Volume 4 - 1999 Editor: Giovanni Torello |
Março de 1999 - Vol.4 - Nş 3 *Visita às casas de Freud - uma ficção freudiana (*) Sérgio Telles** Psicanalista e Escritor. Formou-se em Medicina em Fortaleza em 1970, ano em que veio para São Paulo. Fez sua formação analítica no Instituto Sedes Sapientiae, no Curso de Psicopatologia e Psicoterapia Psicanalíticas (atualmente "Formação em Psicanálise"), onde foi professor e supervisor de 1980 a 1992. Tem colaborado em vários jornais e revistas e é autor de um livro MERGULHADOR DE ACAPULCO (Imago Editora). * (*) Em 1978 Octave Mannoni escreveu sete saborosas narrativas, às quais intitulou "Ficções Freudianas" (tradução brasileira pela Livraria Taurus Editora - Rio - 1983). Este texto pretende inscrever-se no mesmo espírito que animou Mannoni naquela ocasião, lamentando não alcançar a graça e a finura por ele ali alcançados. O analista jamais duvidou que um dia iria a Viena. Para
ele, como para todos analistas, Viena é uma espécie
de pátria espiritual, moldura necessária que enquadra
a descoberta do Inconsciente, o berço da psicanálise.
Viena está irremediavelmente ligada ao nome de Freud. Anos antes, o analista vislumbrara Viena no filme de Alexander
Korda, O Terceiro Homem. Ali estava ela em escombros, humilhada
sob a poeira dos bombardeios e o tacão das potências
aliadas, pagando a crime de sua cumplicidade com Hitler. Mesmo assim,
encantadora. O analista imagina como a encontrará. Cinquenta anos depois do filme de Korda, o analista e sua
mulher encontram uma esplendorosa Viena que exibe um esteticismo
tão arrebatado em sua organização espacial
que o fez pensar que ela mais parecia produto de cenógrafos
do que de urbanistas. Viena parecia um magnífico palco de
grandiosas óperas. Andando por suas ruas e avenidas, o analista
se imaginava andando num cenário teatral. Essa sensação se manteve enquanto andavam
de fiaker pelo Ring, enquanto perambulavam pela Graben e pela Kärntner
Strasse, enquanto visitavam os museus, o Burg, as igrejas, os parques,
o Palácio Schönbrunn, os monumentos art-nouveau da Secessão
- os pavilhões de Karlplatz, portais do Stadtpark, o mural
Beethoven de Klimt, os tradicionais cafés Central, Landtmann
e Hawelka, os restaurantes. Viram muitos lugares impressionantes. No dia antes de deixarem Viena, foram ver o Museu Freud.
Somente então o analista se deu conta que deixara para a
última hora aquela visita. Para continuar usufruindo da beleza da cidade, resolveram
ir a pé, apesar de estar o Museu Freud não tão
perto do hotel situado atrás da Peterskirsche. Atravessaram
a grande avenida do Schottenring, pegaram depois a Währinger
Strasse, de onde sai a longa ladeira da Berggasse, à procura
do número 19, a casa de Freud. O acanhado prédio de Freud, com sua fachada um tanto
pretensiosa fez o analista lembrar dos comentários de Schörske
sobre a preocupação que a burguesia vienense do século
passado tinha com a aparência de seus edifícios. Como o prédio é ocupado normalmente, o visitante
deve tocar a campainha do apartamento de Freud para ser autorizado
a subir ao primeiro andar. Antes de entrarem, o analista pediu que
sua mulher tirasse algumas fotos na frente do prédio. Traspassada
a grande porta, viram-se num discreto vestíbulo de onde saía
a escada, que tentava ter uma certa imponência. O analista não ignorava que a maior parte dos pertences
de Freud tinha sido levada para Londres, cidade que o acolheu quando
tivera de deixar uma Viena entregue aos nazistas. Tal só
fora possível graças às gestões da Princesa
Bonaparte junto à embaixada americana, que pressionara os
alemães. Freud conseguira sair com mulher e filhos. O mesmo
não acontecera com suas irmãs, que morreram em campos
de concentração. Ao entrarem no apartamento, dirigiram-se a uma sala onde
estavam os funcionários, que lhes deram um livreto que os
orientaria durante a visita. Como não havia uma versão
em português, escolheram um em espanhol. Ali no apartamento estava apenas a sala de espera intacta,
com os móveis estofados, as gravuras, a mesa. Parecia uma
sala de visita pequeno-burguesa, extremamente convencional. Na mesinha
de centro havia um grande álbum de vistas, postais de cidades.
