Volume 4 - 1999
Editor: Giovanni Torello


Outubro de 1999 - Vol.4 - Nº 10

Transtorno de personalidade paranóide. Uma revisão.

Paranoid Personality Disorder. A Review.

Guilherme Rubino de Azevedo Focchi
Psiquiatra - Médico Colaborador do Instituto de Psiquiatria da Faculdadede Medicina da Universidade de São Paulo.

José Carlos Ramos Castillo.
Médico Assistente do Instituto de Psiquiatria da FMUSP
Supervisor dos residentes. Residência Médica - IPQ - HC - FMUSP
Membro da Comissão de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Instituto de Psiquiatria - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rua Ovídio Pires de Campos, s/n. CEP 05403-010, São Paulo, SP. Tel/Fax (011) 852-9029.

Endereço para correspondência:
Guilherme Rubino de Azevedo Focchi
Rua Napoleão de Barros, 167 - Vila Clementino. CEP 04024 - 000. Tel: 5712569.

                           

Resumo

Os autores, partindo do conceito de Personalidade, fazem uma revisão sobre o Transtorno de Personalidade Paranóide, desde seus aspectos históricos até o diagnóstico e a terapêutica. São apresentados casos ilustrativos.

Palavras - chave: Personalidade.Transtorno.Paranóide.Diagnóstico. Tratamento.

Abstract

The authors, beginning with a discussion about the concept of Personality, review the Paranoid Personality Disorder, its diagnosis and treatment. Typical cases are presented.

Key - words: Personality.Disorder. Paranoid. Diagnosis. Treatment.

                    "Ela nunca confiava em ninguém, e por mais nobres que fossem as intenções, sempre suspeitava nelas motivos mesquinhos ou baixos e fins egoístas."

                        Tchecov, A Esposa

                         

Personalidade é um dos conceitos mais complexos em Psiquiatria (WANG E COL., 1995). Constitui a essência do indivíduo, determinada multifatorialmente e percebida pelo meio (ALPORT, 1966; WANG E COL., 1995). É composta pelo caráter - seus aspectos cognitivos - e pelo temperamento - seus aspectos afetivo-conativos (PETERS, 1984).

Transtornos de Personalidade são variações extremas da normalidade, causando prejuízo no funcionamento do indivíduo, má adaptação social e sofrimento subjetivo (WANG E COL., 1995). Para muitos, o Transtorno de Personalidade não existe, devendo-se eliminar o conceito por ser teoricamente insatisfatório, confuso na prática e cientificamente nocivo (KAUFMAN, 1980).

Aqui, será abordado especificamente o Transtorno de Personalidade Paranóide, seu diagnóstico e terapêutica.

O Transtorno de Personalidade Paranóide pode ser definido como entidade patológica distinta, que independe da cultura e do grupo em que o indivíduo está inserido, envolvendo um estilo global de pensar, sentir ou relacionar-se com os outros de forma rígida e invariável (GABBARD, 1992). Constitui maneira de ser do indivíduo, ego-sintônica, caracterizada por desconfiança e suspeita persistentes em relação a outrem, interpretando motivações e ações de outros indivíduos como malevolentes (GABBARD, 1992; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A Personalidade Paranóide já havia sido descrita por Kraepelin em 1915, designando indivíduos querelantes e constituindo característica pré-mórbida da Paranóia (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Kurt Schneider, em sua classificação assistemática das Personalidades Psicopáticas, descreveu um tipo de psicopata, o fanático, caracterizado pela supervalorização de certos complexos, ou seja, idéias ou motivações que em virtude de sua exagerada acentuação afetiva adquiriam posição dominante, uma preponderância tirânica sobre o psiquismo (BIRNBAUM, 1909; SCHNEIDER, 1948; KAUFMAN, 1980). Haveria fanáticos ativos, lutadores, e fanáticos silenciosos, dissimulados (SCHNEIDER, 1948).

É interessante assinalar que o próprio Schneider evitou o termo "Psicopata Paranóide", pois o principal nesses psicopatas seria a supervalorização de complexos e não a propensão à autorreferência (SCHNEIDER, 1948). A respeito disso, cabe salientar que a classificação de Kurt Schneider foi criticada por "definições pouco esclarecedoras" (BONNET, 1983). Ao psicopata fanático schneideriano corresponde o Transtorno de Personalidade Paranóide nas nosologias atuais (CID - 10, DSM - IV). (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

O Transtorno de Personalidade Paranóide ocorre em 0,5 - 2,5% da população geral, sendo mais comum em indivíduos do sexo masculino (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Estudos em famílias revelaram estreita relação com Esquizofrenia e Transtornos Delirantes (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A etiologia do Transtorno é incerta, provavelmente contando para esta fatores biológicos, psicológicos e ambientais (KAUFMAN, 1980; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Diagnóstico e Quadro Clínico

O diagnóstico do Transtorno de Personalidade Paranóide é basicamente clínico.

