Volume 4 - 1999
Editor: Giovanni Torello


Janeiro de 1999 - Vol.4 - Nš 1

XVI Congresso Brasileiro de Psiquiatria
São Paulo , 28 a 31 de outubro de 1998
Maksoud Plaza Hotel / Hotel Inter-Continental



Atividade : Mesa Redonda
Tema : Psiquiatria Nos Planos de Saúde
Local : Hotel Inter-continental, Sala 2
Horário : 10:30 As 12:30 Hrs

RELATÓRIO DA ATIVIDADE:

Presidida pelo Dr. Lucio F. M. Villaça, de Brasilia - D.F., a mesa-redonda contou com a presença dos seguintes debatedores do tema "Psiquiatria nos Planos de Saúde":

    • Prof. Dr. Julio Arboleda-Florez
    • Dr. Márcio V. Pinheiro
    • Dra. Vânia Novelli Domingues
    • Ausente : Dr. Paulo André Borges

Introdução e comentários iniciais.

Dr. Lucio F. M. Villaça (Clínica Psi
quiátrica, Unidade de Saúde Mental, Hospital das
Forças Armadas, Brasilia, D.F.)

Iniciada a atividade na hora prevista, o Presidente da Mesa introduziu cada um dos debatedores presentes e fez algumas consi-derações gerais sobre as dificuldades atuais das
desordens psiquiátricas e dependências químicas,
no que diz respeito a sua cobertura integral nos Planos de Saúde, que vieram a ser regulamentados em junho último pelo Congresso Nacional, sob intensa pressão do Governo Federal, que tentava justificar que seria "melhor ter uma regulamen-
tação com falhas do que nenhuma regulamentação".
Citou como exemplo, a perturbadora
situação em que hoje se encontram os cuidados de
saúde (e particularmente a saúde mental) nos E.U.A., onde a indústria de seguros e planos de saúde vem proliferando desde os anos '80, num im
passe que sómente agora está sendo amplamente discutido, em razão dos sérios problemas que tem sido criados para usuários e provedores de serviços(médicos e instituições de sáude).
Para a 'indústria da saúde', com suas corporações bilionárias, é inegável que, sempre que possível, se tentará fazer prevalecerem os seus interesses num mercado altamente lucrativo, acima das necessidades de cuidados e tratamentos dos pacientes, já que sua finalidade primeira será a obtenção de grandes ganhos financeiros.

Na especialidade da Psiquiatria, as dificuldades de acesso aos serviços e as ocorrências de abusos,os entrechoques com o trabalho diário do médico e as necessidades dos pacientes tem sido mais contundentes que em qualquer outra especialidade médica.

Torna-se portanto, ainda mais urgente agora que os profissionais da especialidade se tornem conscientes destas dificuldades, se alinhem e se organizem, para criar melhores mecanismos de controle desta situação. Parece claro que a recente regulamentação aprovada pelos representantes do povo não conseguirá fazê-lo,a não ser com legislação adicional, para que possam ser preservados os princípios básicos do exercício profissional e da relação do médico com o seu paciente. Sem estes principios será
impossível conduzir formas éticas de exercício da Medicina e da Psiquiatria, no sistema de cuidados de saúde gerenciados pelos planos.

Alguns indicadores atuais deixam claro que aumentam os índices de insatisfação da classe usuária com as corporações de planos e seguros de saúde nos E.U.A., que passam agora a ser questionadas pela sua postura de ganância desmedida e ainda quanto aos lucros fáceis, com restrição do acesso praticados pelo sistema sobre os pacientes (usuários) em real necessi-
dade de atendimento e cuidados. E isso tem sido possível graças sobretudo ao esclarecimento da população usuária em campanhas de informação e apresentação dos problemas reais da situação,
através dos recursos dos meios de comunicação. Igualmente importante tem sido a sensibilização da comunidade júridica ao nível de tribunais regionais, fixando jurisprudência quanto a atribuiçoes de responsabilidade civil e penal para empresas de saúde, na eventualidade de os problemas de acesso ao serviços resultarem em prejuízos a saúde dos usuarios.