Numa das paredes, uma janela dava para um pequeno pátio.
O analista se emocionou ao pensar que um dia naquele mesmo
lugar, olhando daquela janela para o pátio, aguardando sua
hora, estiveram o Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos, Dora, os míticos
pacientes de Freud. Lembrou que naquela salinha aconteciam incialmente
as famosas "reuniões de quarta-feira", embrião
das poderosas associações psicanalíticas. Na sala vizinha, onde fôra o consultório,
painéis fotográficos mostravam o lugar das estantes,
das estatuetas, das antiguidades, do divã, da escrivaninha. Naquele momento em que a visitavam, a sala estava ocupada
por uma turma de colegiais, que ouviam desinteressados o que sua
professora falava sobre Freud e a psicanálise. O analista
tentou - sem sucesso - esperar que eles saíssem para poder
meditar um pouco ali naquela sala onde tanta coisa fora descoberta
por Freud. O analista viu que o mesmo devia estar pensando um homem
de sua idade que tentava ler seu livreto em inglês. A solenidade
e a compostura com as quais ambos - o analista e aquele outro homem,
que talvez fosse também outro analista - se imbuíam
não condiziam com a leve balbúrdia proporcionada pela
professora e seus alunos. O analista e sua mulher desistiram de esperar que a aula
acabasse e foram explorar as outras dependências do museu.
Passaram por uma sala onde eram vendidos livros, postais, lembrancinhas.
Havia duas salas com exposições, uma delas com objetos
de Freud, outra com quadros ligados a sua obra. Uma terceira com
uma exposicão de jóvens artistas de Viena que prestavam
uma homenagem à descoberta do Inconsciente. Meio constrangido, pois temia estar transformando Freud
num ítem de consumo, o analista comprou uns postais, uns
chaveirinhos, umas canetas, uns posters. Parou um pouco no vestíbulo,
observando a porta de entrada do apartamento, com a placa Dr. Freud.
Naquele momento estavam chegando, meio esbaforidos com o esforço
de subir a escada, um casal francês de meia idade e um gordo
mexicano, que vestia um caro casaco de pelo de camelo. O analista
imaginou que, como ele, também deviam estar cumprindo a mesma
visita ritual à Meca psicanalítica. Voltaram para o interior do museu e viram, noutro aposento,
vídeos de filmes documentários com Freud. Até
então o analista nunca tinha visto Freud fora de suas conhecidas
fotografias, onde a imobilidade própria das fotos dava-lhe
o aspecto hierático, grandioso, condizente com sua estatura
de gênio da humanidade. Achou estranho vê-lo em movimento,
isso lhe devolvia a humanidade, revelava sua fragilidade, sua vulnerabilidade.
Ali estava um velhinho andando para cá e para lá com
amigos e familiares. Mais estranho ainda pareceu ao analista o som
tremido e fraco da cansada voz de Freud. Durante todo este percurso, o analista tentava se asenhorear
de seus sentimentos e sensações, percebendo as oscilações
que neles ocorriam. Antes de mais nada, sentia-se muito contente,
realizando um sonho longamente acalentado. Estava desbravando um
território conquistado. Sentia-se orgulhoso de estar ali.
