Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Novembro de 2017 - Vol.22 - Nº 11 História da Psiquiatria DISCURSO DE POSSE EM HOMENAGEM AO PATRONO DA CADEIRA 49 DA ACADEMIA DE MEDICINA DA BAHIA, PROFESSOR ÁLVARO RUBIM DE PINHO Irismar Reis de Oliveira A
Coluna de História da Psiquiatria publica o discurso de posse do Professor
Irismar Reis de Oliveira na Academia Baiana de Medicina. Extraímos dele os
aspectos relativos à homenagem ao patrono da Cadeira 49 daquela academia, o
professor Álvaro Rubim de Pinho. Nossos parabéns ao novo acadêmico. Discurso de posse em homenagem ao
Patrono da Cadeira 49 da Academia de Medicina da Bahia, Professor Álvaro Rubim
de Pinho Há 17 anos, tive o privilégio de suceder
o Professor Álvaro Rubim de Pinho, mediante concurso, ao assumir a cadeira de Professor Titular de Psiquiatria do então
Departamento de Neuropsiquiatria, hoje Departamento de Neurociências e Saúde
Mental, da Universidade Federal da Bahia. Agora, mais uma vez, a boa sorte me
toca, ao ter a honra de ocupar a cadeira desta egrégia Academia que tem como
patrono este grande e saudoso homem. Aqui me encontro para falar sobre o
Professor Álvaro Rubim de Pinho, e não poderia me furtar de contextualizar, relatando
dois momentos muito especiais que envolveram minha convivência com ele, para
mim afetivamente muito significantes. O primeiro momento foi quando, no início
de 1983, por um curto período de 4 meses, estagiei na enfermaria 3B do HUPES, à
época por ele chefiada. Eu havia tomado uma decisão que mudaria o rumo de minha
vida, ao trocar a cardiologia (após dois anos de residência no IBIT-Hospital do
Tórax e mais 2 anos de prática) pela
psiquiatria, na qual eu dava os primeiros e incertos passos. Ter escutado o
Professor Rubim, como era carinhosamente chamado, com seu discurso erudito, em
uma voz pausada, tranquila, clara e firme, naqueles 4 meses de convivência,
deu-me a certeza de que a psiquiatria seria meu novo caminho a ser trilhado.
Quando lhe anunciei o projeto de ir à França estudar psiquiatria com o
Professor Pierre Pichot, à época presidente da Associação Mundial de
Psiquiatria, ele não hesitou em receber-me carinhosamente em seu apartamento no
Largo da Vitória, e entregar-me uma carta elogiosa, redigida em francês, que
sem dúvida abriu-me as portas para uma nova vida em Paris, onde permaneci por 5
anos, e que mudaria permanentemente o rumo de minha trajetória em termos
pessoais e profissionais. O segundo momento acima mencionado que
envolveu minha convivência com o Professor Rubim, para mim também muito
significativo, ocorreu após meu retorno
da França. No início dos anos 90, o psiquiatra carioca Mallat-Tostes publicara
um trabalho sugerindo que a combinação de dois medicamentos, a carbamazepina e
a buspirona, reduziria o impulso para o uso de álcool em pessoas dependentes. A
ideia era interessante e precisaria ser testada. Decidi fazer as primeiras
observações em um estudo piloto que nos conduziria à realização do ensaio
clínico que poderia trazer uma resposta mais consistente. Com esse estudo, obtive
resultados muito promissores que me levaram a uma apresentação no Congresso
Brasileiro de Psiquiatria. Minha surpresa foi que, no dia anterior à
apresentação desse trabalho, fui convidado para um almoço por um dirigente de
associação representativa nacional no campo de álcool e drogas, no qual fui ostensivamente
solicitado a não apresentá-lo. Diante de minha natural reação de perplexidade e
afirmação de que o trabalho seria, sim, apresentado como previsto, fui ameaçado
de ter uma equipe de especialistas da área de álcool e drogas, com conhecimentos
de estatística e metodologia, cujo objetivo era questionar publicamente os dados.