A seguir as apresentações dos outros debatedores :

Existe um sistema ideal de gerenciamento em Saúde ? A experiencia canadense.

Prof. Dr. Julio Arboleda-Florez (Queen's University, Kingston, Ontário, Canadá)

O Dr. Arboleda-Florez teceu inicial-
mente considerações sobre o que deveria constitu
ir um conjunto de obrigações legais entre as par
tes, quando estas se propõem a fazer um contrato de prestação de serviços - neste caso,as companhias seguradoras e os planos de saúde e associados - mencionando que, no caso em pauta, estamos considerando a realização de atos e procedimentos que afetam diretamente a saúde do ser humano. As empresas de cuidados de saúde gerenciados, aparecendo como uma indesejável
e perturbadora terceira parte entre os médicos e seus pacientes, deveriam também marcar suas posturas por considerações éticas, o que não costuma ocorrer em um número cada vez maior de situações.
Constata-se as necessidades de saúde dos usuários são frequentemente desconsideradas em favor da obtenção do lucro fácil, através da restrição do acesso aos serviços, aumento abusivo dos prêmios de contribuição e uma redução drástica e não negociada dos honorários médicos, além de cerceamento da liberdade na escolha do profissional médico pelo usuário, que se vê obrigado a ter que aceitar o provedor indicado pela empresa ou plano prestador de serviços.

Mencionou também o Prof. Arboleda-Florez o Sistema de Saúde Canadense (Medicare) criado há 35 anos e aperfeiçoado ao longo de muitos anos(e que se baseia em cinco principios básicos para a prestação de serviços e atos médicos),que hoje consegue manter uma imagem de sistema ideal de cuidados de saúde marcando os principios de universalidade, transferibilidade, compreensibi- lidade, acessibilidade e responsabilidade na administração dos recursos por um único agente pagador, que é o administrador publico federal ou provincial, através do repasse de verbas arrecadadas de um imposto único de saúde que todos as pessôas com ganhos e rendimentos pagam.
Neste sistema,é permitido ao médico manter a autonomia e a liberdade no exercício de sua profissão, podendo optar por permanecer credenciado ou manter a sua atividade particular com o recebimento direto dos honorários por serviços prestados ao seu paciente, em comum acordo entre partes. No Canadá, os planos de saúde sómente podem operar como agentes de complementação de oferta dos serviços médicos que serão oferecidos pelo sistema básico adm
nistrado pelo governo.
Comentou o debatedor que tal sistema não é sem defeitos, porém que tem sido aperfeiçoado, através da redução de custos, melhoria de beneficios e maior eficiência nos serviços, a um custo aceitável para o usuário. Em psiquiatria, em particular, tem havido redução notável da capacidade ociosa dos hospitais psiquiátricos, com a aplicação de recursos em formas de atendimentos alternativos a hospitalização e pela criação de pequenas unidades de psiquiatria nos hospitais gerais para o atendimento na situação de crise, com muito menor ênfase na internação em grandes hospitais psiquiátricos.

A complicada situação do sistema de
saúde americano : a prática psiquiátrica em caos.

Dr. Márcio V. Pinheiro ( Sykesville, Maryland,E.U.A.,psiquiatra e psicanalista, em clínica particular)

O Dr. Márcio Pinheiro, brasileiro de Minas Gerais que há vários anos tem residido nos E.U.A., descreveu a história da instalação do sistema de seguros de saúde privados nos E.U.A., a partir de 1980 e como a psiquiatria, pouco a pouco, passou a ser objeto de desmerecimento e desconsideração pelas organizações destes planos de saúde(também conhecidos como "managed care organizations" ou "managed care corporations"). Com o crescimento desta indústria de fins lucrativos, o aparecimento dos abusos nas clausulas de cobertura para as diversas desordens mentais, os transtornos emocionais e as dependências químicas, bem como a cobertura para tratamentos pelas psicoterapias.

O paciente psiquiátrico parece estar entre os alvos preferidos nos abusos do sistema atual, já que as restrições de atendimento se aplicam com muito maior frequência à especialida de da psiquiatria.