Depois, a visita à casa de Freud era como uma modestíssima
homenagem que prestava ao mestre, era uma demonstração
de respeito e admiração. Após visitar tantos prédios e palácios
esplendorosos de Viena, o analista registrou que se sentia comovido
com a simplicidade do apartamento de Freud. O mesmo sentira ao passar
em frente ao prédio de apartamentos onde morara Beethoven.
Naquela ocasião, tinha acabado de assistir a um recital no
suntuoso Palácio Lobkowitz, na Sala Eroica, assim chamada
por ter sido ali onde Beethoven tocara pela primeira vez sua sinfonia.
A comparação entre o fausto do palácio e a
humildade da residência de Beethoven pareceu-lhe gritante
e injusta. O analista notou que tais pensamentos não justificavam
o crescente desconforto no qual sentia-se mergulhar. Como era de
se esperar, tentou compreender melhor o que sentia, fazendo uma
rápida auto-análise. Começou por lembrar que
todo analista tem um certo grau de identificação com
Freud. Todo analista conhece a fundo os textos freudianos, suas
biografias, o que - além do exercício da profissão
- lhes proporciona uma imaginária intimidade e familiaridade
com Freud. Cada um, a seu modo, sente-se um pouco como Freud, sente
que é Freud. E era justamente esse sentimento de proximidade
e intimidade com Freud que o analista, com certa perplexidade e
pesar, sentia estar perdendo naquele momento. Era essa a fonte de
seu desconforto. Constatava que o estar no ambiente físico onde Freud
vivera, o estar junto de seus objetos, dentro de sua casa, não
faziam crescer a intimidade e proximidade que sentia até
então. Pelo contrário, mais do que nunca sentia-se
afastado e distante dele. Sentia-se frustrado com esta descoberta,
mas julgava que a entendia. O ver o apartamento de Freud, espaço por ele ocupado
por mais de 40 anos naquela rua de Viena, fazia Freud aparecer em
sua inteireza singular de sujeito, o que - de alguma forma - desfazia
a identificação imaginária que o analista mantinha
com ele, pois ele próprio - o analista - se sentia devolvido
a si mesmo, à sua própria inteireza, a sua própria
identidade. Com certo pesar e susto, constatava o que sempre soubera
- que ele e Freud eram pessoas distintas uma da outra. Por mais
que pudesse imaginar a vida de Freud em Viena, como tinha feito
em suas andanças pela cidade, pensando nas dificuldades que
ele como judeu tivera de enfrentar no império austro-húngaro
dos Habsburg, esmagado pelo esplendor barroco católico do
poder da aristocracia, por mais que pudesse entender, empatizar,
aquela era a vida de Freud, não a sua. O analista pensou que alimenta-se uma intimidade imaginária
com os ídolos até chegar-se muito perto deles, quando
se estabelece a diferença, o estranhamento, o quebrar-se
do espelho narcísico. Isso é comum com os grandes
ídolos de massa (política, cinema, música,
pop), com quem os admiradores se fundem inconsciente e narcisicamente.
Também para eles é intolerável a constatação
da diferença, do distanciamento, da realidade imaginária
daquela identificação, coisa que tem por vórtice
o momento de encontro face a face com o objeto de tal idealização.
Essa quebra, esse desfazer da identificação narcísica
é sempre traumático, violento, desencadeador da agressividade
a mais destrututiva. O assassinato de John Lennon por seu grande
fã ilustra perfeitamente tudo isso, configurando-se ali o
encontro letal com o doppelgänger, o insuportável momento
de ruptura, de perda narcísica. O analista lembra os escritos de Lacan sobre a fase do
espelho e sua posterior elaboração, em termos da alienação
constitutiva do sujeito no desejo do Outro e o dela sair, com o
resgate do próprio desejo. Ao sair da casa de Freud e subir a longa ladeira da Berggasse
até a Wäringer Strasse, o analista lembrou de um paciente
que se queixava do local de seu novo consultório, descrito
derrisoriamente por ele como uma pirambeira, por situar-se no meio
de uma ladeira. Um tanto constrangido, o analista constatou que
talvez essa lembrança indicasse uma identificação
com o paciente. Talvez estivesse fazendo o mesmo com o consultório
de Freud, denegrindo-o por estar mal localizado, numa pirambeira.
