Volume 3 - 1998
Editor: Giovanni Torello


Fevereiro de 1998 - Vol.3 - Nº 2

Tratamento da Discinesia Tardia Induzida por Neurolépticos

    Comentários: Ana C Chaves

    Karla Soares*
    * Professora Adjunto Visitante, Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP.

Introdução

Discinesia tardia (DT) é uma síndrome extrapiramidal induzida por neurolépticos, caracterizada por movimentos involuntários, anormais e repetitivos localizados principalmente na região orofacial, tronco, extremidades inferiores e superiores, podendo acometer inclusive o sistema respiratório (APA, 1992). DT acomete pelo menos 20% dos indivíduos em uso de neurolépticos, com taxas de incidência para novos casos de aproximadamente 3 a 5% ao ano. Essa incidência parece ocorrer de maneira cumulativa e chegar a 30% entre os idosos expostos ao uso crônico de neurolépticos (Kane, 1995). Além das drogas neurolépticas, outros fatores que têm sido relacionados ao aparecimento e prognóstico da discinesia tardia são: idade, gênero feminino, co-morbidade psiquiátrica, presença de outros transtornos extrapiramidais na fase aguda do tratamento com neurolépticos e diabetes (Kane, 1995).

Vários fatores são responsáveis pela variabilidade observada nos sintomas de discinesia tardia, principalmente o possível mascaramento dos sintomas causados pelo aumento na dose de neurolépticos, além dos potencias efeitos de medicação concomitante, remissão espontânea dos sintomas e/ou baixa aderência ao tratamento.

Em função da complexidade dessa síndrome, diversas teorias fisiopatológicas têm sido sugeridas, de maneira geral implicando um ou mais neurotransmissores no aparecimento dos sintomas de DT. No passado, acreditava-se que o uso crônico de neurolépticos provocasse uma hipersensibilidade dopaminérgica na região nigro-estriatal que levaria ao surgimento dos sintomas de discinesia tardia (APA, 1992). Entretanto, essa hipersensibilidade não explica a susceptibilidade individual para desenvolver discinesia tardia e passou-se então a investigar a ocorrência de possíveis alterações concomitantes nos neurotransmissores colinérgicos, GABA-érgicos e serotoninérgicos. Mais recentemente, tem-se sugerido que o uso crônico de neurolépticos causaria uma superprodução de radicais livres de oxigênio com conseqüente degeneração neuronial (Cadet e Lohr, 1989). Essa degeneração, à princípio reversível, resultaria em lesões irreversíveis dos neurônios nigroestriatais, com conseqüente morte celular, e o aparecimento da discinesia tardia.

Em função de tantas hipóteses o tratamento da DT tem sido associado com um certo niilismo terapêutico, como evidenciado pelo uso de 114 diferentes intervenções testadas em mais de 300 ensaios clínicos nas últimas quatro décadas (Soares e cols, 1996).

Nos últimos 3 anos temos avaliado, através de revisões sistemáticas e meta-análises, todas as intervenções utilizadas no tratamento da DT a fim de:

  1. informar psiquiatras, pacientes e demais usuários dos serviços de saúde mental sobre as evidências disponíveis para o tratamento da DT;
  2. auxiliar pesquisadores na identificação das áreas onde novas pesquisas deveriam ser incentivadas a fim de melhorar o nosso conhecimento sobre o tratamento da discinesia tardia.

Os métodos e resultados mostrados a seguir fazem parte de uma série de revisões sistemáticas publicadas através do Cochrane Schizophrenia Group (Cochrane Library, Issue 1, 1998) e disponíveis também no site da Cochrane Library (http://www.cochrane.co.uk).

Metodologia

Identificação dos ensaios clínicos: com o objetivo de localizar todos os possíveis ensaios clínicos controlados foi conduzida pesquisa eletrônica com metodologia apropriada em sete bancos de dados (Biological Abstracts, Cochrane Library, Embase, Lilacs, Medline, Psyclit e Scisearch); além de, pesquisa manual das referências de todos os ensaios clínicos identificados; e correspondência com o principal investigador de cada estudo incluído.

Critérios de inclusão dos ensaios clínicos: Todos os ensaios clínicos randomizados e controlados com placebo, nos quais alguma intervenção foi proposta para reduzir os sintomas de DT induzida por neurolépticos. A qualidade metodológica desses estudos foi avaliada através dos critérios do Cochrane Handbook (Mulrow & Oxman, 1996-) que leva em consideração o procedimento de alocação aleatória dos pacientes em cada um dos grupos. Avaliou-se também o procedimento de duplo-cego e da análise por intenção de tratar conduzida nesses estudos.