Na primeira metade dos anos 90, era um “pecado”, naquele estado do Sul do
Brasil, falar-se em tratamento farmacológico, ou seja, não -psicanalítico ou
psicodinâmico, da dependência ao álcool. Desnecessário dizer o quão ansioso
fiquei. O clima, como bem expressou um conhecido e competente especialista em
álcool e drogas da época, foi posto claramente deste modo: “Eu não gostaria de
estar na tua pele!” Por sorte, encontrei o Professor Rubim de Pinho e relatei o
ocorrido. Ele me disse tranquilamente que lá estaria para me prestar seu apoio,
fato que reduziu grandemente minha ansiedade. Ainda por outro golpe de boa
sorte, naquela manhã eu recebera a carta de aceitação de nosso artigo referente
a esses dados no Journal of Clinical
Psychiatry, um dos jornais de psiquiatria mais importantes
internacionalmente. O que mais me lembro daquele momento muito especial foi a
presença calma e o olhar tranquilo do mestre, em sinal de claro apoio. No
início de minha apresentação, o anúncio para a plateia de que aquele trabalho
já havia sido aceito para publicação naquele conceituado jornal americano começou
desarmando os críticos hostis. Os comentários tranquilos e eruditos do
Professor Rubim de Pinho ao final de minha apresentação concluíram o desarme
daquela que parecera para mim uma espécie de bomba-relógio prestes a explodir
apenas algumas horas antes. Ao final, a batalha fora facilmente vencida, com os
questionamentos confortavelmente respondidos. Desnecessário dizer o quanto esse
evento aqui relatado me uniu ainda mais em gratidão e afeto ao querido
Professor Rubim. Não foi surpresa portanto que no memorial que redigi anos mais
tarde, quando de minha candidatura a sucedê-lo como professor titular, a
primeira página informava que o memorial era a ele dedicado. O parágrafo que
concluía o mesmo memorial dizia: “Atingir as metas aqui estabelecidas seria a melhor
forma de preencher o vácuo deixado pelo Professor Álvaro Rubim de Pinho,
prestando-lhe a devida homenagem.” Assim, nesta nova homenagem que agora com
muita honra lhe presto, cabe-me descrever sua trajetória de vida. Isto será
feito em parte por ele próprio, em entrevista gravada cinco anos antes de seu
falecimento. VÍDEO
1: “Meu pai era médico baiano, nascido e
formado na Bahia, e no começo do século foi para Manaus. Sou amazonense, o
caçula dentre quatro irmãos, e o único que desejou ser médico. Ante essa
iniciativa, o caminho estava traçado: deveria estudar na Bahia, onde tinha
parentes. Aos 16 anos, viajei para Salvador, onde fiz o então curso
complementar pré-médico. Eu nasci numa data muito fácil de gravar, 22/2/22, e
cheguei a Salvador no dia em que completei 16 anos, isto é, 22/2/38. São umas
coincidências. Exame vestibular em 1940 e formei-me em medicina na então
Faculdade de Medicina da Bahia, em 1945. Minha vida de estudante foi muito
marcada pela atividade associativa, poderia dizer, política. Foi a época
contemporânea da guerra, dos anos 39 a 45. Fui líder estudantil, dirigente de
associações diversas, e participante do movimento estudantil em nível nacional,
do qual resultaria todo o poder de pressão popular, toda a coordenação do
movimento de massa que conduziu o governo brasileiro, primeiro à declaração da
guerra, depois à convocação de eleições para a Assembleia Nacional
Constituinte. Minha vida de estudante então teve esta nota constante, pelo
menos até a quarta série de medicina, inclusive. Terminada a quarta série,
notei que sabia muito pouco de medicina, eu que tinha sido um bom estudante em
Manaus e até fazer o exame vestibular. Eu tinha estudado em escola pública em Manaus
e, na Bahia, sempre tinha sido, até o vestibular, o bom aluno, no sentido
modelar. A atividade associativa me desviou bastante disso. Quando eu chegava à
quinta série médica, decidi mudar de rumo. Afastei-me das associações
estudantis, pelo menos da atividade mais intensa, da militância dos movimentos
associativos, e, nessa oportunidade, passei para os hospitais. Mas retornando a Salvador [vindo
de São Paulo], fiquei trabalhando ainda para me sustentar, no Sanatório Bahia,
de propriedade de Luiz Cerqueira, e que na época contava com um outro
colaborador vindo de fora, um psiquiatra brilhante: Nelson Pires. A convivência
com Nelson Pires e Luiz Cerqueira então correspondeu ao começo da minha
formação psiquiátrica, embora ela tivesse então como meta ser neurologista.
Quatro anos depois de formado, eu ainda prestei um concurso com competidor, e
em que fui vitorioso, para neurologista do então Instituto de Aposentadoria e
Pensões dos Comerciários. Não tive outra formação de psiquiatra esse tempo
todo, salvo a convivência com Nelson Pires, enquanto ele se preparava para o
concurso de cátedra, de que resultou ser empossado Professor Catedrático na
Faculdade da Bahia. Em 1954, portanto, cerca de 8 anos depois da minha
formatura, ele me convidou para ser assistente de psiquiatria. Os lugares de
assistente eram, pela legislação da época, de plena confiança dos professores.