Mencionou o debatedor que o médico psiquiatra passou a ser considerado pelos planos de saúde como um mero dispensador de medicamentos. E com as frequentes restrições, ficou impossibilitado de manter uma relação de tratamento global adequado com o seu paciente, tem tido os seus honorários profissionais aviltados e progressivamente reduzidos pelo sistema pagador privado. Além de ser obrigado a preencher infindáveis e complicados formulários de justificativas burocráticas para autorização de continuidade ao tratamento de seus pacientes, com particular desconforto do psiquiatra em situações em que este venha a necessitar de hospitalização em unidades de tratamento psiquiátrico.

Neste sistema perverso, surgiu a figura do "médico-porteiro", que é quem decidirá se o segurado (o paciente), deverá ou não ser atendido pelo especialista. Outro excesso é o sistema de pagamento "per capita", em que um médico de atenção primária é 'incentivado' a utilizar ou dispender sempre menos recursos de uma quantia que é alocada para os cuidados de uma população de segurados sob sua 'guarda'e atenção - o que faz do processo de tratamento uma situação de alto risco : o usuário raramente é encaminhado ao especialista e um mínimo de exames complementares são considerados e autorizados como necessários do ponto de vista
médico.

Ao médico psiquiatra só é permitido prestar ao paciente um número limitado de atendimentos, e com frequência ele é levado a assumir a responsabilidade total pelos riscos que vierem resultar de sua conduta clínica com o paciente; pois que existe até um dispositivo legal (lei ERISA) que isenta a operadora de vir ser responsabilizada por eventuais situações desastrosas que vierem a ocorrer no decurso do tratamento, por motivo de decisões administrativas equivocadas.
No decorrer do ano de 1997, foram promulgadas mais de 700 leis nos diversos Estados americanos visando conter os abusos cometidos pelos planos e agentes autorizados (carve-outs) de saúde sobre a população segurada. Isso demonstra que aumenta a cada dia o número de usuários insatisfeitos e aqueles que abandonam os planos e passam a condição de não-segurados, que hoje atinge a estarrecedora cifra de 40 milhões de americanos.
O Dr. Pinheiro sugeriu que, já que as empresas e planos de saúde parecem estar transferindo para o Brasil a experiencia americana, torna-se muito importante que os psiquiatras se preparem para negociar com elas e tambem impor as condições para o atendimento psiquiátrico de qualidade e com um mínimo de restrições.

A seguir, os ítems principais a ser em considerados na mesa de negociações :

1. garantia da confidencialidade das informações da consulta médica.
2. as empresas deverão constituir e manter uma central única de credenciamento. Este credenciamento deverá ser universal e não discriminado. Não deverão haver os 'provedores preferidos'.
3. os formulários deverão ter formato único para todos os planos de tratamento.
4. deve ser preservado o direito do usuário de escolher o seu médico.
5. deve haver flexibilidade adminis- trativa nas autorizações de tratamento, seja em hospital e em consultório.
6. deve ser garantida a possibilidade de atender tanto os pacientes que necessitem psicoterapia quanto de medicação, sem imposição de tipo de prática terapêutica, que ficará a critério do médico.
7. o médico deverá rejeitar incondicionalmente qualquer imposição do sistema de capitação (valores de honorários ditados 'per capita').
8. o médico especialista (psiquiatra) não deverá aceitar ficar sujeito as decisões de um 'médico porteiro'.
9. a classe deve lutar pela criação de legislação em que as empresas, através de seus diretores médicos, possam ser responsabilizadas e penalizadas por eventuais danos e sofrimentos causados por erros e equívocos administrativos.

Os ganhos e lucros fáceis destas empresas fica muito evidente quando se examina os rendimentos auferidos por seus diretores, muitos com quantias acima de US $ 4.0 milhões anuais. Isso em gritante contraste com muitas ocorrências em que o atendimento ao usuário é restringido dràsticamente ou até negado, sob a pretensa justificativa de que a liberalização nas autorizações impactarão nos custos operacionais da empresa, gerando prejuízos (na linguagem dos planos,'comprometimento do custo/eficiência').