Por outro lado, essa identificação o colocava como
paciente de Freud, realizando assim um desejo, um sonho de todo
analista - o ter sido paciente de Freud. Na Wäringer Strasse, o analista e sua mulher entraram
num antiquário, mas logo saíram. Estavam cansados
e com fome, o que os fez estugar o passo, procurando o Macdonald's
da Universitätsstrasse, em frente à Universidade, para
onde se encaminharam depois do lanche, no desejo de localizar o
busto de Freud no grande pátio do prédio principal.
O analista pensava que, levando em conta a dimensão
do reconhecimento que o gênio de Freud atingira, não
deixava de ser tocante que ele, num determinado momento, considerara
uma grande honra ter um busto ali, no meio daqueles que ele desejara
ter como pares. Ao encontrar o busto, muito simples e modesto se
comparado com os grandes bustos e monumentais baixos e altos relevos
que louvavam o saber de tantos outros mestres da academia, o analista
foi tomado por um sentimento de justiça poética. Pensou
que Freud, de todos aqueles professores e cientistas, era o mais
famoso, o mais genial, o mais universalmente aclamado, provavelmente
o único que justificaria uma visita como aquela que ele e
a mulher estavam fazendo naquele momento. A figura de Freud não estava apenas ali no busto
do pátio da Universidade, mas marcava a História do
pensamento do século XX. O onipresente olhar de Freud abarcava
toda a humanidade. Afinal, como descobrira já no aeroporto
de Viena ao trocar os dólares pela moeda local, Freud o olhava
também a partir da cédula de 5 xelins, onde sua efígie
era a evidência mais cabal do reconhecimento oficial da Áustria.
Freud era um herói nacional. Estas considerações do analista foram suspensas
até serem retomadas na escala seguinte de sua viagem, quando
visitaram a casa londrina de Freud, em Hampstead. Foram de metrô, parando na estação
Finchley Road. Atravessaram uma larga avenida, subiram uma ladeira
e já estavam na Maresfield Gardens, uma avenida arborizada,
cheia de casarões de tijolinhos vermelhos e acabamentos brancos.
Logo cruzaram com duas mulheres que falavam francês e que
portavam sacolas com o logotipo do Freud Museum. Viram que estavam
chegando. Abriram o portão do jardim e atravessaram a curta
alameda que levava para a porta principal. Encontraram-se num vestíbulo,
onde havia uma mesinha com cadeira. À esquerda, abria-se
uma pequena porta. Em frente, um grande arco dava passagem para
o corpo da casa. Não havia ninguém ali para os receber,
o funcionário devia ter ido a algum lugar. A mulher dirigiu-se
para os fundos, onde se ouviam pessoas falando. O analista entrou
no primeiro aposento à direita e, surpreso, viu que estava
no consultório do Freud. Além dele, estava ali um
casal, que, numa nova surpresa, falava em português. Eram
uma psicanalista de Porto Alegre e seu marido, que lhe traduzia
em voz alta o folheto do museu. Embora avisos na parede expressamente
o proibíssem, ela tirava fotos do local. Ali estavam o divã, os tapetes, as antiguidades,
os livros, a escrivaninha, a poltrona, tudo como esperava, como
já tinha visto tantas vezes em fotos. Sem entender, o analista registrou que não se sentia
bem, estava tenso e angustiado. Sentia como se quizesse sair imediatamente
dali, como se quizesse manter irrealizado seu desejo tantas vezes
acalentado de ver o consultório de Freud, mantê-lo
como um projeto futuro e distante feito por um jóvem que
diz para si mesmo: um dia vou visitar a casa de Freud e não
tem nenhuma pressa quanto a isso, pois vê a vida como uma
