Volume 2 - 1997
Editor: Giovanni Torello


Dezembro de 1997 - Vol.2 - Nš 12

A Natureza da Dissociação: Um Estudo Transcultural sobre Experiências Dissociativas Relacionadas à Prática Religiosa - Dados Preliminares.

Paulo Jácomo Negro, Jr.* &  Mario Rodrigues Louzã, Neto**
*Visiting Associate - Clinical Neuroendocrine Branch/NIMH/NIH - Fellow - American Psychoanalytical Association -
Mestre em Psiquiatria - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
Pós-Graduando - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**Doutor em Medicina pela Universidade de Wurzburg, Alemanha -
Médico Assistente e Coordenador do PROJESQ - Projeto Esquizofrenia - do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo
.

Os dados preliminares deste estudo foram apresentados no Congresso da Associação de Psiquiatria Norte-Americana em San Diego (Negro Jr., PJ, Louzã Neto, MR. The Nature of Dissociation: A Transcultural Study on Dissociative Experiences Related to Religious Practices, Maio 1997). A análise estatística completa do estudo (com a inclusão de mais 39 indivíduos) está sendo processada, porém os dados preliminares devem ser de interesse dos colegas no Brasil (e deverá incluir também Adam Kay e Paula Palladino-Negro como autores).

Dissociação - a Natureza Elusiva do Conceito

O estudo dos transtornos dissociativos e de comportamentos dissociativos não-patológicos é um dos grandes desafios da psiquiatria atual. Muito da controvérsia na área de deve à formação distinta dos pesquisadores e clínicos, cujos argumentos beiram por vezes discussões ideológicas. O próprio conceito de dissociação pode ser definido de diversas maneiras, como alterações na consciência em que ambiente e Eu se desconectam, mecanismo de defesa e a existência de módulos paralelos de processamento de informação conscientes e não-conscientes (Cardeña, 1994; Cardeña 1997).

O campo vivencial é estreito e permite a consciência de apenas parte da enorme quantidade de informações processadas pelo indivíduo de modo não-consciente. Entretanto, ainda que seja possível falar em dissociação como parte da fisiologia da consciência, tal uso do termo leva à descaracterização de sua utilidade para fins de descrição de fenômenos psicológicos (como mecanismo de defesa psicológico, por exemplo). Naturalmente, não há um conceito único de dissociação; ressalvas e a priori definições são úteis quando se escreve sobre o assunto.

Controvérsias em Transtornos Dissociativos

A característica central dos Transtornos Dissociativos é o distúrbio das funções normalmente integradas de consciência, memória, identidade ou percepção do ambiente, que pode ser súbito ou gradual, transitório ou crônico. Boa parte da controvérsia na área envolve o diagnóstico e tratamento do Transtorno Dissociativo de Identidade (DID em inglês, também conhecido como Transtorno de Personalidade Múltipla, MPD; DSM-IV, APA, 1994).

O Transtorno Dissociativo de Identidade caracteriza-se pela presença de duas ou mais identidades distintas ou estados de personalidade que repetidamente tomam controle do comportamento do indivíduo, acompanhadas por uma incapacidade de lembrar de informações pessoais importantes, muito extensas para ser explicadas pelo esquecimento comum. A mudança de nome do transtorno de MPD para DID no DSM-IV se deu na tentativa de evitar a reificação da existência das personalidades através do diagnóstico, ainda que esta seja a experiência subjetiva do paciente.

Mas o quanto da DID é decorrente da iatrogenia de terapeutas que "acreditam" na existência do transtorno e terminam por induzir o processo dissociativo em seus pacientes através de processos hipnóticos e reforços sociais? Esta é uma questão importante, fonte de intensa controvérsia na literatura. Em um lado, alinham-se aqueles que propõem a existência de transtornos dissociativos dentro de um modelo de trauma psicológico (Putnam, 1997), enquanto que outros pesquisadores defendem a hipótese da teoria sociocognitiva da dissociação.

