![]() ![]() Volume 4 - 1999 Editor: Giovanni Torello |
Março de 1999 - Vol.4 - Nş 3 Delírio
de canibalismo em Esquizofrenia Paranoide - Relato de caso Luís
Antônio Batista Arenales*, Nelma de Hollanda Botti Arenales**,
e José Pestana Cruz*** Resumo O artigo relata um caso clínico de Esquizofrenia
Paranoide com delírio de canibalismo. São discutidos
os eventos psicossociais e suas relações com o delírio,
assim como sua conotação legal . O núcleo central
do artigo é o delírio de canibalismo, que leva a uma
difícil decisão clínica entre a internação
psiquiátrica ou o tratamento ambulatorial. Trata-se de um paciente submetido inicialmente a uma subdosagem
diária de medicamento - abaixo da preconizada como eficaz
- e o resultado era uma não remissão dos sintomas
positivos. Associado a este problema, existia o isolamento geográfico
do paciente, fato que dificultava o acesso ao local de tratamento.
Com a mudança do tratamento, que incluiu: visita
domiciliar, orientação familiar, e a medicação
neuroléptica em dosagem de 12,5 mg/dia de haloperidol (equivalente
de 625 mg de clorpromazina por dia), observou-se boa evolução
do paciente. Unitermos: Canibalismo; Esquizofrenia Paranoide Summary This article reports an illustrative case of Paranoia Schizophrenia
with a cannibalism delusion. The psychosocial events and its correlation
with delusion are discussed. Both the forensic connotation and the
Brazil legislation for Mental Disorder are also discussion. The framework of the paper is the cannibalism delusion
by which a hard physician' decision, between hospital setting and
outpatient treatment (confine or opened treatment), had to be made. In the end, the treatment issue was discussed. A daily
dosage, below the efficacious one, was remarked in the pretreatment,
with no remission of positive symptoms. The problem of the patient
residence, isolated from the main clinical facilities, is also addressed.
Nonetheless, a home treatment, family orientation and conventional antipsychotic medications in dosage of haloperidol 12,5 mg per day (625 chlorpromazine equivalents per day) resulted in the patient improvement. Key words: Cannibalism; Paranoid Schizophrenia. O presente trabalho relata um caso clínico com idéias
de canibalismo e suas dificuldades de tratamento. O tratamento inicial foi "indireto", dado a negativa
do paciente em vir à consulta e o isolamento geográfico
do mesmo. Os dados foram obtidos com a mãe, que cumpria as
orientações e levava a medicação até
o paciente. Trata-se de um homem de 28 anos, residente em área
rural, com 2º ano primário incompleto e sem atividades
laborais. As alterações do comportamento se iniciaram
por volta dos 22 anos. Previamente, aos 20 anos, havia saído
de casa em busca de trabalho. Quando voltou os familiares notaram
mudanças ("estava esquisito"). Mostrava medo de
tudo, e muitas vezes dormia ao pé da cama dos pais. Comia
pouco e quando ouvia um barulho qualquer dizia que homens viriam
para matá-lo. Também apresentava-se inquieto e andava
muito. Progressivamente, em aproximadamente seis meses, perdeu o
medo e passou a falar em matar toda a família - dizia querer
"matar a descendência". Ao mesmo tempo irritava-se
por qualquer coisa, até mesmo quando se lhe dirigia a palavra.
Quando irritado, xingava a todos, falava "atrapalhado"
e dizia que os pais "tiravam o poder dos padres". Seu
comportamento era arredio em relação aos familiares
e várias vezes dormia fora de casa ("no mato").
Dos 22 aos 27 anos passou por quatro internações
psiquiátricas. Neste período, sem que uma data definida
pudesse ser precisada pela família, passou a andar nos arredores
da casa e matava diversos animais. Matava cães, pintos, gatos,
filhotes de passarinho, cobras, etc. Foi visto algumas vezes retirando
cachorro morto de lixeiras, assim como arrancando pedaços
de gado morto para comer. Assava-os em fogueiras provisórias
no campo e comia-os. Com a pele fazia "casacos", vestindo-os
em seguida. Como episódio marcante, ao 25 anos quebrou a igreja
do bairro, alegando que o "santo piscou para ele". Neste
período também queimou uma casa construída
especialmente para ele. Esta casa foi uma tentativa familiar de
isolá-lo, pois ameaçava constantemente matar o irmão
(chegou a pegar um machado e foice, mas foi contido pelo pai, a
quem respeita). No momento dorme no paiol da casa. Há aproximadamente 1 ano, desde a introdução
do tratamento, houve uma redução dos sintomas positivos.
A família considera a melhora baseado em: "não
falar mais em matar os familiares e não comer mais bichos". ANTECEDENTES PESSOAIS E FAMILIARES DE RELEVÂNCIA
Gestação e parto sem intercorrências
e desenvolvimento neuropsicomotor normal. Relações extrafamiliares: tinha amigos, antes
do início do quadro. Atualmente não tem nenhum. Não
tem filhos e nunca teve experiência sexual. Pais vivos. Tiveram 10 filhos. A situação social é baixa. A família vive 'de favor' em terras de um conhecido. O pai trabalha como lavrador e a mãe e irmã cuidam da casa. O paciente pouco ajuda no trabalho doméstico pois alega que "não é serviço de homem". A renda familiar não chega a dois salários mínimos ao mês. EXAME PSÍQUICO Primeiro contato com o paciente em 30.01.98 em visita domiciliar.
