Volume 5 - 2000
Editor: Giovanni Torello


Abril de 2000 - Vol.5 - Nº 4

Winnicott e a nova escola, carta aberta

Emir Tomazelli
Psicólogo, psicanalista, professor do Departamento Formação em Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae, doutor em psicologia
.

 

I - Da ferocidade do ser à ferocidade do ideal-do-ser

Esta carta, seguindo uma tradição do próprio Winnicott, autor a ser hoje comentado, se dirige aos ‘Winnicotts tupiniquins’. Alerto a todos no entanto que, no que se segue, refiro-me estritamente a minha experiência de conviver e de ouvir já há algum tempo os estudiosos de Donald Winnicott, isto é, refiro-me a minha experiência de estar em contato contínuo ouvindo e também de lendo os winnicottianos. Nesse sentido, não são palavras úteis para aqueles que desejam ouvir uma discussão do Winnicott ele mesmo, mas que servem para encaminhar mais uma vez meu ódio dirigido contra nossas intermináveis discussões que se referem às escolas de psicanálise.

Vinte e três de agosto de 1996, na Usp, em São Paulo, na Cidade Universitária, às 15:00 hs, abertura da comemoração do centenário de nascimento de Donald W. Winnicott: "A Clínica e a Pesquisa no final do século: Winnicott e a Universidade". Este era o nome do evento. A coordenadora, responsável pelo evento, abre a primeira sessão solene com a leitura de um texto que Winnicott envia para Melanie Klein. É a carta de 17 de novembro de 1952I. É um trecho de um texto onde ele desaprova de modo veemente a atitude de Klein em dar incentivo e consentimento à formação do grupo kleiniano. Logo penso: as fraturas sempre estiveram em marcha, e agora não menos, infelizmente (!), e nós, quando herdamos um ressentimento, parece que devemos fazer por merecê-lo.

O tom da carta, de alguma forma, seria o tom do encontro, isto é, um tom de uma certa reprovação a Klein e ao kleinismo, pela sua brutalidade, pela sua dogmaticidade, pela sua ingenuidade. Áreas delimitadas, diferenças marcadas, territórios ... Muitas recordações, todas contínuas e referidas à Miss Klein, ou ao grupo kleiniano. Basicamente recordações comparativas, lembranças intensas, carregadas de rancor e ofensa. Dolorosas reminiscências de contendas narcísicas, memórias afetivas dos encontros científicos e dos ânimos exaltados, tanto na cena pública quanto nos bastidores da Sociedade Britânica daquela época, retornavam à vida agora diante de meus olhos perplexos. A visão da paixão, a visão da câmara nupcial de nossos pais combinados em coito sádico, era e parece ainda ser a base do obscurantismo auto-erótico, curioso e paradoxal, que envolvia toda a produção de um conhecimento científico e psicanalítico, que hoje - de modo até mais trágico - parece ainda adoecido dos mesmos males.

Sem que eu percebesse de modo claro, conforme ia assistindo o acontecimento desenrolar-se, começava a tomar conta de mim uma experiência de estranhamento - o Das UnheimcheII, ao que Freud já havia dedicado um belíssimo texto, e que, em sua abertura, falava sobre estética, marcava o meu encontro com o congresso no agora, pura reação, pura contratransferência. Lá no texto de Freud, uma citação de Schelling sempre atrai minha atenção: "‘Unheimlich’ é o nome de tudo que deveria ter permanecido ... secreto e oculto mas veio à luz".

"Assim é estar em um congresso psicanalítico, pensei!". Concluí, ainda meio no rascunho, lá na hora, que estava encantado e satisfeito em estar ouvindo o que se falava sobre a liberdade clínica e sobre a presença pessoal do analista na sessão de análise, mas estava irritado com a formação de mais uma escola de psicanálise. Me era insuportável. Subitamente o espaço parecia devorar-me, o ambiente apossar-se de todo meu ser e a experiência de lástima era desalentadora.

Semi embriagado pelo efeito de contradição que experimentava, segui conjecturando, o ambiente e o encontro tornaram-se senhores de nossos passos e o acontecimento ganhou uma qualidade estética, contratransferencial, que só a filiação, isto é, os rituais de admissão em uma comunidade, suscita em uma pessoa como eu. Mais uma vez, o vaticínio de Adorno, Theodor W. Adorno, se fazia valer, quando a razão dá lugar à ideologia, mais uma vez se instalou o fascismo, a propaganda e portanto o holocausto, mais uma vez foi antecipado.