Segundo Nicolas Spanos (1994), mais de um século de pesquisa em hipnose não levou a provas conspícuas da existência de um "estado hipnótico", porém a evidências de que comportamentos dramáticos associados à hipnose podem ser executados por voluntários não hipnotizados que não mostram evidências de ter estado em um "estado de transe". Comportamentos hipnóticos seriam mais condizentes com "representações dirigidas a metas" (goal-directed enactments) e indivíduos altamente hipnotizáveis seriam aqueles capazes de responder a interações interpessoais sutis e ao mesmo tempo se mostrar mais motivados para cumprir as demandas sociais de situações de hipnose para se apresentar como "bons" indivíduos. Sugestões para levantar o braço seriam na verdade sugestões para utilizar habilidades cognitivas necessárias para se comportar como se o braço estivesse levantando por si mesmo; sugestões para amnésia, significariam não apenas a falha da lembrança da informação em questão, mas definir-se como tendo esquecido o material e, portanto, levando à criação de um cenário contextual que inclua não apenas o comportamento elicitado, mas a experiência subjetiva apropriada. As experiências de Hilgard (1977, 1992) que levaram à hipótese da presença do "observador oculto" foram desafiadas por experimentos mais recentes que mostraram uma associação entre os comportamentos atribuídos ao observador oculto e as expectativas sociais indicadas por intrusões específicas dos experimentos (Spanos & Hewitt, 1980; Spanos et al., 1993; Spanos et al., 1988). A freqüência do fenômeno do observador oculto varia com o quanto explícitas são estas instruções, que incluem sugestões aos indivíduos estudados (de maneira mais ou menos vaga) da existência de um "Eu oculto" capaz de certas habilidades. Identidades múltiplas seriam criações sociais, decorrentes das interações sociais com terapeutas durante o fenômeno hipnótico, situação em que o indivíduo estaria mais vulnerável a sugestão e distorção da memória. Curiosamente, a influência da sugestão na organização e modelagem de comportamentos grupais já havia sido apontada por Freud (1921), ainda que em um contexto diferente.

A teoria sociocognitiva de Spanos pode então ser considerada como a teoria iatrogênica de personalidade múltipla, considerada uma síndrome ligada à cultura e produzida pela interação entre agentes microssociais (terapeutas) e macrossociais (mídia, livros, associações de indivíduos com personalidade múltipla). Tais idéias causaram grande controvérsia, principalmente quando o autor comparou o conceito de personalidade múltipla à bruxaria, identificada e "tratada" (ou seja, fisicamente eliminada) durante a idade média (Spanos, 1989). Para Spanos, memórias de abuso infantil em indivíduos com tal diagnóstico seriam decorrentes de comorbidade, do uso iatrogênico de história de abuso infantil para justificar intervenções hipnóticas (e induzir múltiplos) ou da confabulação após exposição a múltiplas entrevistas nas quais tais relatos são sugeridos e legitimizados. Spanos (1994) observa que amnésia não é invariavelmente observada durante a hipnose e/ou em indivíduos com personalidade múltipla, mas atribui o fenômeno (quando presente) à presença de uma barreira amnéstica, considerada um fenômeno ativo e também modelado por expectativas sociais (a existência de uma barreira amnéstica ativa é um conceito por sua vez bastante criticado). A principal crítica a suas idéias é que, apesar da modelagem social do comportamento poder ser observada em situações experimentais, nenhum desenho experimental foi capaz de gerar o transtorno de personalidade múltipla. Infelizmente, o pesquisador não teve oportunidade de responder a várias destas críticas devido a sua morte precoce e trágica.

A Pergunta Experimental

Comportamentos dissociativos são bem descritos na literatura, mas geralmente em populações patológicas. Decidimos estudar comportamentos dissociativos em situação não necessariamente patológicas, como é o caso de estados de transe relacionados a práticas religiosas. A principal pergunta era o quanto do processo dissociativo relacionado a atividades religiosas seria decorrente da modelagem pela matriz social religiosa. Para tal estudamos aleatoriamente inicialmente 72 indivíduos em um centro Espírita Kardecista, avaliados com questionários para religiosidade, apoio social, felicidade (escala visual-analógica), quantificação de experiências mediúnicas (ex. incorporação espiritual, escrita automática ou psicografia, experiências fora-do-corpo), Escala de Experiências Dissociativas (DES), escala de Cloninger de temperamento (TCI).

O Centro Espírita permitiu o estudo e os participantes aquiesceram ao mesmo (de fato, foi possível entregar os questionários sem identificação de forma a proteger a confidencialidade dos participantes). A maturidade e segurança da liderança religiosa deve ser mencionada, pois pudemos colher os dados com tranqüilidade, e apresentá-los independentemente dos resultados obtidos (o que não é verdade para muitas das pesquisas realizadas na indústria farmacêutica, por exemplo). O objetivo do estudo não era determinar a realidade por trás dos fenômenos espirituais (i.e., a existência ou não de Espíritos), mas o quanto do processo seria modelado pelas experiências religiosas e educacionais no centro (inclusive por cursos preparatórios e de treinamento de mediunidade). A conceituação de dissociação como a coexistência de sistemas mentais separados, normalmente integrados na consciência, memória, ou identidade do indivíduo (Cardeña, 1994) inclui o mecanismo subjacente a fenômenos religiosos associados a incorporação espiritual (ou possessão espiritual em casos patológicos), independentemente das explicações para tais mecanismos.

