do "projeto judaico" para desestabilizar a Europa e dominá-la economicamente) para descarregar todas as energias hostis longamente represadas, para depois desaparecer, pois, sua finalidade é apenas esta.

O mais interessante é que esta paranóia persiste desde a época dos templários e dela alimentam-se os nacionalismos e fundamentalismos desde então. Parece ser ela que impulsiona o motor do Eterno Retorno. Mudam-se apenas os discursos e os bodes expiatórios.

Referências:

  • Binion, R. Hitler Among the Germans. Northern Ilinois Univ. Press, Ilinois, 1984.
  • Eco, H. Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção. Companhia das Letras, São Paulo, cap. 6, 1994.
  • Weiss, E. Le Témoin Oculaire. Alinéa, Aix, 1988.
  • Wilder, S. À Propos de l'Antisémitism et du Charism de Hitler. Dire (Montpellier), #9, 1990.

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