Enfim, era a festa de aniversário de nascimento de Winnicott e ainda tentava-se controlar e criticar as idéias e as atitudes, talvez mesmo irresponsáveis, que Klein cometeu naquele então. Perguntei-me e ainda pergunto-me: que ferocidade era essa que alentava e ainda alenta nossos encontros, povoando-os dessa ‘carnalidade’ crítica que sempre reprova o gesto do outro, tornando-o um gesto inferior? Que olho é esse que nunca observa, mas sempre reprova? Era a presença da ferocidade do ideal-do-ser, ou era pura depreciação? Não seria, talvez, o velho e bom superego kleiniano sádico presidindo a festa da vida com a presença escondida do seu lindo anjo da morte?

 

II - Os devotos e a devoção: do amor impiedoso ao encantamento violento

Constatação: quem se dedica ao estudo de um pensador, mesmo do tipo dogmático, como é o caso de Klein, acaba por ser um simpatizante e, às vezes, mais que isto, um zelador do texto que lê. Cioso e ciumento pela precisão de certas colocações, cansa-se ao ter que ouvir comparações empobrecedoras, feitas com o afã dos ideólogos. Admirador dos fantasmas arrancados - às vezes até enfiados - da cabeça das crianças com sua acuidade clínica, o leitor estudioso de Klein tem pouco a dizer contra ela. Sabe apenas ouvi-la, sabe suportá-la. Devoção? Bem... Devoção. Muito boa esta palavra que Winnicott sempre reservou apenas às mães comuns que nem precisavam ser inteligentes para que sejam boas mães.

No que diz respeito ao texto kleiniano, tenho por ele o mesmo respeito que tenho por autores malditos como Baudelaire, Poe, De Quince, George Bataille ... pois poucos são os autores malditos em psicanálise que falaram do ódio com tanto vigor. Sei, que ler textos malditos é um trabalho árido. Também sei que, com a chegada dos comentários de Jacques Lacan (talvez o mais maldito dos malditos, a própria maldição!) desejar conhecer o texto de Klein tornou-se quase um sinal de fragilidade cognitiva - para não dizer de estupidez ou burrice. Quanto mais apreciá-lo?! No entanto, aqui estamos reunidos, para, mais uma vez, lembrar a todos que a velha está viva e, infelizmente para alguns, goza de boa saúde. Deve ser a questão do gozo! Imagino.

Porém, como ninguém escolhe o destino (e, eu não menos!), acabei tendo em minhas mãos hoje a incumbência da leitura e da transmissão de um texto de Winnicott que fala sobre a mente e sua relação com o psique-soma, texto que ‘estranhamente’ coloca a consecução (ou a busca compulsiva) de um ambiente perfeito como condição para a obtenção da saúde mental humana, isto é, Winnicott espera, propõe e exige que um ambiente estável, produzido pela devoção de uma mãe suficientemente boa, seja confeccionado. Curioso esse fato!

No entanto, a coisa mais curiosa, foi, constatar minha ilusão de menino (e, note-se, a antítese da paranóia, em Winnicott, é a ingenuidade). Então pensei que, ao inscrever-me no Congresso-Winnicott, tivesse ido a um lugar, reduto de pares, e que jamais ninguém iria começar uma conversa falando contra o - famigerado!!! - estilo kleiniano de fazer ciência e burrice.

Mas, qual nada, esfolaram a velha pela milésima vez. A "tripeira genial", na festinha do Winnicott, era churrasquinho servido como texto teórico, e nós, no café - bebida tão brasileira! -, a vomitávamos.

