Março de 1999 - Vol.4 - Nş 3
Psiquiatria
Baseada em Evidências
Avaliando
Resultados de Ensaios Clínicos: Noções Práticas
para o Profissional de Saúde Mental
Dr Antonio Carlos
Lopes Pós-graduando - EPM/UNIFESP
Na edição do mês passado da coluna
Psiquiatria Baseada em Evidências, inúmeros temas relacionados
a qualidade metodológica dos diferentes desenhos de estudo
foram levantados, de forma introdutória. Vários pontos
importantes, no entanto, deixaram de ser abordados, inclusive, e
principalmente, em decorrência da abrangência e complexidade
do assunto. Não houve a possibilidade, por exemplo em um
ensaio clínico, de abordarmos como, em termos práticos,
podemos diferenciar se uma determinada abordagem terapêutica
é superior a outra ou não.
O objetivo da edição deste mês é
justamente o de explorar, em uma linguagem se possível de
fácil acesso a profissionais de saúde mental, alguns
conceitos básicos necessários para a avaliação
dos desfechos clínicos em ensaios clínicos. Este texto
foi baseado essencialmente no trabalho de Guyatt e cols., 1994,
dos quais inúmeros exemplos foram adaptados à realidade
da Psiquiatria. Aos leitores mais assíduos, sugiro que aprofundem
seus conhecimentos nesse excelente artigo.
Em primeiro lugar, nunca é demais relembrarmos o
que é um ensaio clínico. Basicamente, chamamos de
ensaio clínico randomizado um desenho de estudo capaz de
ser utilizado para a avaliação de eficácia
clínica de diferentes modalidades terapêuticas. Tomando-se
um determinada amostra de indivíduos de uma certa população,
sorteamos de forma absolutamente aleatória cada componente,
de tal modo que cada pessoa faça parte de um entre dois (ou
mais) grupos experimentais. Acompanhamos, a seguir, prospectivamente
os grupos experimentais por certo período de tempo. Habitualmente,
no início, durante e ao final do experimento, avaliamos diferentes
variáveis relacionadas a certos desfechos clínicos.
Normalmente, determina-se que um primeiro grupo de indivíduos
receberá uma certa modalidade terapêutica a qual se
deseja testar (por exemplo, um grupo de pacientes depressivos o
qual tomará uma nova medicação). O outro grupo,
por sua vez, receberá uma modalidade terapêutica padrão,
ou um placebo (como pacientes depressivos recebendo "pílulas
de farinha"). Nem o médico, no caso, nem o paciente,
saberiam se iriam tomar antidepressivo ou "farinha". Ao
final do período de seguimento, compararíamos quantos
pacientes se beneficiaram em cada grupo (quantos melhoraram da depressão),
com cada uma das modalidades terapêuticas; quantos tiveram
efeitos adversos ou complicações, e quantos abandonaram
o tratamento, por quaisquer razões.
A primeira questão a ser levantada é se determinado
tratamento é eficaz. Entendemos eficácia por quanto
do efeito desejado foi obtido dentre aqueles que realmente receberam
uma dada intervenção. Apenas aqueles indivíduos
que cooperaram completamente com o estudo, do início ao fim,
entram na determinação da eficácia. A
efetividade, por outro lado, mede se determinado tratamento ou intervenção
ofereceu mais benefícios que malefícios, em todos
aqueles aos quais foi inicialmente oferecido. Neste cálculo,
encontramos tanto indivíduos os quais participaram do estudo
do começo ao fim, quanto aqueles que optaram por rejeitar
ou parar o tratamento.
Somente ao final do estudo, no entanto, na seção
de "resultados", encontraremos publicados (ou não)
os dados que nos permitirão aferir se determinada intervenção
é realmente eficaz ou efetiva. Em termos práticos,
algumas medidas simples são de grande valia ao examinarmos
um ensaio clínico.
Para comerçarmos a avaliação, averigüe
se é possível determinar qual foi a redução
de risco absoluto (RRA) da intervenção. O que isto
significa? Suponhamos que um transtorno psiquiátrico qualquer
(uma síndrome "X") fosse capaz de induzir o suicídio
em 20 % (0,2) dos pacientes por ela acometidos, quando tomassem
uma "pílula de farinha" - placebo (grupo controle).
