Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Junho de 2001 - Vol.6 - Nº 6

Psiquiatria, outros olhares...

Estética e Sexualidade

Dr. Antonio Mourão Cavalcante
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica),
Doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon (França), Professor
Titular de Psiquiatria da Fac. Medicina/UFCe, Diretor do Centro de Estudos da Família.

A Estética pode ser chamada de teoria da sensibilidade. O objeto da Estética é o belo e a arte. A tentativa de expressão da arte. Ela pressupõe uma sensibilidade dirigida ao belo. Tenta pontuar ou balizar os critérios de construção do belo. Seria, portanto, uma ciência normativa, como normativas são a Lógica e a Moral que impõem padrões e regras. (1)

Esse conceito leva a especulação: afinal, o que é o belo? Kant, em A Crítica da Faculdade do Juízo (1790) diz que existem quatro características para um juízo estético. (2)

      1. O belo é expressão de uma satisfação desinteressada. Aquela que se define por ela mesma. Que não é vendida, que não é comprada, que não é imposta, que se legitimiza pela sua própria natureza;

      2. O belo agrada universalmente, sem conceito. Aquilo que é belo sempre será. A Vênus de Botticelli, na Galeria Degli Uffizi, em Florença, na Itália, continua bela, atravessando os séculos. O mesmo pode-se dizer de La Pièta, de Miguel Ângelo, na Igreja de São Pedro, no Vaticano. Sempre foi bela;

      3. O belo é a forma da finalidade de um objeto percebido sem representação de fim. Um isqueiro, por exemplo, é belo não pela intensidade da chama, mas porque guarda uma forma ou uma concepção que independe da sua atribuição ou finalidade. Podemos conhecer uma pessoa muito bela, mas extremamente chata.

      4. O juízo estético é universal e por isso necessário, mas uma necessidade meramente subjetiva.

A questão do estético reenvia à subjetividade. Nesse momento podemos ajuntar duas idéias complementares à construção desse conceito:

1. tratamos de subjetividade do ponto de vista da cultura. Isto é, a cultura manifesta uma subjetividade. Basta citar o caso da paixão brasileira pela bunda. As bundas eram africanas pertencentes a uma determinada etnia, que apresentavam a região glútea avantajada. Essa etnia se chamava Bunda. Daí tomou-me a parte pelo todo. Uma metonímia.

2. essa subjetividade é igualmente individual, fruto de uma vivência pessoal. Algo expresso, por exemplo, quando se fala: quem ama o feio, bonito lhe parece.

A construção do belo está impregnada de subjetividade. Por isso, toda mãe acha o filho lindo. Nesse caso as razões não são estéticas, mas de uma subjetividade pessoal. Ela é a mãe.

Essa Estética, por causa da subjetividade cultural e pessoal, não estaria solta no tempo. Daí surge a idéia da moda. Nesse caso, a moda é a estética prevalente. É a estética do momento, assimilada como padrão do belo. É muito interessante procurar saber por que determinados padrões estéticos, tidos como expressão do belo podem, ser considerados, depois de algum tempo, como inadequados. Um rapaz de cabelos longos, mascando chicletes, calças boca-de-sino, seria considerado hoje como um "cafona". Em fins dos anos sessenta, estaria em plena moda...

O conceito de moda, que é essencialmente social e efêmero, complica a construção de uma Estética e mesmo do belo.

Não existiria uma essência absoluta do belo, nem como propõe Kant, uma forma a priori do belo? O belo estaria na natureza? Somos nós que o projetamos nela, por isso a admiração das belezas naturais, implicando uma fase psicológica e social muito avançada.

Não vou alongar-me sobre a construção do conceito de sexualidade, porque esse é mais longamente construído por todos aqueles que estudam o comportamento.

Por isso, passaria imediatamente à tentativa de explicar de onde vem as nossas matrizes estéticas atuais, do Brasil, em relação à sexualidade. Não podemos esquecer outros elementos da realidade atual, por exemplo, a globalização. Ela chega, obviamente, a esse nível. Domenico de Masi destaca que todos bebem coca-cola. São 32 milhões de garrafas por dia. Todos comem do mesmo gosto. São 18 milhões de hamburgers todos os dias nos McDonald’s da vida, mesmo em Porto Alegre, onde se poderia comer o melhor churrasco do mundo. Ouve-se a mesma música. Todos os aeroportos do mundo tem o mesmo cheiro. E, por conta disso, a criatividade fica em dificuldade, porque ela é baseada na diferença. Se perdemos as raízes locais, perdemos o terreno de onde vem a criatividade que seria o motor da construção do estético. (3)

Poderíamos fazer algumas reflexões sobre aspectos pontuais de nossas matrizes estéticas da sexualidade no Brasil de hoje:

- Antes nós tínhamos uma beleza mulata. Símbolo do Brasil. Carmem Miranda foi uma das brasileiras que conseguiu sucesso em todo o mundo. Por que? Ela era uma mulata que requebrava como uma mulata brasileira. Correspondia aos arquétipos culturais. Agora, o grande símbolo é uma loura, a Xuxa. E, muitas outras loiras que encantam: a Carla Perez, a Feiticeira, Ana Maria Braga, a Hebe Camargo.