longa e infindável estrada que mal começou a trilhar. O estar efetivamente visitando a casa de Freud provocava
no analista um paradoxal sentimento depressivo. Parecia-lhe não
uma aquisição e sim uma perda. Despertava-lhe uma
inesperada consciência de sua idade madura, de já não
ter um futuro imenso e despreocupado com que contar, de ter que
viver sofregamente o agora. Dava-lhe uma dolorosa percepção
do tempo, com sua finitude e fugacidade. Perdido em tais pensamentos, o analista se assustou quando
ouviu um funcionário do staff repreendendo a psicanalista
gaúcha, que continuava a tirar fotos proibidas. Teve um pouco
de vergonha por ela e logo ficou embaraçado, pois não
tinha comprado ainda os ingressos. Confuso e tumultuado, surpreso com tais sentimentos que
o assaltaram inesperadamente, o analista sentiu-se só e desamparado
e foi atrás da mulher, que estava ainda nos fundos da mansão,
num lugar onde havia uma pequena livraria e uma lojinha, onde ela
escolhia camisetas, moletons, lembrancinhas do museu. Confortado
com sua presença, voltou com ela até o pequeno vestíbulo
do museu, onde compraram os ingressos do funcionário que
agora estava a postos na mesinha. Os dois ingressaram no consultório
de Freud, onde o analista, já mais calmo, pôde apreciar
o que ali estava exposto. Dali encaminharam-se para o segundo andar, onde Anna Freud
tinha seus aposentos, com seu tear, sua cama, seu guarda-roupas,
sua escrivaninha. Ali encontraram dois outros psicanalistas brasileiros.
Eram de Belo Horizonte e muito jóvens. Apesar de mais calmo, de novo o analista se viu assaltado
pelo estranhamento, o mesmo distanciamento que sentira em Viena.
As relíquias de Freud, seu consultório tão
cuidadosamente preservado com suas ricas peças, tudo com
tanto valor afetivo e histórico, tudo aquilo agora parecia-lhe
esvaziado de sentido, objetos mortos, mórbidos. Vislumbrava
a grande distância entre o homem e a obra, via que a essência
de Freud não estava ali naqueles objetos, por mais valiosos
que fossem, mas em seus livros, suas obras, seu espírito.
Tal como uma criança que, segurando a barra da saia
da mãe, se considera parte dela até penosamente concluir
ser isto apenas uma ilusão, o analista de alguma forma se
segurara na barra das calças de Freud, compartilhando imagináriamente
sua extensão gigantesca, sua monumentalidade de gênio.
Novamente se defrontava com o que nunca deixara de saber, que Freud
não era ele, ele não era Freud. Essa separação fazia o analista sentir-se
esmagado frente a grandeza de Freud, gênio benfeitor da humanidade.
Ele sentia-se pequeno e insignificante, apenas mais um daquela anônima
humanidade, um brasileiro, um terceiro-mundista, vindo de um país
tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, mais
que beleza, e que tinha carnaval. Foi invadido por um poderoso sentimento
de inveja e ódio contra Freud ao pensar que jamais atingiria
sua estatura. Talvez por tudo isso, o analista sentiu uma grande antipatia,
uma visceral hostilidade frente aos brasileiros ali presentes, os
psicanalistas do Rio Grande do Sul e de Minas. Não quis confraternizar
com eles, nada de conversas e trocas de informações
de viagem. Se acabara de desfazer sua identidade fusional com Freud
e tentava recentrar-se em sua própria identidade, estava
longe de se sentir inclinado a se identificar com aquelas pessoas
que estavam ali falando, em tom excessivamente alto, esta última
e bruta flor do Lácio, ignorada por todos, esta língua
semi-bárbara, eterna prima pobre do Francês e do Italiano.