Pela milésima vez se falou contra o instinto de morte, contra o solipsismo (em sua dupla face de narcisismo - a única realidade no mundo é o eu - e solidão) do bebe kleiniano - bebe sem mãe -, e de como, na teoria dela, as forças criativas, no lugar de representarem a presença das forças da vida, eram meros efeitos reativos ao desespero causado pelo temor da morte. A fraca teoria da reação diante da morte, teoria da defesa maciça (que também foi malhada por ‘freudianos’ e ‘companhia bela’), era, mais uma vez, evocada e ficava completamente empalidecida no que lhe seria próprio. Mais uma vez, a força trágica do pensar de Melanie Klein ficava esmaecida e desbotada, pobre portanto, perdendo-se o centro da idéia da morte, isto é, a morte como a marca da incapacidade de pensarmos o ser, ou da morte como sendo a impossibilidade de pensarmos o pensar e o luto que este último arrasta com ele como presença de um inevitável insuportável: a transitoriedade, o devir. Sem a morte perdia-se um bom ângulo para a compreensão do funcionamento militar da mente, isto é, as característica humanas que melhor se observam no mundo dos insetos. Perdia-se também, a idéia de um homem lógico mas não lúdico, homem sem graça e sem nada a agradecer. Com isso, deixava-se de lado a questão da violência como a manifestação de um vazio depressivo profundo, deixava-se de lado a vulgarização de si e do outro como sinal do cinismo do bebê diante do seio, a obscenidade, a pornografia, o silêncio do ser, o nada mecânico do esquizofrênico, o inexplicável desesperadamente buscado do neurótico obsessivo, para, em seu lugar se falar de criatividade impiedosa, fazendo do violento a busca de uma subjetividade que seria a expressão última do gesto de curiosidade, vivido enquanto falha ambiental.

Comparar autores. Aí tecemos nossos problemas e perdemos o melhor dos homens que pensam. Perdemos o próprio pensamento, as relações, os ganchos, as conexões, as discussões, as reverberações de uma obra dentro da outra obra. Em uma palavra, perdemos o bailado da ‘coisa-pulsional’, perdemos a escuridão imaginativa de ventres e tetas cheios de horror, e substituímos tudo isso pelo gesto espontâneo e sutil da procura de algo que nos dê alguma consistência, algum peso existencial no encontro brutal do humano com outro humano. A mãe suficientemente má, deveria ser morta... O bebê violento substituído, e a questão da morte e do dano interno causado pela inveja primária, silenciado com ela.

O texto kleiniano é triste, é soturno, é quase póstumo, ou, o que é pior, é moribundo. Está adoecido, está possuído, está soterrado pela dor do desamparo. Não é possível comparar a vivacidade espiritual de Winnicott, às vezes em sua aparência quase ingênua, com a dureza melancólica e germânica do texto triste que Melanie Klein escreve. Klein escreve sobre o superego, sobre o ódio básico do ideal em relação ao sujeito. Ódio ancestral do sujeito por si mesmo.

E nós, em nossa função de psicanalistas que pretendem transmitir um ofício que implica em um contato com a palavra profunda do ser, julgamos que, somente nessa visão exagerada e trágica, é que se pode compreender melhor o que Winnicott quis dizer quando afirmou que a mente é o sinal do desastre ambiental que precede a chegada da psique no soma, e que talvez deixa seu rastro indelével manifesto como doença mental. Longe de ser sexual, a excitação traumática é a insuportável visão do belo que, pela presença da inveja, não poderá jamais ser admirado. Sorte é pra quem tem!

 

III - A mente e a falha ambiental (esta parte do texto dirige-se especificamente ao trabalho de hoje)

1) Bem, como falar de Winnicott sem pudores?. Sem a vergonha necessária e própria a quem se sente encantado? Ele é direto, firme e muito envolvente em sua fala que parece sempre buscar a verdadeira sabedoria, a força, o compromisso e a sinceridade. Seus textos buscam a simplicidade - uma espécie de verdade íntima, é, certamente o Gaston Bachelard da psicanálise - e isso é tocante. Escritos dessa forma nos fazem mais próximos e companheiros de quem escreve pois podem dar abrigo aos erros contínuos nas ações de quem está trabalhando e contempla a irracionalidade natural da relação analítica. Na leitura, estamos sempre incluídos na mente de Winnicott e parece que ele não faz esforço para viver e compartilhar essa experiência de generosidade que é a descoberta contínua de sua clínica. Ele é exigente, é claro, faz sempre questão de se dar o trabalho com o que quer que seja, e dar o melhor de si próprio ao mínimo que alguém lhe possa exigir. Busca, incansável, o que há de melhor no homem, busca, seja em nossa verdade ou em nossa dúvida qualquer forma, qualquer vestígio de nosso verdadeiro eu. Como se ele acreditasse que, de alguma forma, já fôssemos capazes de tomarmos nosso ser com as mãos e pô-lo nas mãos dele. Suas queixas, suas críticas, suas objeções, sua densa ‘pensação’-clínica, transmitida em meio aos truncados relatos de casos, são gestos sofisticados de reflexão. Gestos de quem está buscando algo mais que o próprio gesto, gestos de quem sabe o que quer falar e contra o que quer se opor. Talvez, na verdade, parece estar buscando a virtude desse gesto e exigindo que o outro busque a mesma virtude. Roçando o coração, a beleza e a devoção, tenta reafirmar que, para estarmos vivos e saudáveis, a ausência da falsidade no gesto é a condição indispensável para a profunda relação com nosso eu.