- o destaque fica para os seios. Antes, eram as nádegas (bunda). E, aquelas que não possuem seios avantajados, socorrem-se do silicone, fazendo a felicidade dos colegas cirurgiões plásticos.

- Chama atenção que as mulheres, no passado, deveriam ter um corpo avantajado, diria mesmo, obesas. Basta lembrarmo-nos das mulheres de Rubens, expostas nas suas pinturas, no museu em sua homenagem na Antuérpia (Bélgica). Essa opulência é contrastada hoje com modelos e manequins anoréxicos e andróginos.

Isso que parece puramente circunstancial, revela um aspecto grave da questão estética e sexual. Esses padrões deixaram de ser uma expressão de sonho, da conquista, da sedução, da construção do belo, para tornar-se uma questão de consumo. As pessoas vestem-se dessa forma, se pintam desse jeito, não mais como uma expressão estética – do sonho, da subjetividade – mas, como uma virtude do consumo. Nos tornamos dependentes, gravamente atrelados à realidade ditada pelo econômico que inibe a percepção do contexto. No livro de Gilberto Felisberto Vasconcellos, intitulado: O Cabaré das Crianças, (4) título inspirado no programa de tv da apresentadora Xuxa Meneguel. O autor demonstra que nós estamos destruindo, no Brasil, a estética da sexualidade infantil. Não encontramos, nas lojas de um shopping, roupas adequadas às meninas. Vendem-se vestes para adultos em miniaturas. As meninas não podem ser meninas. Crianças.

Há uma pedagogia em torno da prostituição feliz. Como sendo a única estratégia da menina pobre. Lembremo-nos de Adriane Galisteu, Eliane, Carla Perez... e tantas outras. A única possibilidade de uma menina pobre ou de classe média se dar bem na vida é tentar a "sorte" nessa perspectiva. Assim, a esperança da família, seu sonho de consumo, volta-se para a sedução do corpo sexy. Condiz, ainda, com o desejo do jovem brasileiro de querer imigrar do país. O futuro da juventude buscado fora daqui.

A mídia, em geral, investe na genitalização prematura das crianças, sob o regime da promiscuidade social alucinada. Há poucos meses, num buffet dos mais sofisticado de Fortaleza, comemorava-se um aniversário infantil. Os convidados eram igualmente crianças, todas alegres. A atenção foi patrocinada por um "animador de grupo" que propos às meninas uma disputa original: um concurso de quem melhor se requebrasse na dança da garrafa.

Assim, como diz Vasconcellos, antecipa-se a menstruação das meninas, preparando o mais rápido possível o seu ingresso na organização genital mercantil da adolescência. E, de forma ainda mais contundente: "nossa organização genital reificada. O sangue menstrual precoce, cuja metonímia é o baton ou o saltinho alto, que consagra o sonho americano consumista da paquita ágrafa e analfabeta. Família nenhuma consegue segurar o caminho da filha que cresce assistindo o programa da tv."

A nossa cultura e por via de conseqüência a "nossa" Estética não é aprendida na escrita, na leitura, mas se alimenta do visual imposto. Esta a razão de darmos tanta importância à imagem da tv. Nesse contexto, a escola perde sua importância. Ninguém gosta dela.

CONCLUINDO

Ao lado de uma foto da famosa modelo, um texto muito sugestivo: "Depois de conquistar fama, sucesso, admiradores e dinheiro, mas muito dinheiro, a modelo gaúcha mais famosa da atualidade, Gisele Bündchen, 20 anos, se despede das passarelas. A revelação da top model, feita no mês passado, surpreendeu a todos. (...) Para ter uma idéia, em cinco anos de profissão, ela posou para 250 capas de revistas e participou de 1600 desfiles..." (Diário do Nordeste – 15.04.2001).

Fica evidente que a resposta dada pela sociedade de consumo legitimiza esse modelo estético. O belo passa a ser, na sociedade da globalização, aquilo que gesta grana e fama.

BIBLIOGRAFIA

  1. ABBAGNANO, Nicola – Dicionário de Filosofia, 2a. ed., São Paulo, Editora Mestre Jou, 1962;
  2. KANT, Immanuel – Crítica da Faculdade do Juízo - Ed. Forense Universitária, 1995;
  3. DE MAIS, Domenico – O Futuro do Trabalho, fadiga e ócio na sociedade pós-industrial, Rio de Janeiro, José Olympio, DF: Ed. da UnB, 1999;
  4. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto – O Cabaré das Crianças – São Paulo, Ed. Espaço e Tempo, 1998.

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