Desfechos clínicos: melhora clínica ou piora dos sintomas de discinesia tardia, efeitos adversos das intervenções propostas e o número de indivíduos que completaram o estudo.

Análise estatística: Os dados foram extraídos independentemente por dois revisores em cada um dos ensaios clínicos incluídos. Para os dados dicotômicos a estimativa do odds ratio de Mantel-Haenszel (OR) e do intervalo de confiança de 95% em torno dessa medida foram calculados; a possibilidade de heterogeneidade entre os estudos foi avaliada através da apresentação gráfica e do teste do X2. Além disso, a possibilidade de viés de publicação foi avaliada através de um gráfico em forma de funil; e, o número de pessoas que necessitavam receber o tratamento para se obter uma melhora clínica dos sintomas de discinesia tardia (NNT) foi calculado através do inverso da variância (Sackett e cols, 1997).

Resultados

Nenhuma evidência pôde ser concluída para a maioria das drogas utilizadas em DT, incluindo intervenções como a redução ou suspensão de neurolépticos e os chamados neurolépticos atípicos (ex., clozapina, risperidona, olanzapina). Isso ocorreu porque a maioria das intervenções não foram testadas através de ensaios clínicos controlados e randomizados (definidos pela Organização Mundial da Saúde como o "padrão-ouro" na avaliação de intervenções em saúde mental - WHO, 1991). Dos 296 ensaios clínicos identificados, apenas 47 estudos puderam ser incluídos em pelo menos uma das meta-análises e nem todos apresentavam informações adequadas sobre os desfechos clínicos avaliados.

O gráfico 1 apresenta a meta-análise das intervenções que provocaram pelo menos uma pequena melhora dos sintomas de DT. Pode-se observar que apenas insulina, L-dopa, oxypertina, valproato de sódio, tiapride e vitamina E obtiveram resultados estatisticamente significativos (gráfico 1). Em relação ao NNT, para cada 5 pessoas tratadas com uma dessas medicações, pelo menos uma apresentou uma melhora dos sintomas de DT.

Entretanto, a maioria dessas drogas também causaram efeitos adversos significativos, especialmente baclofen, L-dopa e oxypertina. Além disso, não foram observadas diferenças significativas em relação ao número de pessoas que não terminaram o estudo ou à presença de deterioração dos sintomas de DT, apesar de ter sido observada uma tendência da vitamina E prevenir a deterioração dos sintomas.

Os ensaios clínicos em discinesia tardia testaram amostras relativamente pequenas e o resultados sugerem que os estudos que apresentaram resultados "negativos" foram publicados menos freqüentemente. A relevância desses achados pode ser avaliada também através da meta-análise dos indivíduos que receberam placebo nos ensaios clínicos randomizados. Dos 485 indivíduos que receberam placebo em comparação com outra intervenção farmacológica, pelo menos 35% obtiveram uma melhora dos sintomas de DT, o que sugere um efeito placebo importante nessa condição. Não foram observadas também heterogeneidade entre os estudos que puderam ser agrupados.

Conclusões

A nosso ver esses resultados têm implicações tanto na conduta clínica, quanto em futuras pesquisas nessa área. Infelizmente nenhum dos tratamentos avaliados pode ser considerado como de primeira escolha no tratamento da DT. Entretanto algumas considerações devem ser feitas:

  1. Muitas das 114 intervenções utilizadas não têm nenhuma base científica ou eficácia comprovada e seu uso deve se limitar a pesquisas básicas que possam auxiliar no esclarecimento dessa condição;
  2. No tratamento da DT, um efeito adverso do tratamento com neurolépticos, deve-se evitar drogas que provoquem importantes efeitos adversos, como o baclofen e L-dopa;
  3. A vitamina E parece ser mais eficaz quando introduzida no início dos sintomas de DT, além disso, parece não provocar efeitos adversos e poderia ser utilizada quando do início dos sintomas. Entretanto esses resultados ainda necessitam serem comprovados através de novos ensaios clínicos randomizados e controlados com desenho e tamanho de amostra adequados;
  4. Finalmente, deve-se prestar atenção na prevenção da discinesia tardia através da indicação adequada do tratamento neuroléptico, especialmente em transtornos onde essas drogas não são a primeira escolha. Sempre que o uso de neurolépticos se fizer necessário (por ex., no tratamento de manutenção da esquizofrenia) deve-se realizar o diagnóstico precoce da DT a fim de intervir de maneira mais eficaz.