O Dr. Pinheiro relata que a indústria do gerenciamento de cuidados médicos, o "managed care", alterou definitivamente a face e a prática da medicina americana. Alertou para a necessidade de os médicos e pacientes retomarem o controle desta situação, talvez até pela mudança no sistema, lutando por um sistema de pagador único (como no Canadá), ou através de um sistema de 'conta de poupança' com a finalidade de dar cobertura de prestação de serviços médicos para cada cidadão, ou que seja criado um 'seguro-catastrófico' para tratamento de alguns transtornos psiquiátricos mais graves.
Outras medidas importantes seriam : a criação de uma associação de psiquiatras que atuassem exclusivamente em atendimento de consultório privado e um setor de relações públicas, com a finalidade de informar sobre os abusos e a negação de atendimentos e cuidados considerados necessários.

Uma experiência brasileira com uma Central de Convênios.

Dra. Vânia Novelli Domingues (Rio de Janeiro, RJ, Brasil,coordenadora do Centro de Tratamento de Dependencias Quimicas - Casa de Saúde Dr. Eiras e psiquiatra em clinica privada)

A Dra. Vania Novelli relatou o modelo de atuação da Central de Convênios do Estado do Rio, criada por iniciativa de várias entidades médicas estaduais como instrumento de negociação com os planos de saúde e seguradoras e como forma de facilitar as ações dos médicos frente aos problemas surgidos no atendimento de pacientes segurados. A Central tem por finalidade facili tar as negociações de certas cláusulas básicas do contrato de prestação de serviços e é um exemplo inovador, que mostra as possibilidades da união da classe médica para fazer frente às realidades dos convênios e planos de saúde atualmente operando no país.
No Brasil, a indústria de seguros de saúde se estabeleceu aproveitando a situação atual de falência do sistema publico de prestação de serviços de saúde, do qual, num modelo ideal, seria um recurso complementar.
A central de convênios é um projeto que busca restabelecer a liberdade de escolha na relação entre médicos e pacientes, honorários mais justos e maior reconhecimento para o trabalho do médico, em geral desfigurado pelas administrações dos planos e seguros de saúde.
Atenta para os critérios de credenci amento dos profissionais, protegendo-os dos riscos de descredenciamento injusto e por motivos que sejam meramente de interesse financeiro e lucrativo das empresas. E sobretudo mantém sob permanente questionamento o sistema do "managed care" como alternativa de prestação de serviços médicos, já que este explora o atendimento a saúde com fins lucrativos. Como se tem constatado, a mais recente legislação, aprovada no Congresso Nacional, apenas favoreceu aos planos com maiores facilidades de atuação, mais poder de imposição de cláusulas leoninas, até mesmo criando uma reserva de mercado. Mas não atingiu outras questões mais básicas, como direitos e deveres das partes envolvidas, planos, pacientes e médicos.
A Central de Convênios surge neste momento oportuno como uma solução para a crescente burocratização do acesso aos serviços, como forma de resgate da livre escolha e facili tação para o credenciamento dos profissionais e poderia representar um mecanismo protetor contra os abusos e o aviltamento do trabalho médico. O seu conselho deliberativo inclue representantes da associação médica estadual, do órgão fiscalizador e regulador do exercício profissional, de sociedades de especialidades e de sindicatos médicos.
Em resumo, esta entidade se torna um órgão abrangente na defesa e promoção das classes frente a crescente investida em transformar a saúde em mercadoria a ser ofertada e consumida como comodidade e produto de mercado. Não visa apenas a proteção da classe médica, mas pode atuar também como agencia informativa aos órgãos de proteção para os segurados e suas famílias, esclarecendo-os quanto aos seus direitos e os princípios fundamentais da relação médico-paciente necessários para um atendimento em saúde mais eficiente, de melhor qualidade e mais abrangente.

Concluido em 13/12/98.

Copyright por Dr. Lucio F. M. Villaça.
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