Novembro de 1999 - Vol.4 - Nş 11
APA (ou de como conheci a Ilha do Caju)
João Paulo
Consentino Solano
Como dizem os livros de geografia, há no continente
americano apenas um delta voltado para mar aberto. É o delta
do Rio Parnaíba, onde existem numerosas ilhas quase intocadas,
dentre as quais talvez a mais charmosa seja a Ilha do Caju. Tudo
isto fica aqui no Brasil mesmo inclusive segundo modernas e mundialmente
aceitas publicações de geopolítica às
quais podemos ter acesso neste final de século XX.
Há algumas semanas atrás, nitidamente influenciado
pelos rumores escatológicos que cercavam o dia 11 de agosto
de 1999 - cercavam, não; antecipavam, antecediam procurei
um esotérico. Não sei se era um futurólogo,
ou terapeuta de vidas passadas, pois já faz tempo que comecei
a me sentir confundido com essa noção de... tempo.
Procurei o ser mutante, que ficava bravo se lhe chamassem de esotérico
e se anunciava na mídia como um "terapeuta holístico",
e lhe fiz uma pergunta que, a julgar pela expressão de surpresa
muda de sua fisionomia, este terapeuta nunca tinha ouvido. Perguntei-lhe
assim:
- Olha,
senhor...
- Senhor,
não; doutor...
- Sim,
Dr., olha... eu sou psiquiatra. Antes que o mundo acabe, eu
gostaria de saber se eu já fui psiquiatra em outra vida...
- No
futuro ou no passado?
- Bem,
tanto faz. Mas, como estou-lhe perguntando se já fui,
e como estão dizendo que o mundo acaba este mês,
o Sr. Dr. pode investigar só o passado... que eu já
ficarei o resto da vida satisfeito.
A pergunta era propositalmente capiciosa. Diferente do
que se lhe costumavam perguntar seus outros clientes. Ah! Afinal,
por que só eu, que não sou vidente como tanta gente
é hoje, ía ficar me preocupando com o rangir de assoalho
do Apocalipse às portas? Eu queria ver em mais alguém
um olhar assustado... Queria ver se o homem se embananava mesmo.
E pela mímica facial de meu consultor, estática e
tensa, percebi estar no caminho adequado.
- Bem,
para fazer a pesquisa, precisarei fazer você regredir
a todas as suas vidas passadas.
- Pode
fazer, disse eu. Quantas sessões o senhor doutor vai
querer? Seria bom começar hoje, e liquidar o assunto
em poucas sessões... Não sei se o doutor está
lembrado, mas certamente está, que tanto eu como o senhor,
digo, doutor, só temos mais alguns dias nesta vida.
- Xá
comigo, disse o doutor.
O serviço
foi feito ali, todo no mesmo dia. Meu terapeuta decidiu que, dado
à pressa em que atualmente vivia a humanidade, no frigir
de seus últimos ovos, bastaria uma sessão. Fizemos
um, assim chamado, pacote-terapêutico-condensado, e terminamos
depois de uma hora ou que tal.
Posso
garantir que a regressão a vidas passadas é um procedimento
ultra-especializado, complexo, porém, indolor. (Esta é
justamente a sua vantagem).
- Descobri!
Aqui está você, doutor JP, em uma de suas vidas
passadas e... sim... você era um psiquiatra; com outro
nome, claro, tanto seu, como da sua profissão...
Claro que era necessário pedir a ele alguns detalhes.
Ele podia ser até um charlatão...Queria ser chamado
de Dr., mas podia não ser!.. O homem podia nem saber o que
é um psiquiatra e qual a rotina diária de um especialista
desses na Medicina de hoje!.. Mas quando pedi a ele que fosse menos
enigmático sobre o quê que ele estava vendo, minhas
dúvidas foram plenamente dirimidas. Com muita relutância
(pois dizia que queria proteger-me), o homem descreveu o que via
e eu reconheci que meu terapeuta sabia bem quais eram as rotinas
e as vicissitudes em minha profissão.