Digamos que, com o uso de uma nova medicação, tivéssemos
observado a redução da taxa de suicídio para
15 % (0,15) (grupo medicação). Chamemos a taxa de
suicídio no grupo controle de "I", e no grupo medicação
de "J". Logo:
Quanto houve de redução no risco de
suicídio, no grupo que tomou a droga? Sem muita dificuldade,
podemos observar que obtivemos 5 % a menos de mortes por suicídio,
com a introdução da medicação. Em termos
matemáticos: I - J = 20 % - 15 % = 5 %. Estes 5 % representam
a redução de risco absoluto (RRA). Portanto:
Podemos avaliar também o impacto da intervenção
através do risco relativo (RR). No exemplo anterior, determinaríamos
o RR dividindo o risco de suicídio no grupo de pacientes
tomando a droga (J), pelo risco de suicídio nos pacientes
tomando "pílula de farinha" (I), ou seja, J/I =
15 % / 20 % = 0,15 / 0,20 = 0,75. O que isto significa? Na prática,
a chance de encontrarmos mortes por suicídio no grupo tomando
medicação é comparativamente 3/4 (0,75) da
chance no grupo controle (4/4, ou 1,00). Compare com a figura abaixo:
Ou seja: houve uma redução de 1/4 (ou 0,25)
nas mortes por suicídio com a introdução da
nova medicação. Este 1/4 representa o que denominamos
por redução no risco relativo (RRR). Logo:
RR = J / I |
RRR = 1 - RR = 1 - (J / I) |
Qual o valor prático destes conceitos? Sempre
que encontrarmos um valor de risco relativo abaixo de 1, como no
exemplo anterior (RR = 0,75), isto é indício de que
a intervenção em estudo (no caso, o tratamento novo),
ofereceu maiores benefícios do que a intervenção
padrão ou alternativa ("pílula de farinha",
no exemplo). Se o risco relativo fôr igual a 1, então
a intervenção em estudo teve os mesmos benefícios
da intervenção padrão (isto é, o tratamento
novo teve o mesmo efeito que "pílula de farinha",
se extrapolarmos para o exemplo anterior). Finalmente, quando o
risco relativo é superior a 1, encontramos um sinal de que
a intervenção em estudo é supostamente prejudicial,
quando comparada à intervenção padrão
(isto equivaleria, no exemplo, a dizer que o novo tratamento provocou
mais mortes que o uso de placebo). Dependendo do tipo de intervenção
em estudo, é muito freqüente que encontremos vários
ensaios clínicos semelhantes publicados sobre esta intervenção,
em diferentes épocas e em diferentes regiões do mundo.
Idealmente, os valores de RR dos vários trabalhos tenderiam
a ser semelhantes. Isto nem sempre ocorre, no entanto. O verdadeiro
valor de risco relativo (ou de redução de risco relativo)
não é precisamente conhecido, mas pode ser estimado
dentro de uma faixa de probabilidade. Esta faixa de probabilidade
pode ser calculada estatisticamente através do chamado intervalo
de confiança (IC) de 95 %. Ele é calculado mediante
a seguinte fórmula:
IC = RR +- 1,96 x Erro Padrão do RR |
Isto é:
Limite inferior do IC = RR - 1,96 x Erro Padrão
do RR |
Limite superior do IC = RR + 1,96 x Erro Padrão
do RR |
Qual o seu significado? Qualquer valor de risco
relativo que encontrarmos em um trabalho deverá oscilar na
faixa entre os limites inferior e superior do IC, em 95 % das vezes.
Continuando com o exemplo anterior, se incluirmos 100 pacientes
com a "síndrome X" para cada um dos 2 grupos descritos
acima, provavelmente cometerão suicídio 20 indivíduos
entre aqueles tomando placebo e 15 entre os utilizando a medicação.