Sua casa localiza-se em região isolada, o vizinho mais próximo
está há a aproximadamente um quilometro. Calmo, aceita a entrevista e o exame físico. Mantém
durante toda a entrevista, um esboço de sorriso, mas não
modula sua mímica de acordo com as mudanças de tema
no diálogo. Sua orientação temporal se baseia em referências
como: clima, estação do ano, etc. Não utiliza
o calendário usual. Seu discurso é marcado por pequenas interrupções
e pausas para conectar um tema ou responder uma questão.
Porém, responde de forma agregada. Apresenta suas idéias
de forma simples. Não existe uma plena ressonância
afetiva em relação à mudança destas
idéias. Questionado sobre a razão de comer carnes "exóticas",
responde: "Aprendendo a matar fico mais inteligente e se como,
também. O conhecimento está no bicho...em quase todos
os tipos de bichos...nunca fiquei doente...queria experimentar para
ver se é doce...". Perguntado o por quê bichos?:
"Pelo pêlo que serve para guardar" (já foi
observado utilizando as peles de animais como vestimenta). Observa-se juízo delirante de influência e
de comer carne animal como método de aquisição
de conhecimentos. A função do alimento transcende
a de energético ou para saciar a fome. Não foi possível
caracterizar as vivências delirantes primárias. Sobre a carne humana nega que tenha experimentado, mas
refere a idéia de come-la "para ver se é doce".
A mãe acrescenta (confirmado por outras testemunhas) que
chegou a rondar a escola do bairro e dizia que a "única
carne que não tinha experimentado era de gente e que iria
experimentar". Quando interrogado sobre a comida na sua casa: "era
arrumada (ou seja, acredita que tinha coisas para matar-lhe)...então
ia na lixeira buscar cachorro". Segundo a mãe, recusava
sua comida jogando-a no lixo. Refere que sua vontade é controlada externamente.
Nega alucinações auditivas. Humor com paratimia, afeto embotado e retraimento no contato.
Mostra sinais de lentificação motora, mas
sem sinais de parkinsonismo secundário. Em entrevistas sucessivas (e a instauração
de doses terapêuticas do neuroléptico), apresentou
melhora dos sintomas positivos. Durante todas as entrevistas, nunca apresentou alterações de impulsos. Sempre manteve-se sem nenhuma consciência da enfermidade. EXAME FÍSICO GERAL - sem anormalidades dignas de nota. DIAGNÓSTICO Eixo I: Esquizofrenia Paranóide com remissão incompleta do delírio. DISCUSSÃO O paciente cumpre os critérios para classificá-lo
como um Transtorno Esquizofrênico tipo Paranoide (CID-10,
1993). A questão torna-se complexa quando tentamos compreender
as razões de seu delírio, pois sua relação
com o alimento não resume-se em uma busca energética
ou de prazer. Primeiramente, a compreensão simbólica do
delírio deve ser analisada em toda sua complexidade. As carnes
que ingere assumem um significado de obtenção de conhecimento
do animal, de poder degustar novos sabores e de utilizar a pele
do animal como um troféu. Em segundo lugar, deve-se ressaltar a situação
médico-legal do caso. Ao receber as primeiras informações
do paciente, através da mãe, a preocupação
principal era seu comportamento e o interesse verbalizado de comer
carne humana. Havia um fato real, relatado pela mãe e confirmado
por testemunhas, que o paciente estava rondando a escola do bairro
e falava em comer carne humana. Como último fator relevante a ser considerado, discute-se tratamento de um quadro de Esquizofrenia grave com residência em zona rural. Sobre o delírio Na definição do delírio está
implícita sua incompreensibilidade. É uma falha de
rendimento. Porém, seu conteúdo é pessoalmente
relevante porque se relaciona com o indivíduo. Além
disso, o conteúdo delirante incluiria todos os interesses
vitais e conteúdos mentais humanos (Jaspers, 1985). Desta forma, é possível uma abordagem do
delírio através dos aspectos sociais do paciente.
O paciente vive em uma região montanhosa, em zona rural,
onde o vizinho mais próximo vive a aproximadamente um quilômetro.
Encontra-se isolado das atividades da cidade. Tais aspectos associados
à baixa renda familiar, impulsionaram o paciente a buscar
emprego em outras cidades. Esta ruptura de seu núcleo familiar
pode ter sido o fator precipitante do quadro esquizofrênico.
Tal fato foi confirmado temporalmente na história clínica.
