Volume 4 - 1999
Editor: Giovanni Torello


Abril de 1999 - Vol.4 - Nš 4

Viés, esse ilustre desconhecido

Autor: Antonio Carlos Lopes
Pós-graduando - EPM/UNIFESP

Comentada por alguns; desconhecida (ou esquecida) pela maioria. Talvez algum dia você já tenha escutado uma estranha palavra. Certamente soa estrangeira: muitos ainda hoje a chamam por "bias", no mais britânico inglês. Outros sequer a incluem em seus dicionários, embora traduzida e interpretada. V-i-é-s: o que é? A que serve?

Novamente voltamos àquele velho problema: como identificar possíveis fontes de erro naquilo o que lemos da literatura na área de saúde? Como delimitar quais as contradições existentes em certos estudos? Quais as chances daquilo o que lemos ser realmente verdade?

Uma alternativa para tentarmos resolver esse problema se dá pela análise do desenho metodológico empregado especificamente naquele estudo de nosso interesse. Abordamos melhor este tema em uma edição anterior deste periódico. Uma outra alternativa se faz por uma análise mais minuciosa das possíveis fontes de erro e contradições do trabalho em estudo. Aqui entra a noção de viés.

Sackett, 1979, adaptando a definição de Murphy, descreve viés como "qualquer processo em qualquer estágio de inferência o qual tende a produzir resultados ou conclusões os quais diferem sistematicamente da verdade". Em termos práticos, utilizamos esse termo quase como sinônimo de fonte de distorção ou erro no desenho, na execução, na análise ou na interpretação dos dados em um estudo.

Não possuo a pretensão de esgotar este tema, o qual é bastante amplo. Tenho aqui por objetivo comentar sobre alguns viéses freqüentemente observados em trabalhos publicados na literatura. Como na edição anterior, baseio meus comentários em determinado artigo; no caso, no excelente estudo de revisão de David L Sackett, 1979. Tentarei traduzi-lo para uma linguagem mais acessível a profissionais de saúde mental. A maioria de suas observações aplicam-se a viéses encontrados em estudos tipo caso-controle. Parte delas, no entanto, podem ser plenamente aplicáveis a outros desenhos metodológicos.

Estarei a seguir enumerando alguns viéses comuns:

1. Viés de prevalência-incidência (viés de Neyman)

Digamos eu que esteja estudando a relação entre doença tiroidiana pregressa e presença atual de depressão maior, em pacientes de um ambulatório, tentando extrapolar os resultados para a população geral. O primeiro problema em um estudo deste tipo seria o fato de que muitos pacientes, ou casos com depressão leve, ou muito graves (por exemplo, aqueles internados, ou que cometeram suicídio), nem chegariam ao meu ambulatório. Não poderíamos, portanto, extrapolar os resultados para o restante da população. Além do mais, alguns pacientes provavelmente já estariam sob tratamento da doença na tiróide no momento em que eu os examinasse, confundindo os resultados deste estudo.

Talvez estes problemas pareçam óbvios, porém freqüentemente encontramos estudos semelhantes cujas conclusões finais não levam em conta este viés.

2. Viés de taxa de admissão (viés de Berkson):

Voltando ao exemplo anterior: desta vez, eu quis comparar a presença de doença tiroidiana prévia em pessoas deprimidas da população geral. No questionário, eu perguntava se elas já tinham sido internadas, em decorrência da depressão. Para a minha surpresa, na análise dos resultados, digamos, por exemplo, que eu tenha encontrado a presença de doença tiroidiana muito mais freqüentemente entre aqueles pacientes os quais tinham sido internados. Por outro lado, os pacientes sem nenhum internação prévia apresentavam muito mais eventos estressantes anteriores ao transtorno do humor.

Logo, a presença ou não de certa condição anterior a um transtorno pode concentrar-se mais em um subgrupo da população estudada.

3. Viés de "desmascaramento" (sinal de detecção):

Se para "facilitar" a pesquisa eu procurasse pela presença de "tristeza" e tiroidopatia, na população, avaliando depois se estas pessoas "tristes" teriam ou não depressão, eu encontraria um grande problema. Provavelmente, eu faria muito mais diagnósticos de depressão, pelo fato de procurar sistematicamente depressão entre aqueles simplesmente "tristes". Conseqüentemente, encontraria também mais casos de tiroidopatia pregressa.

Ou seja: "uma exposição inocente pode tornar-se suspeita se, ao invés de causar uma doença, ela causa um sintoma ou sinal capaz de precipitar uma busca pela doença" (Sackett, 1979).

4. Viés "não-respondente":

Cansado de bater na porta da casa das pessoas, eu simplesmente enviei pelo correio um questionário para pacientes com e sem doença tiroidiana, avaliando se eles estão deprimidos. Ao final do estudo, 90 % dos indivíduos sem doença tiroidiana responderam, versus apenas 60 % das pessoas com doença. Como estariam os outros 40 % de doentes tiroidianos, em termos de depressão? É impossível prever. Teriam os casos de depressão mais tiroidopatia deixado de responder, por esterem muito mal?