As hipóteses do estudo eram:

  • Presença de alto grau de satisfação e felicidade a despeito de comportamento dissociativo religioso proeminente;
  • Ausência de história significativa de abuso na infância, inclusive abuso sexual;
  • Aprimoramento do comportamento dissociativo com treinamento religioso;
  • Associação entre comportamento dissociativo e resultados da subescala de dependência a recompensa da escala de temperamento de Cloninger (TCI); i.e., indivíduos mais sensíveis a "dicas" sociais sutis a respeito do comportamento esperado mostrariam mais comportamento dissociativo relacionado a atividades religiosas (quando estes são socialmente esperados).

Resultados Preliminares:

  • Felicidade: em escala visual-analógica 67.8%;
  • História de Abuso sexual na infância: 4 das 62 respostas válidas;
  • Presença de uma boa rede de apoio social, história educacional e de trabalho;
  • Presença de bom controle social do fenômeno dissociativo relacionado a experiências religiosas;
  • Presença de substancial comportamento dissociativo relacionado a experiências religiosas (ex. incorporação espiritual 4.6 eventos, escutar espíritos 2.9 eventos, mensagens espirituais verbais 2.8 eventos em média em 30 dias; incorporação espiritual 46min, escutar espíritos 18min; mensagens espirituais verbais 35min em média por semana);
  • Ausência de correlação entre a DES (ou DES-T, a subescala da DES que se correlaciona fortemente com dissociação patológica) com atividade dissociativa relacionada a religião;
  • Correlação entre treinamento (anos de cursos de treinamento mediúnico) e controle social do comportamento dissociativo (Spearman, p=0.0001)
  • Correlação entre dependência a recompensa (escala de Cloninger) e comportamento dissociativo relacionado a atividade religiosa (Spearman, p=0.045).

Discussão

Nesta população, comportamentos dissociativos relacionados a atividades religiosas são comportamentos esperados, normais dentro da matriz microssocial religiosa. Os indivíduos realizam treinamento específico durante diversos anos, que inclui a modelagem do comportamento religioso dissociativo por líderes com experiência na área e ênfase no controle social do fenômeno.

Estes indivíduos mostram bons índices de adaptação social, conforme evidenciado por medidas de apoio social, história educacional e empregatícia, satisfação com o trabalho e educação, índices de saúde e felicidade. Não há história significativa de abuso na infância.

Existe uma correlação significante entre treinamento mediúnico formal e controle do comportamento dissociativo relacionado a atividades religiosas. Existe uma correlação entre dependência a recompensa e comportamento dissociativo relacionado a atividades religiosas.

Tais resultados sugerem que o comportamento dissociativo relacionado a atividades religiosas é parcialmente modelado pela matriz microssocial. Entretanto, não há evidências de que comportamentos dissociativos patológicos sejam causados pela intensa modelagem social presente nesta população. O estudo, portanto, contradiz a hipótese central da teoria sociocognitiva de Spanos (pelo menos na população abordada). A ausência de correlação entre a DES (e DES-T) com os fenômenos dissociativos relacionados a atividades religiosas e entre a DES e índices de modelagem social nesta população apontam na mesma direção e sugerem que os fenômenos dissociativos relacionados a atividades religiosas sejam distintos das experiências dissociativas medidas pela DES.

Por outro lado, o estudo mostra as limitações das teorias de Psicologia do Ego e de trauma para os processos dissociativos. Não há evidências de que dissociação, nesta população, surja como mecanismo de defesa ou de que seja decorrente de traumas psicológicos.

Conclusões

Baseadas nos resultados preliminares do estudo.

  • Comportamentos dissociativos podem estar presente não como mecanismo de defesa, mas como parte de comportamentos religiosos socialmente adaptativos (e, portanto, não necessariamente requerem tratamento);
  • Comportamentos dissociativos podem estar presentes em uma população bem adaptada, sem história de abuso infantil;
  • A teoria de Psicologia do Ego não explica os fenômenos dissociativos nesta população, que não surgem como mecanismo de defesa;
  • Não há evidências de que modelagem social produza comportamento dissociativos mal-adaptativos nesta população (ou que cause transtornos dissociativos); em analogia - psicoterapeutas poderiam iatrogenicamente induzir a presença de múltiplos em indivíduos com transtornos dissociativos a priori, mas não seriam a causa primária do transtorno dissociativo.
  • Os resultados apontam para uma heterogeneidade maior dos fenômenos dissociativos em diferentes ambientes culturais; podemos especular sobre as apresentações clínicas dos transtornos dissociativos como síndromes ligadas à cultura, que requereriam avaliações e intervenções específicas para a sua base cultural.

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