Volume 3 - 1998
Editor: Giovanni Torello


Dezembro de 1998 - Vol.3 - Nº 12

Culture-bound syndromes

Mário D. M. L. Mateus

Culture-bound syndromes (CBS) ou "síndromes ligadas à cultura" é uma expressão pouco utilizada em nosso meio, sendo no entanto frequente em trabalhos de antropologia e da psiquiatria transcultural (também chamada cross-cultural ou etnopsiquiatria).

Com a inclusão do termo no nono apêndice do DSM-IV, "Plano para formulação cultural e glossário para síndromes ligadas à cultura" (APA, 1995, p.793), seu uso possivelmente tenderá a crescer, o que torna oportuna uma revisão dos conceitos ao redor das CBS.

 

O termo CBS foi primeiro utilizado pelo psiquiatra chinês P. M. Yap (1965), de início referindo-se a culture bound psycogenic psychosis, sendo a partir daí adotado no lugar de termos como psicoses étnicas, neuroses étnicas, psicoses histéricas, exóticas ou atípicas e síndromes reativas à cultura (Hughes, 1996a).

Tradicionalmente, a expressão foi relacionada com síndromes exóticas e raras de povos "primitivos", merecendo nos compêndios de psiquiatria apenas uma menção à titulo de curiosidade. Somente nas últimas décadas as CBS receberiam maior atenção no estudo da influência da cultura sobre os transtornos mentais em geral.

Os textos que empregam esta expressão na sua grande maioria são descrições de CBS específicas (ver tabela 1), que frequentemente não especificam qual a definição de CBS adotada, ou revisões sobre tema, nas quais sobressaem-se as críticas a:

  • A diversidade de empregos para o termo;
  • A validade do conceito;
  • Questões metodológicas nos trabalhos que apresentam CBS.

Apresentaremos a seguir algumas características das CBS, balizados pelos comentários críticos ao conceito por diversos autores.

CBS: um conceito controverso

A psiquiatria transcultural pauta-se desde seu inicio por um debate central, a universalidade versus especificidade cultural dos transtornos mentais (por exemplo, Dalgalarondo, 1996).

Esta dicotomia é relacionada as duas maneiras da psiquiatria cultural construir seu objeto de estudo: etic e emic, termos oriundos da distinção entre fonética e fonémica, na linguística (Favazza & Oman, 1984). Na abordagem etic o objeto é definido pelo observador que passa a procurá-lo em seu campo de estudo (partindo-se assim do pressuposto que e este objeto tem características universais), já na abordagem emic o objeto de estudo surge da observação de campo (sendo esta descrição válida apenas para o campo em que foi descrito).

Estes dois pontos de vista ? que no entanto tem sido criticados por não darem conta, isolados, dos achados das pesquisas de psiquiatria transcultural (por exemplo, Patel, 1995, Jilek & Jilek-Aall, 1985). ? estarão também presentes nos diferentes conceitos da expressão CBS.

Podemos encontrar o termo CBS como referindo-se à:

  • Síndromes específicas, cuja causa estaria relacionada exclusivamente a fatores culturais presentes nas sociedades aonde foram descritas.

Este ponto de vista foi nomeado por Hanh como exclusivista, que o autor considera ignorar fatores orgânicos e ambientais possivelmente presentes nas referidas síndromes , repetindo assim de forma invertida o erro do chamado reducionismo biomédico.

Na realidade as CBS definidas desta forma referem-se em geral à quadros reativos (de natureza neurótica ou psicótica, de acordo com o quadro ou com o autor) a conflitos gerados por exigências de uma dada cultura, sendo que ao mesmo tempo esta cultura também gera padrões de comportamento ? entendidos pela comunidade como doentios ou não ? e que são uma maneira de lidar com estes conflitos. Deste modo, por exemplo, uma mulher na sociedade indonésia, com um conflito gerado pelas rígidas normas de obediência que deve prestar a seu marido teria no latah uma forma culturalmente determinada de expressar seu sofrimento e obter ajuda.

Ritenbaugh (1982) propõe 4 critérios para definir uma CBS que vão de encontro a esta definição:

  1. A síndromes não pode ser entendida fora de seu conteúdo cultural ou subcultural.
  2. A etiologia desta sumariza e simboliza significados centrais e normas de comportamento da cultura.
  3. O diagnóstico apoia-se nas técnicas e ideologias específicas da cultura.
  4. O tratamento só será inteiramente bem sucedido se conduzido por participantes desta cultura.

2. Variações, numa dada cultura, de quadros em sua essência universais.

Por esta abordagem, o amok seria a expressão, influenciada pela cultura, de um surto psicótico breve e muitos casos de latah a expressão do transtorno de Tourette. Podemos dizer que este uso vai de encontro à divisão entre fatores patoplásticos e patogênicos utilizada por vários autores (Littllewood, 1986)

Ligado a este ponto de vista esta o conceito de idiomas de sofrimento (Nichter, 1981) que refere-se as maneiras possibilitadas por uma cultura de seus membros expressarem mal estar e a desadaptação..

3. Nomeações locais para quadros universais,

Como por exemplo no uso dos termos nervoso e loucura para certas patologias.

Este uso remete ao conceito de modelos explanatórios locais (Kleinmam, 1980) e ao diagnóstico ou nomeação popular.

As CBS entendidas desta maneira são criticadas por Low (1985), que argumenta o nervios estudado pela autora na Costa Rica e nervios estudados, na Guatemala e em Porto Rico e o nerves estudados em diferentes regiões nos EUA tem todos atribuições causais e interpretações culturais diferentes entre si, apesar de apresentarem sintomas muitas vezes semelhantes. A autora sugere a substituição do termo CBS por sintomas culturalmente interpretados.