No entanto, o conteúdo do delírio não
pode ser explicado unicamente por fatores sociais. A presença
de isolamento social e o decréscimo acentuado das competências
sociais no esquizofrênico paranóide já existem
muito antes da eclosão do surto. Para alguns autores, existiria
um isolamento pré-morbido próprio da esquizofrenia,
com histórias de inadaptação social e emocional
infantil e juvenil, sentimentos de inadequação social,
perturbação da relação com os iguais
e tendência para a introversão e culpabilidade (Cruz
e Borda Más, 1997; Lieberman, 1993). O isolamento social e residência rural associados
a estes fatores pré-morbidos, de certo modo podem explicar
as práticas alimentares de busca de animais silvestres. Mas
ainda não explicam o interesse pela carne humana. O interesse pela carne (animais e humana) pode estar relacionado
com a inadequação infantil e com a identificação
com os animais. E que por sua vez está relacionado com o
conteúdo do delírio. O paciente exprime a convicção
de que ao comer os animais transfere para si o seu conhecimento
e habilidade. Trata-se assim de uma incorporação e
assimilação do lado positivo destes. Freud (1972) em "Totem e Tabu" refere a presença do canibalismo como uma via para obtenção do poder e habilidades do inimigo ou do pai. Benezech (1981) também refere a presença do canibalismo na linguagem cotidiana, como metáforas, e afirma que a idéia é mais básica em nossas vidas do que poderíamos imaginar. Sobre os aspectos médico-legais. O eixo da conduta a ser tomada girava no tratamento médico
a ser instaurado e na proteção dos demais indivíduos
da sociedade (Conselho Federal de Medicina - CFM, 1994). Benezech et al (1981) ao apresentar um caso semelhante,
assinalam que apesar de seu paciente em questão ter agredido
duas pessoas antes de crimes maiores, estes foram ignorados pelas
autoridades. Portanto, se faz de suma importância avaliar
cuidadosamente tais casos, com o intuito preventivo. Moura (1996) fala de autores de crimes (esquizofrênicos)
que são cometidos devido a irresponsabilidade e alta periculosidade.
Para a legislação brasileira o conceito de periculosidade
é generalizado e, confere ao criminoso e ao doente mental
a qualidade similar de potencialmente perigosos (Cohen, 1996). Assim, na linha de investigação da periculosidade,
a criminologia fornece algumas bases para a discussão. A
criminologia é a ciência da passagem ao ato delituoso.
E entende que todo homem em circunstâncias excepcionais, pode
tornar-se delinqüente. Porém, para uns, esta passagem
é simples, enquanto para outros é complexa. Entre
estes dois pontos, existem os estágios intermediários.
Assim, o que distinguiria o criminoso do não criminoso seria
esta "aptidão" mais ou menos pronunciada a passar
ao ato. E neste processo, diversos aspectos estão implicados
como: debilidade emocional que geral limitação na
função moral, egocentrismo, e agressividade (Da Costa,
1997). No caso do paciente a avaliação destas dimensões: periculosidade e mecanismos de contenção, levou a opção de um tratamento ambulatorial. O início do tratamento consistiu de entrevistas com a família e visita domiciliar. Sobre o tratamento Inicialmente o tratamento foi instaurado com informações
fornecidas pela mãe, uma vez que o paciente recusava-se a
comparecer no centro de saúde. Após a primeira visita
domiciliar e a obtenção de uma história completa,
houve um aumento progressivo da medicação (haloperidol)
(625 mg equivalente de clorpromazina, segundo Bueno (1985). Esta
dosagem é mantida até a atualidade. Após este
aumento, o paciente apresentou melhora global da sintomatologia,
principalmente do delírio de influência, desejo de
ingerir carnes "exóticas" (humana e animais), heteroagressividade,
sono, inquietação psicomotora, sociabilidade para
com os familiares e conseqüente aceitação do
atendimento ambulatorial. Para os familiares foi oferecido o Grupo de Orientação
para Familiares de Esquizofrênicos. Apesar da dificuldade
de acesso desde a zona rural até a cidade a mãe participou
uma vez deste grupo. Se observou assim, que a manutenção com antipsicóticos com dosagem adequada resultou em melhora clinica importante (Dixon et al, 1995; Marder, 1996). Mas, mesmo após instaurado este tratamento, não está sendo possível um trabalho de reabilitação psicossocial. A orientação familiar também está incompleta. No entanto, os familiares ao observarem a melhora do comportamento violento e alimentar, se mostram efusivamente satisfeitos com os resultados do tratamento. Conclusão Os delírios esquizofrênicos se apresentam
polimorfos e influenciados por aspectos pessoais e culturais do
indivíduo. Uma compreensão de forma abrangente, assim
como o diagnóstico clínico preciso, nos auxilia no
planejamento terapêutico completo. Neste caso, os aspectos de isolamento social influenciaram
na patoplastia do quadro, e também produziram, e produzem,
dificuldades para o paciente aceder aos serviços de saúde
(difícil acesso geográfico). No caso apresentado, além da preocupação
em tratar o indivíduo, existe a implicação
médico-legal. O risco para a população vizinha
existia (e existe), mas o tratamento procurou ser o menos intervencionista
possível. Porém, a preço de um risco para outros
indivíduos. Endereço dos autores: Referências bibliográficas
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