Nada é mais apaziguante que ler alguém que nos quer devolver a devoção e a esperança, mescladas à verdadeira força psíquica do homem.

Além disso, ler Winnicott implica em ler um depoimento sobre o trabalho de psicanalista que se dirige basicamente aos médicos, aos próprios psicanalistas e às mães - sem que aí haja uma ordem hierárquica. Fala como pediatra que atende crianças com suas mães nas mais diferentes situações, fala como analista que atende casos ‘borderlines’, psicanalistas e alguns psicóticos, e fala também como quem transmite a psicanálise aos inseguros alunos ingleses que querem ser o ego ideal da instituição psicanalítica inglesa, e, lastimavelmente, acabam só cometendo os mais diversos equívocos, pois confundem uma técnica ideal, com um jeito ou com ‘o’ manejo próprio a uma situação dada. Nesse sentido às vezes ele comentava:

a) Carta à Melanie Klein, 17 de novembro de 1952: "Eu disse que o que estou fazendo é irritante, mas acho que também tem seu lado bom. Em primeiro lugar, não há pessoas criativas na Sociedade, tendo idéias pessoais e originais. Acho que qualquer um que tenha idéias é realmente bem-vindo, e sempre sinto que sou tolerado na Sociedade porque tenho idéias, embora meu método seja irritante. Em segundo lugar, acho que em você há uma atitude equivalente ao meu desejo de dizer as coisas a meu modo, isto é, uma necessidade de que tudo o que é novo seja reafirmado nos seus próprios termos."III (grifo meu)

b) "Por exemplo, fui agredido fisicamente por um paciente. O que eu disse não é publicável. Não foi uma interpretação mas uma reação ao evento. O paciente atravessou a linha profissional e chegou muito perto do meu eu de verdade, e acho que pareceu real para ela. Mas uma reação não é o mesmo que contratransferência."IV (1960)

Assim, encontramos em toda a sua escrita, falas como essas sendo dirigidas a todos os que leram e ainda lêem seus textos, marcando aquilo que tantos já disseram sobre Winnicott e que Masud Khan sintetizou de modo singular e preciso: "Não conheci nenhum outro analista mais inevitavelmente ele mesmo. Foi esta qualidade de ser inviolavelmente eu-mesmo que lhe permitiu ser tantas pessoas diferentes para criaturas tão diversas. Cada um de nós que o conheceu tem o seu próprio Winnicott e ele jamais desrespeitou a versão que o outro tinha dele, afirmando seu próprio estilo de ser. E, contudo, permaneceu sempre e inexoravelmente Winnicott."V

2) Do ponto de vista da teoria, vale a pena destacar alguns pontos. Passarei a comentá-los do modo como eu os entendi e não tenho nenhuma intenção de fazer-me um fiel da cartilha rezada pelos winnicottianos, isto é, não pretendo que meu comentário ultrapasse as fronteiras do que li, e daquilo que na leitura me encantou, sempre odiei a escola, o que dirá às escolas!

Afirmação 1 - a mente - : Quando o ambiente fracassa, a mente se constitui. Em outras palavras, a mente nasce de um fracasso do ambiente. As vezes é bom que isso aconteça, pois "é a compreensão do bebê" aquilo que "livra a mãe da necessidade de ser quase perfeita"(idem, p. 413). No entanto, Winnicott raciocina em termos de "um desenvolvimento saudável" e isto implica que, para haver um bom funcionamento da unidade complexa "psique-soma" é necessário também que a "continuidade de existência não seja abalada" pelo ambiente. Porém, para que a continuidade da existência não seja abalada é necessário, assim pensa ele, que se crie e se sustente um ambiente quase "perfeito"VI. Este ambiente resume-se na devoção da mãe: "Pode-se eliminar o sentimentalismo da palavra ‘devoção’ e utilizá-la para descrever a característica essencial sem a qual a mãe não pode dar sua contribuição, uma adaptação sensível e ativa às necessidades de seu bebê, necessidades que no início são absolutas. Esta palavra, devoção, também nos lembra que, para sair-se bem na sua tarefa, a mãe não precisa ser inteligente."(idem, p 376) [grifo meu]