Neste sentido, Prince (1985) sugere que o conceito de síndrome deve ser retomado, restringindo-se as CBS aos conjuntos de sinais e sintomas de uma doença e não modelos explanatórios ou tratamentos recebidos numa dada cultura. O mesmo autor também recomenda uma restrição do termo à síndromes aonde as diferenças propostas são de natureza psicossocial (excluindo assim síndromes ligadas prepoderantemente à fatores ambientais como um agente infeccioso ou um padrão alimentar especifico, por exemplo). Ou seja, como Hahn (1985), Prince argumenta que o fato de uma sociedade conceber de uma maneira peculiar um comportamento referente, por exemplo, à esquizofrenia, não faz da esquizofrenia outra síndrome, existente apenas nesta sociedade.

Pfeiffer (1985) argumenta que a impossibilidade de organizar as CBS num quadro uniforme vem de que a influencia da cultura sobre as causas, formação e interpretação dos transtornos mentais se dá em diferentes dimensões, que o autor enumera como:

  • Áreas de estresse especificas de cada cultura, como as ligadas a estrutura familiar e social, ao ambiente e à tecnologia disponível, ênfase
  • Padrões de conduta (e padrões de conduta desviante ou doente) esperados, enfatizados e coibidos em cada cultura.
  • Interpretações do comportamento desviante em cada cultura.
  • Intervenções sobre o comportamento desviante em cada cultura.

A validade do conceito de CBS

As dificuldades a respeito das CBS vão além da variabilidade em seu conceito, chegando a uma controvérsia sobre sua validade.

Um dos maiores estudiosos do assunto, charles Hughes (1996b) questiona o que para ele são os dois princípios ontológicos básicos das CBS :

  • As CBS são uma classe única e distinta de fenômenos de interesse psiquiátrico, e não objetos de uma diferente rotulação apenas.
  • Tais síndromes afligem somente, ou principalmente, "os outros", referidos como grupos ou minorias étnicas.

Primeiramente, e esta parece ser a principal crítica ao termo, ao empregá-lo pressupõem-se que a existência de síndromes não ligadas a cultura, ou seja toda a tradicional nosografia descrita pela psiquiatria ocidental seria então neutra para a influência da cultura, ao contrário das CBS.

Quanto ao segundo princípio, o mesmo autor lembra da possibilidade de inclusão da anorexia nervosa ou do padrão de personalidade de tipo A (relacionada a maior risco de doença coronariana) (Helman, 1987) como CBS pertencentes à cultura ocidental européia/norte-americana. De modo semelhante, problemas ligados ao desajuste na adolescência também foram propostos como CBS pertencente à cultura ocidental (Hill et al., 1992).

Problemas metodológicos

Também são criticadas a grande variabilidade e qualidade desigual das descrições das síndromes; possíveis fatores de confusão como concomitância de outras doenças (como infeções crônicas e endêmicas em certos países empobrecidos; falta de estudos prospectivos e populacionais sistemáticos que pudessem identificar os sintomas centrais de cada síndrome (Wintrob, 1996).

As CBS no DSM-IV e CID-10

Este debate foi intensificado com a adoção do termo pelo DSM-IV, em seu apêndice I, que na tradução brasileira foi denominado "síndromes ligadas à cultura", definido como "padrões de comportamento aberrante e experiência problemática recorrente e específicos da localidade, que podem ou não estar ligados a uma determinada categoria diagnóstica do DSM-IV" (APA, 1995, p.794). O mesmo apêndice apresenta a seguir um glossário com 25 "síndromes ligadas à cultura e idiomas de sofrimento".

O glossário do DSM-IV, não se define por nenhuma das concepções das CBS acima mencionadas, listando síndromes delimitadas ao lado do que nos parece mais próximo de modelos explanatórios como o "trabalho" (feitiço) ou o "sangue dormido" e simples terminações populares como "nervos" ou "loucura". Ao mesmo tempo opta por juntar o conceito de idiomas de sofrimento (Nichter, 1981) as CBS, sem diferencia-los nos itens do glossário.

No cid-10 o termo CBS não é utilizado. O latah, o koro, e o dhat ? síndromes comumente entendidas como CBS ? estão incorporadas à classificação em geral no item F48.8, "Outros transtornos neuróticos especificados", com o comentário de se tratarem de "transtornos mistos de comportamento, crenças e emoções que são de etiologia e status nosológico incertos e que ocorrem com particular frequência em certas culturas..." (OMS, 1993, p.169)

Conclusões

Apesar de toda controvérsia a respeito de seu uso, as CBS guardam em si aspectos positivos, pois promoveram o estudo das influências da cultura nas patologias mentais, contribuindo para o debate a respeito da universalidade das doenças mentais e, mais ainda, se esta universalidade que porventura haja equivale necessariamente ao descrito pela nosologia médica européia/norte-americana durante o último século.

Tabela 1: Exemplos de trabalhos propondo ou discutindo aspectos de CBS específicas.

Autor

Cbs

Cultura estudada

Yap(1965)

koro ou suo yang

Malásia e China

Murphy (1976)

latah

Malásia e Indonésia

Ritenbaugh (1982) e Lee (1996)

anorexia nervosa

Ocidente

Low (1985)

nervios

Costa Rica

Prince (1985)

brain-fag

África Ocidental

Helman (1987)

padrão de comportamento tipo A

Ocidente

Kirmayer (1991)

taijin kiofusho

Japão

Carey (1993)

manchariska

Peru

Baer & Bustillo (1993)

susto e mal de ojo

México

Pal, S. (1997)

amok

Papua Nova Guiné

Grisaru et al (1997)

zar

Etiópia, entre outros países africanos

 

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