Gráfico 1:

Melhora dos sintomas de discinesia tardia causada por diversas intervenções analisadas através de meta-análises dos ensaios clínicos randomizados.

Muitas vezes ao receitar neurolépticos não lembramos do risco que estamos submetendo o paciente a esta síndrome complexa que é a discinesia tardia. O artigo da Dra. Karla Soares é muito útil para a nossa prática clínica, pois os neurolépticos são usados rotineiramente na prática psiquiátrica. Numa excelente revisão sistemática da literatura a Dra. Karla Soares conclui que é necessário mais estudos para se testar tratamento para discinesia tardia. O primeiro aspecto desta revisão que chama atenção é que foram identificados mais de 114 diferentes tipos de intervenção para tratar DT induzida por neurolépticos e muitas não tinham nenhuma base científica e deveriam ser testadas em pesquisas básicas. O segundo aspecto importante é que de 296 ensaios clínicos randomizados identificados e só puderam ser incluídos 47 nas meta-análises. Das seis drogas que tiveram algum benefício no tratamento da DT a Dra Karla Soares desaconselha o uso de duas: bacoflen e L-dopa pois provocam efeitos adversos importantes. A Vitamina E parece ser o tratamento mais promissor mas necessita ser melhor testada em estudos com metodologia mais adequada. Reforça a importância tanto da prevenção de DT através da indicação adequada do uso de neurolépticos, como também do diagnóstico precoce.

O que fazer então com o paciente que necessita tomar neurolépticos? Quantas vezes informamos nossos pacientes sobre os riscos do uso deste tipo de medicação? Temos sempre receio de que informações deste tipo possam comprometer a adesão do paciente ao tratamento. Ë sabido que um dos principais problemas na adesão de pacientes com esquizofrenia são os efeitos colaterais dos neurolépticos mas também sabemos que o tratamento de manutenção com neurolépticos reduz as recaídas em pacientes com esquizofrenia. Informar o paciente sobre os riscos não necessariamente implica numa baixa adesão ao tratamento como mostrou um ensaio clínico randomizado controlado realizado na Inglaterra por Chaplin & Kent, 1998. O objetivo do estudo era testar uma intervenção para ensinar pacientes ambulatorias estáveis sobre os riscos, diagnóstico precoce e prevenção de DT .Os resultados desta pesquisa foram animadores e merece ser replicada em outros lugares. Informar sobre DT pode ajudar tanto a identificar precocemente como prevenir a DT.

A prescrição de neurolépticos não é restrita a pacientes com esquizofrenia e várias vezes nos deparamos com pessoas com um quadro mais incapacitante de DT do que o quadro psiquiátrico propriamente dito. Em geral, o paciente é deixado de lado na decisão da conduta a ser tomada e são mal informados sobre os riscos associados ao tratamento escolhido, não só aqui no Brasil como em outros países . A introdução dos neurolépticos atípicos e a promessa do menor risco de DT pode ser a alternativa no futuro para a diminuição desta síndrome tão incapacitante.

Chaplin R. & Kent A. (1998). Informing patients about tardive diskinesia. Controlled trial of patient eduaction. British Journal of Psychiatry, 172, 78-81.

Referências:

  1. American Psychiatric Association. Tardive Dyskinesia: a task force report of the American Psychiatric Association. Washington DC, American Psychiatric Press, 1992.
  2. Cadet JL; Lohr JB. Possible involvement of free radical in neuroleptic-induced movement disorders. Annals New York Academy of Sciences 1989; 570: 176-85.
  3. The Cochrane Library [database on disk and CDROM]. The Cochrane Collaboration; 1998, Issue 1. Oxford: Update Software; 1998 - updated quaterly.
  4. Kane JM. Tardive dyskinesia: epidemiological and clinical presentation. In: Bloom FE, Kupfer DJ. Psychopharmacology: The Fourth Generation of Progress. 4th edition. New York, Raven Press, 1995: 1485-95.
  5. Mulrow CD, Oxman AD. Cochrane Collaboration Handbook [available in the Cochrane Library]. Oxford: Update Software, 1996-.
  6. Sackett DL, Richardson WS, Rosenberg W, Haynes RB. Evidence-based Medicine: how to practice and teach EBM. London: Churchill Livingstone, 1997.
  7. Soares K, McGrath J, Adams C. Evidence and tardive dyskinesia. Lancet 1996; 347:1696-97.
  8. World Health Organization. Scientific Group on treatment of psychiatric disorders: evaluation of methods for the treatment of mental disorders. Geneva: 1991.

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