A CID - 10 (OMS, 1993) tem como critérios diagnósticos para o Transtorno os seguintes: sensibilidade excessiva a contratempos e rejeições; tendência a guardar rancores persistentemente, isto é, recusa a perdoar insultos e injúrias ou desafetos; desconfiança e tendência invasiva a distorcer experiências por interpretar erroneamente ações amistosas de outrem como hostis; um combativo e obstinado senso de direitos pessoais, em desacordo com a situação real; suspeitas recorrentes, sem justificativa, com respeito à fidelidade sexual do cônjuge ou parceiro sexual; tendência a experimentar auto-valorização excessiva, manifestada em atitudes persistentes de auto-referência; preocupação com explicações "conspiratórias", não substanciadas, para o que ocorre. Estão excluídos Esquizofrenia e Transtornos Delirantes.

Os critérios diagnósticos do DSM - IV (APA, 1994) para o Transtorno de Personalidade Paranóide são: suspeita, sem base suficiente, de que os outros o(a) estão explorando, agredindo ou enganando; preocupação ou dúvidas injustificadas sobre a lealdade ou confiabilidade de amigos ou sócios; relutância em fazer confidências, por temer que as informações sejam usadas contra si; interpretação de significados ocultos em comentários amistosos; dificuldade em perdoar insultos; hipervigilância a ataques à própria pessoa ou reputação, podendo reagir de forma rápida e agressiva; suspeita, sem base justificada, em relação à fidelidade do cônjuge ou parceiro sexual. Devem estar preenchidos quatro ou mais critérios e estão excluídos Esquizofrenia, Transtornos do Humor com sintomas psicóticos, outros Transtornos Psicóticos e condições médicas gerais.

Os pacientes com Transtorno de Personalidade Paranóide são em geral reservados, silenciosos e têm uma percepção notavelmente acurada do ambiente (GABBARD, 1992). São dotados de arguta sensibilidade em questões de hierarquia e poder, apresentando dificuldade em se relacionar com autoridades, talvez por medo de serem dominados ou de mostrar sua vulnerabilidade (GABBARD, 1992; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Percebem as ameaças à sua autonomia como onipresentes, não conseguem relaxar, o mundo é para eles povoado por seres estranhos e imprevisíveis, indignos de confiança (OGDEN, 1986; GABBARD, 1992). Esses pacientes têm necessidade constante de controlar os outros, são também patologicamente ciumentos, o que reflete sua terrível baixa auto-estima (MEISSNER, 1986; O’BRIEN E COL., 1992). Interpretam os sentimentos alheios não como criações pessoais, mas como coisas em si mesmas (GABBARD, 1992). Vivem na posição esquizoparanóide, dissociando e afastando de si toda a "maldade" e projetando-a em figuras externas (GABBARD, 1992).

O Transtorno pode estar associado à Depressão, Agorafobia, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, tentativas de suicídio e outros Transtornos de Personalidade, primariamente Esquizotípico, Narcisista, "Borderline" e Evitativo (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

O diagnóstico diferencial deve ser feito com Esquizofrenia Paranóide (há sintomas psicóticos persistentes), com Transtorno Delirante, tipo Paranóide (há delírios persecutórios persistentes) e com outros Transtornos de Personalidade (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A seguir, cinco casos ilustrativos:

Caso 1)

Um estudante de 22 anos, com dúvidas sobre juntar-se à Central de Inteligência ou estudar Ciências Políticas, foi pedir aconselhamento vocacional. Na primeira entrevista, deixou claro que não confiava em psiquiatras e falou do "perigo" que representavam as duas profissões, pois poderia ser "explorado". Decidiu não dar muitas informações a seu respeito, pois "poderia ser prejudicado futuramente". Contou sobre a separação recente de sua esposa, a quem sempre acusou de infidelidade. Ela o considerava tenso e sério, incapaz de responder a brincadeiras sem se sentir atacado. O estudante acreditava que sua esposa era responsável por todos os seus problemas matrimoniais, e interpretou a separação como uma confirmação de que não deveria confiar em ninguém (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Caso 2)