5. "Membership bias":

Estava muito entediado, portanto quis facilitar a minha vida de pesquisador. Ao invés de procurar indivíduos representativos da população geral, eu simplesmente entrevistei alguns atletas do clube da academia perto de casa. Qual foi a minha surpresa? Eles virtualmente não tinham problemas importantes relacionados a depressão ou tiroidopatia! A razão é óbvia: tanto a depressão, quanto o problema de tiróide, supostamente comprometeriam o exercício da atividade física.

Ou seja: quando os indivíduos de uma pesquisa fazem parte de algum grupo específico, é possível que este grupo possua um nível de saúde diferente sistematicamente da população geral.

6. Viés da suspeita diagnóstica:

Finalmente, acabei percebendo que tinha sido muito displicente nas minhas pesquisas. Precisava encontrar pacientes com hipo ou hipertiroidismo. Soube que moradores de regiões distantes do mar, por ingerirem menos iodo na dieta, costumam desenvolver bócio e, eventualmente, hipotiroidismo. Qual foi minha "brilhante" idéia? Para cada indivíduo proveniente do interior, eu buscava incessantemente qualquer sinal ou sintoma de bócio ou hipotiroidismo. Colhia dosagens hormonais e pedia ultrassonografia de tiróide para todos, apenas para "confirmar" o diagnóstico. Ao final, gastei uma fortuna e fiz muito diagnóstico errado.

Resumindo: o fato de conhecermos que um indivíduo fôra exposto a um possível fator causal (exposição a certa epidemia, grupo étnico, uso prévio de certa medicação, região geográfica, possuir outra doença associada, etc.) pode influenciar tanto a intensidade quanto o desfecho do processo diagnóstico (Sackett, 1979).

7. Viés de suspeita de exposição:

Ainda inconformado com os meus resultados, e já pedindo dinheiro emprestado aos outros, decidi realizar minha busca no caminho oposto: tomei todas as pessoas com hipotiroidismo e procurei investigar quantas possuíam dieta pobre em iodo. Em uma primeira avaliação, perguntava a origem de cada indivíduo com bócio, verificava o tamanho da tiróide e os níveis hormonais. Numa etapa posterior, dosava os níveis de iodo na dieta original de cada um.

Ao final, mais uma "incoerência": encontrei muito mais gente com dieta pobre em iodo ao dosar seus níveis nos alimentos, do que quando apenas questionava a origem de cada paciente.

Logo, o conhecimento da doença do paciente pode influenciar tanto a intensidade quanto o desfecho relacionado à busca de uma exposição por um possível fator causal.

8. "Recall bias":

Já estava quase indo à falência nesse momento. Precisava publicar algo urgentemente para conseguir mais verbas. Decidi perguntar a pacientes hipotiroideos com história de depressão, comparando-os a indivíduos normais, sobre história na infância de sentimentos de rejeição ou exposição a catástrofes. Na verdade, a maior parte dos indivíduos já nem se lembravam se tinham se exposto a algo, ou se verdadeiramente tinham sido rejeitados. Aparentemente, no entanto, aqueles com doença atual tendiam mais a responder que tinham problemas na infância, em relação a pessoas sadias. Por fim, cheguei aos "brilhantes" resultados: pessoas hipotiroideas com história de depressão relatavam muito mais sentimentos na primeira infância de rejeição e exposição a tais catástrofes, comparando-os a indivíduos normais. Contente com o "brilhantismo" do meu trabalho, publiquei-o correndo em uma revista de psicologia de Kuala Lumpur e angariei mais fundos para pesquisa, embora com peso na consciência.
Resumindo: a lembrança de indivíduos de um grupo controle e de um grupo com doença podem diferir tanto em intensidade quanto em acurácia.

9. Viés de informação da família:

Já conhecendo os "truques" de como publicar com pouco dinheiro, tomei novamente aquele grupo de hipotiroideos deprimidos e fui investigar sua "herança genética" para transtornos do humor. Perguntava a todos os pacientes se seus pais tinham história de depressão. Observei uma quantidade enorme de relatos na família, segundo os pacientes. Curiosamente, ao questionar seus pais se eles tiveram depressão no passado, apenas alguns confirmaram o diagnóstico.
Portanto, a história familial pode variar marcadamente, dependendo se o indivíduo que oferece a informação é um caso (paciente) ou controle.

Os exemplos acima são meras caricaturas, muitas vezes grosseiras, de alguns erros os quais eventualmente encontraríamos publicados na literatura. Não nos esqueçamos, porém, que estes viéses aparecem muito mais freqüentemente do que imaginamos; por vezes, sutilmente passando despercebidos aos nossos olhos, publicados nas melhores revistas.

Cansado de tanto escrever besteira, decidi finalmente parar de pesquisar, voltando a estudar os bons e velhos livros de metodologia científica da faculdade. Peço desculpas pelo meu viés de retórica.

Bibliografia:

Sackett DL. Bias in analytic research. J Chron Dis 1979; 32:51-63.


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