Toda vez que uma falha ambiental se coloca em curso, a mente deve prover, por um esforço de compreensão feito pela mente (que envolve todo um processo de catalogação e memória), aquilo que o ambiente deveria já ter percebido e corrigido ativamente. Nesse sentido, então, a função da mente encontra suas raízes nas oscilações do ambiente que ameaçam a continuidade de existência do psique-soma. Em outras palavras, a mente vem ocupar - lamentavelmente, segundo Winnicott - o lugar privilegiado da mãe. Ou seja, quando falha o ambiente a mente torna-se a mãe do bebê evitando com isso que ele possa receber qualquer ajuda, específica ou circunstancial, do próprio ambiente o qual agora é considerado como um inimigo ou como uma ameaça: "Sinto que a necessidade do indivíduo de localizar a mente na cabeça por ser ela um inimigo, isto é, para controlá-la, é um ponto importante. Um paciente esquizóide me diz que a cabeça é o lugar onde se pode pôr a mente porque, como não se pode ver a cabeça, ela não existe de maneira óbvia como parte de nós mesmos." (idem, p. 415).

Winnicott deixa bem claro que, atividades mentais como a catalogação e a memorização são um "empecilho para o psique-soma, ou para a continuidade da existência do ser humano que constitui o self."VII (idem, p.416). Por outro lado, nos faz notar que o uso da memória e da construção de uma ordem cognitiva de apreensão do que está acontecendo na vizinhança - a catalogação - pode ser uma ação benéfica desde que dure apenas o suficiente para dar conta momentaneamente de uma desordem ambiental, mas mesmo assim ele afirma: "trata-se de uma maneira especialmente falsa, (pois) o indivíduo passa a se sentir responsável pelo meio ambiente mau pelo qual, na verdade, ele não foi responsável, e pelo qual ele poderia (se soubesse) culpar o mundo, que perturbou a continuidade de seus processos inatos de desenvolvimento antes que o psique-soma tivesse se tornado bem organizado o suficiente para odiar ou amar. Em vez de odiar esses fracassos do meio ambiente, o indivíduo deixa-se desorganizar por eles porque o processo existiu antes do ódio."VIII (idem, p.416)

Fico por aqui.

Afirmação 2 - a psique - : a definição de psique em Winnicott é bastante interessante, refere-se a uma potência para o trabalho psíquico e a uma capacidade própria do homem em poder conceber-se enquanto tendo um corpo. Ele diz: "Suponho que a palavra psique aqui signifique a elaboração imaginativa de partes, sentimentos e funções somáticas, isto é, da vivência física."IX (idem, p. 421) Além disso a possibilidade de sentir o corpo vivo implica em um desenvolvimento gradual da relação mútua entre psique e soma, e isto forma "o cerne do self imaginativo", que pode a qualquer momento ser perturbado, apresentando estados de não-integraçãoX que fazem o mundo todo parecer irreal.

Porém, o que mais chamou minha atenção no que diz respeito a essa questão da psique-soma, foi uma outra afirmativa. Esta, sem dúvida, deixou-me pasmado. Simplesmente transcrevo o trecho que tomei emprestado de um trabalho de José O. Outeiral citando Winnicott: "Pode haver fases nas quais não é fácil para o bebê retornar ao corpo, como, por exemplo, ao acordar de um sono profundo. As mães sabem disso e acordam gradualmente o bebê antes de levantá-lo para não causar os berros de terror ou pânico que podem ser motivados por uma mudança de posição do corpo em um momento em que a psique está ausente dele. Clinicamente, associada a esta ausência de psique, pode haver palidez, ocasiões em que o bebê está suando e talvez esteja muito frio, e também pode ocorrer vômitos. Neste momento, a mãe pode pensar que seu bebê está morrendo, mas, quando o médico chega, houve um retorno à saúde normal e ele é incapaz de entender porque a mãe ficou tão assustada.(The first year of life: modern views on the emotional development, 1958)"XI

Afirmativa corajosa para ser feita no meio analítico (a psique nem sempre está em contato com o corpo) arrasta-nos às lembranças dos nossos inícios como pais e ao manejo de situações graves na clínica, que envolvem um outro tipo de intervenção diferente da interpretação tradicional. Ou seja, a questão da "regressão completamente controlada" (idem, p. 416) em análise e a questão do holding ("ela não teria conseguido agüentar a reencenação se sua cabeça não tivesse sido segurada."[idem, p 418]).

