Volume 4 - 1999 Editor: Giovanni Torello |
Fevereiro de 1999 - Vol.4 - Nš 2 Resenha de Livros e Comentários * Psicanalista e Escritor. Formou-se em Medicina em Fortaleza em 1970, ano em que veio para São Paulo. Fez sua formação analítica no Instituto Sedes Sapientiae, no Curso de Psicopatologia e Psicoterapia Psicanalíticas (atualmente "Formação em Psicanálise"), onde foi professor e supervisor de 1980 a 1992. Tem colaborado em vários jornais e revistas e é autor de um livro MERGULHADOR DE ACAPULCO (Imago Editora). A História da Psiquiatria nos mostra como somente
no final dos séculos XVI e XVII firmou-se a idéia
de que os distúrbios psíquicos tinham causa natural,
o que levou a um abandono das explicações sobrenaturais
advindas das crenças mágicas e religiosas. O louco
deixa de ser um "possuído pelo demônio",
sai do campo da religião e recebe seu estatuto de doente,
fica sob o poder dos médicos. Lemos agora no "Estadão" (27/1/99) que
a Igreja Católica finalmente revisa seu manual de exorcismo,
que se mantinha inalterado desde 1614. O manual reafirma o poder
do Demônio e relembra sinais mais evidentes de possessão
- o possuído "fala línguas desconhecidas, evoca
coisas ocultas, mostra força física incompatível
com idade e saúde, exibe veemente aversão a Deus,
à Virgem e à Cruz". A grande novidade é
a recomendação de alerta aos exorcistas para que evitem
confundir distúrbio psíquico com possessão
demoníaca. Em caso de dúvida, os exorcistas devem
recorrer à opinião dos psiquiatras. Quase quatrocentos anos foram necessários para que
a Igreja reconhecesse, ainda que parcialmente, que alguns "possuídos"
podem estar em surto psicótico. Aí se vê bem
a extrema resistência da Igreja em assimilar conhecimentos
que coloquem em questão seus dogmas. O que não é
de admirar se levarmos em conta que o pensamento religioso é
absoluta e efetivamente incompatível com o pensamento científico. Como se sabe, em O FUTURO DE UMA ILUSÃO Freud analisa
o sentimento religioso e suas implicações individuais,
sociais e culturais. Continua sendo um texto extremamente atual
e sua leitura cada vez mais imprescindível, nestes tempos
onde grassam os fundamentalismos e os misticismos das mais variadas
laias. - Em 1976, a China estabeleceu uma política de controle
demográfico que permite aos casais uma única gestação,
a criação de um único filho. Tal política
tem tido efeitos sociais gravíssimos: 111 milhões
de chineses jamais casarão, 6 milhões de meninas chamam-se
Lai-di ou Ziao-di("chame por um irmão", "traga
um irmão"), e - o mais chocante - a prática sistemática
do infanticídio das crianças do sexo feminino, o abandono
de mais de 1 milhão de meninas recém-nascidas cada
ano (Folha de São Paulo, 11/1/99). Anatomia é o destino,
disse Freud, para enfatizar os efeitos determinantes que as diferenças
anatômicas entre os sexos exercem sobre a nossa constituição
como sujeitos humanos. Cada cultura, cada sociedade elabora esta
diferença de maneira específica, prescrevendo condutas
e papéis adequados para cada sexo. Ao sexo biológico
com o qual se é dotado ao nascer, soma-se o complexo processo
de identificação e estruturação psiquicas,
cujos pontos culminantes são o Complexo de Édipo e
o Complexo de Castração, que farão, no melhor
dos casos, coincidir o sexo psicológico com o biológico.
Anatomia é o destino. Os acontecimentos na China confirmam
de forma dramática a frase freudiana. MENTES EM FÚRIA - Alguns comentários
sobre dois livros. Perplexo, o personagem se apercebe das transformações
que nele provocam a medicação. Até então
entendia a depressão como uma característica de seu
caráter e modo de ser, um traço de sua personalidade.
Ela adviria de todas as experiências de sua vida, de seu passado,
de sua história. Toda a cultura, toda a literatura e a psicanálise
o tinham feito pensar assim (pg. 59/60). Muitas vezes valorizara
sua melancolia como um refinado filtro com o qual enxergava o mundo,
expressão de dotes artísticos e filosóficos,
pressuposto para uma produção intelectual de nível,
selo que marcava sua superioridade sobre o resto da massa. O desaparecimento da depressão com a medicação
desencadeia no personagem uma forte crise de identidade, um questionamento
radical sobre si mesmo. Sente-se perdido, com a sensação
de um "completo desapossamento de si mesmo" (pg 151).