Pessoas que insistiam em tirar fotos apesar da proibição
expressa, pessoas com o desenho e a cor do seu país, pessoas
que como ele estavam ali sorvendo o ar milenar da Europa, da loura
Albion, tentando parecer familiarizados com o clima, a fina garoa,
o usar com desenvoltura o trench-coat, falar o inglês com
um sotaque continental, fôsse ele qual fôsse, já
que para os ingleses mais cabotinos, o continente, aquela parte
da Europa não contida pela ilha, era o berço de uma
gente mal-educada, ignorantes que nunca fora a Cambridge e Oxford,
únicos lugares onde se aprende a ser um efetivo gentleman.
Que diriam eles se soubessem que atrás de seu belo casaco
comprado na Burberry's, estava um reles habitante do Terceiro Mundo? Ao sairem do museu, a mulher do analista disse-lhe que
tinha ficado constrangida pois o vestíbulo, onde ela o esperara
e onde também estava o funcionário em sua pequena
mesa, fora invadido pelos desagradáveis e inconfundíveis
odores vindos do banheiro. Perto da estação de metrô, viram uma
moderna loja de decoração, onde entraram. Enquanto
a mulher olhava os objetos da loja, o analista começava a
tentar entender aquela súbita necessidade de ir ao banheiro.
Ao sairem da loja, resolveram voltar de ônibus, ao invés
do metrô. Não tinham pressa e poderiam apreciar mais
a paisagem vista do segundo andar do double-decker. Ao subirem ali,
encontraram vários adolescentes paquistaneses que, voltando
das aulas, falavam em altos brados sua língua nativa. O analista
lembrou de sua vergonha do português e os invejou por não
se envergonharem da deles. No meio da algazarra dos adolescentes, o analista tentou
pensar nos motivos do constrangimento de sua mulher. O andamento
de seu raciocínio foi interrompido várias vezes por
ela, pelos adolescentes paquistaneses e por ele mesmo, que se deixava
distrair pela paisagem vista do ônibus, pelo que via pela
janela - o tráfego intenso, o movimento das pessoas nas ruas,
o Regent's Park, a Marylebone Road, o Museu de Mme. Tussaud, local
que não se deu ao trabalho de ir visitar, para escândalo
de uma velha conhecida que encontraram logo que retornaram da Europa.
Anos antes a pobre senhora tinha feito uma excursão pela
Inglaterra e a visita ao Museu de Cera fora o ponto alto de sua
estada em Londres. Ao saber que o analista e sua mulher não
tinham ido ali, não pode conter sua perplexidade. Entre paradas e avanços, distrações
e retomadas, retas e curvas, o que o analista pensou foi que o aprendizado
do contrôle esfincteriano é um dos importantes momentos
de ruptura da fusão narcísica com a mãe. De
repente, a criança descobre que a mãe não compartilha
todos seus desejos e pode ter desejos próprios, opostos àqueles
seus. A mãe começa a ensinar à criança
como e onde evacuar e urinar. Começa a impor limites, a contrariar
a onipotência infantil, a quebrar o espelho narcísico
da comunhão absoluta de todos os desejos. A criança
reage a tudo isso, fazendo um grande manejo. Quando quer agradar
a mãe, faz o cocô no lugar e na hora certa, dá
de presente tal obra, sua mais importante obra, na verdade a única
que é capaz de realizar. Quando está brigada com a
mãe, espalha merda por todo canto, suja tudo, desobedece,
se enfurece e faz um grande ataque agressivo à mãe.