Encontramos um RRR de 0,25. Este valor de RRR é uma estimativa
baseada nos dados preliminares deste estudo. Pode ser que este valor
de RRR não seja a verdade. Precisamos estimar dentro de qual
faixa poderia variar o RRR. De acordo com o cálculo acima,
o limite inferior do intervalo de confiança para o
RRR seria de -0,38 (ou seja, os pacientes tomando medicação
poderiam ter 38 % mais chance de morrer do que os controles!). Ao
contrário, o limite superior do IC seria igual a +59 %, indicando
que quem tomasse a droga teria quase 60 % a menos de chance de morrer!
Parece muito contraditório. Afinal de contas, vale a pena
ou não tratar com este remédio? Uma forma de
responder a esta pergunta seria aumentando o número de participantes
no estudo. Se usarmos 1000 pacientes (ao invés de 100) em
cada grupo, teremos 200 cometendo suicídio de um lado e 150
do outro. O RRR permaneceria igual a 0,25. O intervalo de confiança
do RRR para estas amostras grandes, no entanto, é de 9 %
(limite inferior) e 41 % (limite superior). Isto indubitavelmente
significa que vale a pena mesmo tratar com esta medicação,
se considerarmos apenas seus efeitos benéficos. Qual
a lição destes exemplos? Quanto maior o número
de indivíduos participando dos grupos de um ensaio clínico,
maior é a chance dos valores de RR e RRR deste estudo estarem
próximos da verdade.
Finalmente, o último conceito que merece ser abordado
é o de "número necessário para tratar"
(NNT). Retornando ao exemplo da "síndrome X", tendo-se
grupos experimentais com 100 indivíduos cada, teremos 20
suicídios no grupo placebo e 15 suicídios no grupo
com medicação. Logo, se tratarmos 100 pessoas com
medicação, estaremos evitando com que 5 delas venham
a se suicidar. Isto equivale a dizer que para cada 20 indivíduos
tratados com medicação, conseguimos evitar a morte
de 1. Estes 20 indivíduos representam o "número
necessário para tratar" (NNT). Como calcular o
NNT? Na prática, utilizamos a seguinte fórmula:
NNT = 1 / RRA = 1 / (I - J) |
Para que serve o NNT? Façamos de conta que
você tenha no seu consultório um tal paciente com essa
"síndrome X", porém de gravidade bem leve
e sem demais fatores complicadores no prognóstico. Digamos
que nestes casos leves se estime o risco de suicídio em um
ano em 1 %. Usando a nova medicação, você iria
reduzir o risco de suicídio para 0,75 % (ou seja, uma redução
de risco absoluto de 0,25 %). Ao se realizar o cálculo do
NNT, descobre-se que seria necessário tratar 400 pessoas
com esta síndrome, em um ano, para evitar com que apenas
1 morra. Por outro lado, imagine que esse seu paciente possuísse
uma "síndrome X" mais grave, ou com algumas intercorrências.
Neste caso, o risco de suicídio em um ano poderia passar,
digamos, a 10 %. Obteríamos uma redução de
risco absoluto de 2,5 % com o uso da droga. A cada 40 pacientes
tratados, com esta síndrome neste nível de gravidade,
evitaríamos com que 1 se matasse. E daí? Daí
que medicamentos possuem uma série de efeitos colaterais
e/ou complicações, sem contarmos o preço. Que
tal descobrir que 10 % dos seus pacientes terão arritmias
cardíacas, quando usando esse novo medicamento? Ou seja,
daqueles 400 pacientes com sintomas leves, tratáveis com
a medicação, 40 poderão desenvolver arritmias
(algumas, talvez, fatais), e somente 1 morte por suicídio
seria evitada. Valeria a pena expôr seus pacientes com gravidade
leve a esse remédio? Compensaria então tratar apenas
os casos graves?
Concluindo, não adianta um estudo afirmar apenas
que certa intervenção teoricamente funciona. Descubra
os valores de risco relativo, intervalo de confiança e NNT.
Seja mais curioso, ao investigar quais são os efeitos adversos
do tratamento. Questione se é possível realmente tirar
conclusões, estudando tão pouca gente. Não
se suicide: seu caso ainda tem esperança...
Bibliografia: Guyatt GH, Sackett DL, Cook DJ. Users'
guides to the medical literature - II. How to use an article about
therapy or prevention - B. What were the results and will they help
me in caring for my patient? JAMA 1994; 271(1):59-63.
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