Seria ele ainda o mesmo? Se tudo não passa de uma questão
de dosagem de serotonina, que fim levaram sua filosofia, a psicanálise,
sua própria vida? Estaríamos vivendo a quarta quebra
do narcisismo do homem? Seria este o advento do "homem-glândula"? Como uma fábula moral, o livro de Teixeira Coelho
antevê um mundo futuro onde as subjetividades estarão
ausentes. Na medida em que as drogas neuroquímicas se mostram
tão potentes e capazes de controlar e modelar as reações
emocionais, que importância ainda teriam as experiências
pessoais únicas e intransferíveis decorrentes da vida,
do passado, da história vivida por cada um, aquelas que estruturam
a própria personalidade? As pessoas seriam facilmente controladas
- por si mesmos, pelos outros - através das drogas neuroquímicas.
A ILHA DE MOREL, de Bioy Casares, lembrada com uma certa minudencia,
parece indicar isso. Uma leitura mais detida levanta algumas questões.
Chama atenção a forma como está construído
o personagem. O autor nos priva de qualquer informação
sobre sua história, seus planos, seus sonhos, seus sofrimentos
e satisfações. Sequer ficamos sabendo seu nome. É
designado apenas como "ele". Tudo o que ficamos sabendo
a seu respeito é o que foi explicitado acima - a crise existencial
na qual incide ao constatar a remissão de sua depressão
e as mudanças daí decorrentes. Se é verdade que o autor parece deplorar o enfoque
que reduz o homem à sua biologia, a mero produto de suas
secreções glandulares, pareceria legítimo esperar
- para ter uma coerência interna - que mostrasse a falácia
de tal postura fazendo seu personagem expor uma larga e complexa
história, um passado pleno, reafirmando - através
da Literatura - que o destino humano transcende a biologia e se
realiza na História e na Cultura. Ao recusar-se terminantemente
a dotar seu personagem de um passado e uma história (que,
diga-se de passagem, dar-lhe-ia mais consistência e veracidade),
parece incorrer no mesmo erro que deplora. Em função dessa ambivalente contradição,
faz seu personagem oscilar permanentemente entre uma lamentação
pela perda dos valores psicanalíticos (pg 59), que permitem
um entendimento do psiquismo diferente daquele proposto pelo enfoque
"glandular", e um sentir que tal perda é uma libertação,
pois "detesta as imagens psicanaliticas repisadas" (pg
39), recusa-se a "ajustar-se para suportar o mundo que a psicanálise
oferecia" (pg 104). Ao mesmo tempo que "ele" fica
perplexo com a redução à biologia feita pelo
psiquiatra, ele mesmo se recusa a enfrentar seu passado, a tentar
entender sua depressão dentro do referencial existencial,
vivencial. Diz várias vezes que "detesta" o passado
(pg 134), que ele é "insuportável", "inaceitável"
(pg 34), gera uma "culpa nunca ultrapassada" (pg 88),
tem que "ser enterrado" (pg 140). A atitude do personagem poderia ser usada como um exemplo
de resistência através das defesas de racionalização
e intelectualização. Por outro lado, suas negações
apenas reafirmam a extraordinária importância do passado
como fator determinante de seus afetos, pois se o mesmo lhe é
tão insuportável é por manter uma condição
dolorosa e atual em seu psiquismo. Essa escolha do autor resulta um empobrecimento do personagem
e do próprio entrecho ficcional, pois na medida em que "ele"
não pode explicar ou compreender seu estado em função
de suas vivências, de sua história, resta-lhe fazer
magras especulações sobre as relações
existentes entre depressão e os trabalhos criativos, a escrita,
a música, o cinema, a pintura. O interessante é que, apesar de tudo, "ele"
termina por dar algumas pistas deste passado "insuportável"
quando fala da "seriedade infantil" elogiada pelos pais,
máscara que assume para agradá-los e que se lhe gruda
na face (pg 130). Em poucas palavras se insinua aí o drama
constitutivo de todos nós, a máscara decorrente da
alienação no desejo do Outro, a presença dos
pais e a infância, o eventual perder-se nas fúrias
de uma relação edipiana passional. É necessário dizer que "ele" tem
sobre a psicanálise uma visão não só
ambivalente como não muito clara. Considera-a como um "esforço
místico" (pg 97) ou "poético" (pg 115),
afirmações que teriam feito Freud tremer na tumba.