C.L.N.P., 30 anos, masculino, solteiro, engenheiro, RGHC 7030519D, internado no IPQ - HC - FMUSP a 29-4-97 por "tentar agredir o pai com uma faca". O paciente, sem antecedentes mórbidos, aos 17 anos passou a queixar-se de que estava sendo perseguido na escola, informação verificada pelos pais como falsa. Tornou-se desde então agressivo e desconfiado, sobretudo em relação à família. Responsabilizava-a pelos seus problemas, exigia o "melhor" para si. Chegou a agredir os pais fisicamente e em seu trabalho, chegou a sustentar, sem provas, que haveria um "complô" para demiti-lo. Ao exame psíquico de entrada, apresentava-se querelante, autorreferente, irritável, sem delírios ou alucinações, a crítica prejudicada. Avaliação psicológica denotou "incapacidade de valorizar seus próprios recursos e necessidade de referencial externo para organizar sua identidade". O paciente recebeu risperidona 2 mg/dia V.O. e tratamento psicoterápico durante a internação, evoluindo bem e recebendo alta a 30-5-97, sendo então encaminhado ao Ambulatório.

Caso 3)

Pedro I, o Grande, Czar da Rússia (1672-1725). Dotado de enorme vontade e energia, foi responsável pela ocidentalização da Rússia, trazendo Arte e Ciência de outros países europeus por onde viajou. Organizou a Administração e o Exército, conquistou vários territórios e fez-se reconhecer como supremo chefe da Igreja Russa. Desconfiado, mesmo sem provas punia com extrema crueldade "opositores em potencial". Mandou executar seu próprio filho, que se opunha às suas reformas (Lello Universal).

Caso 4)

Arthur Schopenhauer, filósofo alemão (1788-1860). Sempre desconfiado, autorreferente, tinha verdadeiro desprezo pela raça humana e ao mesmo tempo, desejos de obter glória e notoriedade. Atribuía seus fracassos acadêmicos a "conspirações" de professores universitários (VALLEJO-NÁGERA, 1946).

Caso 5)

Tibério, Imperador Romano (14-37 d.C.). Príncipe hábil, esclarecido e prudente, teve um reinado glorioso; porém, desconfiado em excesso com relação a intrigas palacianas, cometeu as maiores crueldades (Lello Universal).

Tratamento

O Transtorno de Personalidade Paranóide é de tratamento bastante difícil (GABBARD, 1992). Os pacientes por vezes se recusam a aderir a psicoterapia pela desconfiança, relutância em informar sobre sua intimidade e porque não admitem sua doença, tanto que normalmente são trazidos por familiares (GABBARD, 1992; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Entretanto, a psicoterapia dirigida, baseada em relação de confiança, é a base do tratamento, e a franqueza é de longe a melhor política frente a esses pacientes (GABBARD, 1992; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A prevenção da violência nesses pacientes é outra dificuldade (GABBARD, 1995). O terapeuta, nesse sentido, deve sempre ajudar o paciente a não se sentir humilhado; deve evitar levantar ainda mais suspeitas; ajudar o paciente a manter seu senso de controle, encorajando-o a verbalizar ao invés de atuar com violência; dar espaço para o paciente relaxar; manter-se sintonizado com a contra-transferência (FELTHOUS, 1984; GABBARD, 1992).

As psicoterapias cognitiva e familiar podem ser úteis, sendo que outras terapias, como a comportamental, não mostraram sucesso (BECK & FREEMAN, 1990; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Os pacientes podem beneficiar-se com medicação antipsicótica em baixas doses (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Essas drogas estão indicadas nas descompensações psicóticas que podem ocorrer no curso do Transtorno (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Na ausência de tratamento, o prognóstico é reservado (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Concluindo, o Transtorno de Personalidade Paranóide é variação extrema e desadaptativa do modo de ser, caracterizado basicamente por desconfiança e suspeita em relação a outrem. Provavelmente, é subdiagnosticado e sua etiologia é incerta, havendo porém relação estreita com quadros psicóticos. A terapêutica, essencialmente psicoterápica, é bastante difícil, podendo ser útil o uso de neurolépticos em baixa dose. São necessários mais estudos para o esclarecimento da relação entre o Transtorno e as Psicoses Paranóides e para a elaboração de terapêuticas mais eficazes.

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