O corpo nem sempre pode ser a morada da psique, ou o lugar onde ela possa estarXII. Sendo assim, analista e paciente devem recuperar a força dos xamãs de Levi-Satrauss e, com as forças da eficácia simbólica ‘re-costurar’ (como fez Wendy em Peter Pan) o espírito ao corpo, possibilitando que "o corpo todo se (torne) o lugar da residência do self."XIII

Afirmação 3 - o soma - : Winnicott diz: "suponho que ela agora estaria preparada para localizar a psique onde quer que o soma estivesse vivo" (idem, p.422), e, mais a frente: "A elaboração imaginativa da experiência somática, a psique, e para aqueles que usam o termo, a alma, depende do cérebro intacto, como sabemos. Não esperamos que o inconsciente de alguém saiba tais coisas mas sentimos que o neurocirurgião deveria até certo ponto ser afetado por considerações intelectuais."XIV (idem, p. 424)

Mais um ponto importante é a abertura que estas idéias dão à questão psicossomática, cito mais uma vez, em sua mira certeira, outro trecho de texto: "Nesses termos, podemos ver que um dos objetivos da doença psicossomática é atrair a psique para longe da mente, de volta à associação íntima original com o soma. Não é suficiente analisar a hipocondria do paciente psicossomático, apesar desta ser uma parte essencial do tratamento. Deve-se ser também capaz de ver o valor positivo da perturbação somática no seu trabalho de neutralizar uma ‘sedução’ que a mente exerce sobre a psique.’XV (idem, p. 424)

Bem ...

Afirmação 4 - o espaço - : esta - última - discussão deixo-a em aberto para um outro texto e para um outro tempo, apenas gostaria de frisar que, num golpe só a idéia de espaço potencial estraçalha com a questão sujeito-objeto, dando-lhe uma outra e nova dimensão. O espaço potencial é o espaço para o acontecimento do ser. Aqui a filosofia acaba ganhando muito mais terreno sobre a psicanálise, como sempre deveria ter sido, creio, apesar das queixas irritadas de Freud.

Emir Tomazelli

  1. Winnicott, Doanld, W. O Gesto Espontâneo, tradução de Luís Carlos Borges, São Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 30
  2. O ‘estranho’, em português; the uncanny, em inglês [very strange or mysterious; not natural or usual - Longman/ dictionary of contemporary english -]
  3. Winnicott, Donald O Gesto Espontâneo, tradução de Luís Carlos Borges, São Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 30.
  4. Copiado do textos expostos na biblioteca do Instituto de Psicologia da USP no dia do evento.
  5. Winnicott, Donald Textos selecionados - da pediatria à psicanálise, tradução de Jane Russo, Rio de Janeiro, F. Alves, 1978, p. 7.
  6. Outeiral, J.O. (organizador)  Donald W Winnicott: estudos, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991, p.128.
  7. Winnicott, Donald Textos selecionados - da pediatria à psicanálise, tradução de Jane Russo, Rio de Janeiro, F. Alves, 1978.
  8. Idem, ibidem.
  9. Idem, ibidem.
  10. Várias vezes representados por falas detalhadíssimas dos fatos do final de semana, que deixam o cliente satisfeito e no entanto o analista completamente desgostoso [ver idem, p.275])
  11. Outeiral, J.O. Donald W Winnicott: estudos, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
  12. ... “o corpo todo se torna o lugar da residência do self.”  [Outeiral, J.O. Donald W Winnicott: estudos, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991, p. 8.]
  13. Outeiral, J.O. Donald W Winnicott: estudos, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991, p. 8.
  14. Winnicott, Donald Textos selecionados - da pediatria à psicanálise, tradução de Jane Russo, Rio de Janeiro, F. Alves, 1978.
  15. Winnicott, Donald Textos selecionados - da pediatria à psicanálise, tradução de Jane Russo, Rio de Janeiro, F. Alves, 1978

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