Confunde-a com mera catarse (pg 133), promotora da "realização
dos sonhos infantis" (pg 115). Não tem idéia
da dimensão trágica introduzida por Freud ao postular
a existência e a força determinante do Inconsciente,
que acorrenta o homem à recorrente compulsão à
repetição. A perplexidade que acomete a "ele" ao melhorar
com a medicação, se não é uma novidade,
não deixa de ter pertinência. Há muito a ciência
e a filosofia mostram que a apreensão da realidade é
algo complexo, irredutível a uma mera questão de percepção
sensorial. A isso a psicanálise acrescenta a questão
do desejo inconsciente, que deforma e distorce a realidade - radicalmente
na psicose e de forma mais benigna na neurose. Muito já foi
dito sobre o mundo próprio da paranóia, da melancolia,
da histeria, da obcessividade, da perversão, etc. É possível que uma medicação
adequada, ao retirar um sintoma depressivo crônico, faça
uma pessoa ver a vida com novos olhos. Por outras vias, não
deixa de ser este também o efeito de boa análise,
ao proporcionar ao analisando o entendimento e a superação
dos fantasmas que o envolvem, causando uma sintomatologia penosa
(angústias, fobias, depressões, etc), inibindo ou
dificultando o uso de seus potenciais. Misto de ensaio e ficção, AS FÚRIAS
DA MENTE, de Teixeira Coelho, trata pois de assunto muito atual.
Capta alguns impasses existentes trazidos pela desenvolvimento da
neurociência, cuja ênfase excessiva empobrece a abordagem
psiquiátrica, fazendo-a ignorar a dimensão histórica
e simbólica do ser humano, a construção da
subjetividade, com suas determinações conscientes
e inconscientes. Mas esse é um problema que transcende a
literatura, não é o que importa ao autor. A leitura de AS FÚRIAS DA MENTE provoca uma reação
curiosa. Suscita algumas vezes a lembrança das narrativas
moldadas dentro do figurino do "nouveau roman". Ficamos
restritos a uma minuciosa descrição da superficie
da mente do personagem, sem o autor nunca ousar mergulhar em águas
profundas, na história, no passado, nos projetos, nos sentimentos
e afetos, nos sonhos, nos conflitos, elementos que comporiam um
enredo, uma trama. Por isso mesmo, causa uma certa frustração,
pois em nenhum momento somos efetivamente confrontados com as "fúrias
da mente" prometidas no título. Se não vemos as "fúrias da mente"
no personagem "ele", inteiramente aprisionado em infindáveis
e estéreis cavilações obcessivas, em contrapartida
elas são muito visíveis em CONCEBIDO COM MALDADE,
livro de Louise DeSalvo recentemente lançado pela Record
- 1998. Em CONCEBIDO COM MALDADE a autora analisa quatro obras
literárias: "The Wise Virgins" de Leonard Woolf,
"Women in love" de D.H Lawrence, "The Antiphon"
de Djuna Barnes e "Crazy Cock" de Henry Miller. "The Wise Virgins" foi a vingança ciumenta de Leonard Woolf contra o grupo incestuoso e promíscuo de Bloomsbury, que o esnobava enquanto judeu pobre de família pouco refinada. O livro provocou a primeira e séria tentativa de suicídio de Virginia Woolf. Com "Women in love", D.H. Lawrence, preso a intensos conflitos depressivos, faz fulminante ataque a Lady Ottoline Morrell, a quem devia muitos favores. "The Antiphon" é uma tentativa de Djuna Barnes de exorcisar os chocantes abusos sexuais e emocionais que lhe foram infrigidos por sua família psicótica durante toda sua infância e juventude. Em "Crazy Cock", Henry Miller também tenta elaborar os abusos sexuais dos quais fora vítima e sair da relação psicótica com a mãe, projetada em sua amante June. As idéias de DeSalvo são uma aplicação às vezes um tanto simplificada de aspectos da teoria psicanalítica sobre a gênese da obra de arte, da literatura. É grande a bibliografia psicanalítica sobre as vinculações entre vida e obra do escritor, forjando novas ferramentas para a compreensão, a crítica, e a análise da produção literária. Relações primárias familiares, laços
de sangue, amores, ódios, ciúmes, invejas, fortes
pulsões sexuais, intensos sentimentos e desejos geradores
de conflitos e culpas - são estas as efetivas "fúrias
da mente", matéria prima que após o processo
de sublimação dará origem às obras literárias.
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