- Dr.
Jota, preferia não contar o que estou vendo...
- Por
quê?
- Para
protegê-lo
- Proteger-me?
De quê?
- De
o senhor ficar meio envergonhado... Na realidade, vejo uma situação
meio embaraçosa para o senhor...
- Realidade?
O doutor exótico esotérico holístico aí
tá pensando que se não contar, eu vou acreditar?
Bem,
aí o homem contou:
- Eu
vejo que sim, numa de suas outras vidas, o senhor também
foi psiquiatra. Estou vendo o senhor no aeroporto, tentando
comprar um bilhete de última hora para ir... deixa eu
ver... O senhor tem certeza de que quer ouvir isto?
- É
claro, senão eu não estaria aqui!- gritei, quase
alucinado. E ande logo, pois o seu tempo está acabando,
idem a minha paciência eu disse, com uma silenciosa
sensação de "deja vu" se me insinuando.
- O
senhor está no balcão de uma companhia aérea,
querendo ir com um dia de atraso para um congresso anual no
exterior... nos Estados Unidos! Que legal, hein, buddy? Super-massa!
Mas o senhor está bem atrapalhado. Ih, o senhor tá
fulo mesmo; uma fera e é com o Laboratório...
não sei, tem uma nuvenzinha bem em cima de um nome complicadérrimo...
- Tudo
bem, mas eu estou fulo por quê?
- Porque
esse tal laboratório não quis pagar sua passagem,
como fez para colegas seus que, numa hora dessas, já
estão lá numa boa. Mas o pior ainda está
por vir. O senhor quer que eu continue?
- Ou
você anda logo ou eu vou denunciá-lo às
competentes autoridades brasileiras, quero dizer, às
autoridades brasileiras competentes para cassar o charlatão
aí!
- Na
vida em questão, o senhor é um psiquiatra meio
famoso. Tá bonito, incrível! De terno e gravata,
grisalho, punhos fechados sobre o balcão, um pouco exaltado
com a moça.
- Por
que eu estou exaltado?
- Porque
a moça não entende bem o seu sotaque. O doutor
ficou quatro anos na Inglaterra, fez várias pós-graduações
e, apesar de ser brasileiro, nunca mais perdeu o sotaque de
britânico tentando falar português! Incrível,
né? O senhor, agora, disse pra funcionária:
"Rápido,
purreciso de um ticket parra irr ao APA", ao que lhe respondeu
a mesma:
"Como
disse, Sr.?"
"Querro
irr ao APA", tirando do paletó um panfleto com letras
garrafais;
"Sr.,
desculpe, estou entrando, mas nossos computadores não
reconhecem este destino...apa? De que se trata?"
"Não
é APA, sua barrassileirra sem culturra! A porronúncia
é Eipiei, entendeu agorra?"
"Sim,
desculpe, mas o Sr. deve dirigir-se à próxima
companhia aérea, no balcão à sua direita;
apenas eles operam este destino a esta hora. Em chegando-se
ao balcão, porém, o Sr. não deve falar
em Eipiei; Maria, me empresta um papel e uma caneta; não
se preocupe... é difícil mesmo para o povo de
língua inglesa pronunciar... Pronto, está aqui:
o Sr. peça Piauí!"
João
Paulo Consentino Solano Telefones 867.9753 (consultório,
São Paulo, SP) 9622.6216 Pager 534.0737 Cód
4191069
P.S. Por ocasião do XVII Congresso Brasileiro de
Psiquiatria, este autor conheceu o trabalho que o prof. Adalberto
Barreto realiza na comunidade de Quatro Varas, Fortaleza, Ceará;
embora este ,e aquele lugar referido no texto, estejam separados
por centenas de quilômetros, o autor acredita ser válido
compará-los porque em ambos o ser humano tem a possibilidade
de executar um EXERCÍCIO DE LIBERDADE. Àquele professor
doutor, pois, e a sua equipe, e ao seu trabalho, fique esta crônica
dedicada.JP.
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