Volume 5 - 2000
Editor: Giovanni Torello


Junho de 2000 - Vol.5 - Nº 6

No Paiz dos Yankees

‘Eu chamo de USP, onde quer que eu vá…’

Dr. Erick Messias

A observação me pegou de surpresa. USP? O que essa paciente nascida e criada em Maryland, com um transtorno de personalidade severo, inúmeras e prolongadas internações psiquiátricas, queria de dizer com USP?

‘Universidade Sheppard Pratt’ explicou. Para ela, o tempo de internação e tratamento no hospital Sheppard Pratt, em Towson, servira como uma formação acadêmica, um aprendizado de vida, segundo as palavras dela mesma. Saindo de um tratamento trágico com o psiquiatra da pequena cidade na costa oriental, tratamento q possivelmente incluiu abuso sexual, essa paciente passou anos internada no Sheppard Pratt para lidar com os fantasmas de seu passado. Aqui no hospital ela aprendeu coisas q crianças assimilam de seus pais normalmente ao crescer. Aqui ela começou a confiar, estabeleceu laços humanos, baseados em algo alem de imediata e egoísta gratificaçao do outro, aqui ela recebeu atenção e cuidado. Olho para ela novamente e lembro de seu pesado prontuário: dois volumes somente para o tratamento ambulatorial depois de sua ultima internação, ha mais de 10 anos. No arquivo do hospital encontro mais prontuários acerca de suas internações. De um modo geral, mais terror. Depois de uma tentativa de suicídio q a deixou a beira da morte, ela foi transferida d sua cidade natal para a rede psiquiátrica de Baltimore. A partir dai, sofrimento, tentativas e recorrências – agora longe da família e de seu terapeuta-sedutor. Sua marca principal era auto mutilação. Ela utilizava qualquer coisa para se ferir, se cortar, deixar o sangue vermelho escorrer quente pelo corpo para, segundo ela, sentir algo. Nos resumos de alta podemos sentir o pessimismo dos psiquiatras: prognostico, regular. Mas durante essas internações e tratamentos e tentativas, ela sobreviveu. E mais ainda, melhorou. Quando comecei a vê-la ha um ano, não se cortava e ha mais de 10 anos não era hospitalizada.

Sempre fui curioso acerca do seu processo de desenvolvimento – não aceito cura como um bom substantivo aqui. Depois da ultima internação no Sheppard ela começou a ser seguida semanalmente por uma residente. Dai foi passando pelos diversos estágios: hospital dia, casa do meio do caminho, morada protegida. Também passou por diversos residentes. Devo ser o sexto da lista. Ela descreve o divisor de águas de sua vida assim:

"Era noite e chovia. Eu estava triste e sozinha. Comecei a caminhar pela casa impaciente e apesar da chuva decidi sair. Cruzei a rua e me vi em frente à Igreja X. Entrei, havia missa e o sentimento q me invadiu mudou minha vida. Encontrei Deus’".

Para um ateu militante, recém convertido a cristão tímido, aprendiz de terapeuta e psicofarmacologo como eu, o susto foi grande. Suspirei fundo, pensei, procurei entender o q a paciente dizia, mas onde entrava a tal USP? Onde estava o mérito do hospital e do esforço terapêutico?

"Eu chamo de Universidade Sheppard Pratt pq me ajudou a entender coisas q eu não sabia e também pq me protegeu quando eu precisava de abrigo, sem a USP eu não teria sobrevivido para encontrar Deus’".

É importante notar q a Igreja X é uma igreja católica de Baltimore, e a paciente fora criada como protestante. Essa diferencas e sua escolha tiveram repercussoes no seu relacionamento familiar. Mas, dinamicas familiares à parte, a paciente tem mostrado uma mudanca consideravel no seu comportamento. Obviamente, nem tudo são rosas. Seus sonhos de se tornar uma enfermeira para ajudar pacientes foram derrotados por um câncer de mama quatro anos atrás, sua vontade – segundo ela necessidade – de ser mãe não se concretizou, mas hoje ela mantém uma casa, viaja pelos pais com seu marido a negócios e atualmente vem a clinica para uma sessão semanal de terapia com uma psicóloga. Durante esse ano a vi algumas vezes mensalmente, algumas vezes semanalmente para revisão de medicação, ajuste de doses e aconselhamento. Ainda assim a impressão que ela me deixou foi profunda. Numa de nossas conversas quis saber acerca da experiência dela com psicoterapia.

‘Dr Messias, estou em terapia ha 32 anos’

Pensei assustado que ela tem mais anos de terapia que eu de vida. São lições de humildade assim como aprendizado do que a psiquiatria pode oferecer de bom aos pacientes. Assusta ver colegas presos ao fetichismo da pílula, assim como supervisores cegos pela psicanálise. Minha paciente me ensina serenamente, que a psiquiatria, enquanto combinação de técnica terapêutica, uso consciente de medicação e abertura para um contato humano pode prover mais que a fé cega a cada escola individual.


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