Em ambas as situações, está implícita
uma relação muito íntima, básica, fundamental,
cheia de ódio e amor, relação que, na verdade,
está se desfazendo para dar vez a um outro nível de
integração. Ali em Hampstead, pensou o analista, quis restabelecer
o vínculo narcísico imaginário com Freud, numa
tentativa que se revelaria de antemão fracassada. Como acabara
de lembrar, a relação da criança com seus dejetos
é muito peculiar, cheia de significados. Ela não os
dá de presente para qualquer um, em qualquer lugar. Pensou
que aí talvez estivesse a origem do fato de algumas pessoas
serem incapazes de evacuar a não ser em seus lares. É
comum pessoas entrarem em prisão-de-ventre ao viajar. Alegam
questões de higiene, limpeza, horários, sabe-se lá
mais o que, mas no fundo, é como se esta relação
de intimidade pressuposta para a evacuação remetesse
àquela faceta de presentear a mãe com algo valioso,
esta obra única que a criança produz. Assim, ao usar o banheiro da casa de Freud, fazia uma demonstração
de intimidade e proximidade amorosas. Ali estavam, não mais
separados por milhões de milhas, o gênio universal
de um lado e noutro o insignificante terceiro-mundista. Agora se
refazia o congraçamento de uma intimidade básica,
de uma inabalável unidade, de uma mônada. Mas era também um ataque de ódio por constatar
que estava quebrada aquela relação narcísica.
Era um ataque por ter de reconhecer que ele e Freud eram pessoas
diferentes, por não mais poder manter a fantasia de uma identidade
fundida e única, por ter de aguentar a inveja e a humilhação
frente a sua estatura magnífica. Assim, ele fazia cocô
no lugar e na hora errados, gerando embaraços e constrangimentos.
Partia ressentido, deixando bombas fétidas explodindo a casa
de Freud. Não fôra a toa que lembrara o assassinato
de John Lennon, isso seria uma outra evidência de quão
radical e violenta seria essa despedida, como despertara ódios
assassinos. O analista concluiu que sua vontade de aliviar os intestinos
tinha sido uma tentativa regressiva de negar a ruptura da identificação
com Freud, reafazendo-a, bem como um ataque invejoso e agressivo
por constatar o irreversível desta ruptura. Mas, pensou, se a ruptura implicava em perda e luto, também
indicava crescimento, autonomia, assunção do seu próprio
desejo, assim como a dor da solidão existencial. O analista já tinha chegado ao hotel, ao atingir
este ponto de suas cogitações. Sentiu-se contente
com elas, pareciam-lhe fazer sentido. Sabia que aquelas interpretações
provavelmente não esgotavam todos os significados envolvidos
no acontecimento, mas eram o bastante para aquele momento. Davam-lhe
a sensação de uma maior compreensão de si mesmo,
de novamente tomar nas mãos as rédeas de seus pensamentos
e poder transitar livremente dentro dos labirintos e meandros de
sua mente. Viu então que suas cogitações em torno
de suas visitas às casas de Freud chegara a um terceiro e
final estágio. Da idealização inicial que estabelecera
uma identificação narcísica imaginária
com Freud, passara por uma dolorosa ruptura desta identificação
que levara a um comportamento regressivo, de uma evacuação
cheia de significados agressivos. Agora sentia-se noutro nível. Ao utilizar os instrumentos
analíticos para entender tudo isso, retomava uma ligação
com Freud e com a psicanálise noutros termos, não
mais alienado no Grande Outro Freud, não mais o atacando
e destruindo para poder sobreviver e organizar sua própria
identidade, mas integrando e assimilando as coisas boas que ele
podia lhe oferecer, organizando-as de uma forma única e singular
em sua própria psique, capaz de pensar de forma autónoma.
Com alívio e tranquilidade, o analista deu por encerrado
esse episódio. Sabia que aquele sentimento de paz era passageiro,
que sua mente continuaria a produzir novos conteúdos que
gerariam ocasionalmente inquietações e angústias,
perplexidades que o levariam a analisá-los, num nem sempre
penoso trabalho de Sísifo. Enquanto se vestiam para o jantar, o analista e sua mulher
anteviam o prazer de reencontrar amigos ingleses no Virginia Woolf,
o restaurante do Russell Hotel, em Bloomsbury, o mais belo hotel
vitoriano de Londres. Matariam a saudade da doce música da língua
materna. Falariam português, pois os amigos tinham morado
muitos anos no Brasil e eram grandes admiradores de Machado de Assis,
o que deixava o analista muito orgulhoso. |
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