Fui assim direto, com a formação que eu tinha, mais de neurologista que de
psiquiatra, para a psiquiatria, e já com uma condição, que era a de participar
do ensino. Em 1955, prestei concurso para
livre-docente de psiquiatria. A tese que escrevi então foi sobre “O diagnóstico
da psicose maníaco-depressiva: ensaio e sistematização.” É muito curioso para
mim observar hoje que alguns dos conceitos, ou pelo menos a sistemática que eu
não diria que adotei, mas que ressaltava, saia de meu material de então,
permitiria uma plena adaptação à atual apresentação das psicoses afetivas,
visto que aquilo que depois se falaria como transtornos bipolares, naquele
tempo, sem esse nome, eu separei bastante nitidamente dos casos de exclusiva
mania e dos casos de exclusiva depressão. E estudei também, em capítulo
próprio, os problemas do diagnóstico diferencial, inclusive com aquilo de que
nós falaríamos como transtornos delirantes. Uma outra referência nessa tese
está incluída sobre os aspectos culturais que ressaltavam da sintomatologia de
alguns pacientes. Essa foi a minha experiência da época na assistência de
psiquiatria até 1959.” Senhores
e senhoras, vejamos então, resumidamente, as principais conquistas de nosso homenageado
e os anos em que ocorreram: Em 1945, o
Professor Rubim forma-se em Medicina. Entre
1954 e 1956, torna-se Professor Adjunto de Clínica Psiquiátrica, período no
qual obtém também sua Livre Docência. Em 1966, conquista
o título de Professor Catedrático. Em 1968, é
eleito Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. Em 1987,
é escolhido Presidente desta egrégia Academia, na qual ocupará a cadeira de
número 17; nesse mesmo ano se aposenta da Universidade Federal da Bahia, como
Professor Titular. Em 1993,
um ano antes de seu precoce falecimento, o Professor Rubim de Pinho é
homenageado com o merecido título de Professor Emérito da Faculdade de Medicina
da Bahia. Convido-os
agora, senhores e senhoras, a voltar um pouco no tempo e ver como ele próprio,
elegantemente, descreve seu concurso para a cátedra, ocorrida em 1966. VÍDEO
2: “Meu concurso teve aspectos um tanto
sensacionais. De minha atividade política, nos anos 40, de quando estudante,
depois da atividade associativa de médico, resultara uma fama de comunista, de
esquerdista militante. Em verdade, eu tinha sido membro do Partido Comunista
Brasileiro, quando estudante. Não mais depois. Mas nos anos 60, eu tive a
oportunidade de prestar concurso sob a discriminação e o peso que decorriam
desta condição. Eu vinha de dois anos difíceis. Foi um tanto imprevistamente
que consegui ser admitido como candidato ao concurso, graças a um reitor de
grande superioridade, no gesto do Reitor Miguel Calmon, que enfrentou as
determinações militares que eram no sentido de que não me fosse permitido
prestar concurso. Embora tendo competidor, em 1965, eu prestei meu concurso e
ganhei. Venci o concurso e, apesar dos óbices que houve no regime militar, fui
nomeado. Talvez, as coisas se tenham suavizado, as dificuldades tenham
diminuído, por causa de uma sorte. Foi um momento histórico. O relatório do
concurso chegou a ser enviado para Brasília, mas nesse meio tempo, depois do
meu concurso e antes da posse, entravam em vigência a Lei do Estatuto do Magistério
pela qual a nomeação deixava de ser feita pelo presidente da república e
passava a ser de autonomia do reitor da universidade. Aquele mesmo reitor que
eu citei me nomeou sem dificuldades maiores. Minha tese para o concurso de
cátedra é “As funções cognitivas nos epilépticos.” Vai nisso a lembrança do
neurologista. Essa minha tese é uma tese um tanto fria, muito mais de números,
uma correlação entre os resultados da escala Wechsler-Bellevue, com exame
clínico, história pessoal e eletroencefalograma. Mas, na época, teve um valor que eu julgo
apreciável.” Senhores
e senhoras, minhas confreiras e meus confrades, segundo informa Walmor
Piccinini, psiquiatra e historiador da psiquiatria brasileira, Rubim foi mentor e formador de sucessivas gerações de
psiquiatras baianos; como homem político foi ativo participante na liderança da
política médica em nível regional e nacional; como pesquisador, seguiu a trilha
aberta por Nina Rodrigues, ao defender que os psiquiatras se interessassem
pelas crenças, crendices e o imaginário popular. Seu trabalho envolvendo
psiquiatria transcultural é reconhecido no Brasil e internacionalmente. Rubim
se interessou por manifestações características do Norte e Nordeste,
mais especificamente da Bahia, envolvendo conceitos como caruara – antes
estudada por Nina Rodrigues – e outros como quebranto, olhado, banzo e calundu. O Professor Álvaro
Rubim de Pinho é uma unanimidade e encontra-se no mesmo patamar de outros
grandes mestres da psiquiatria brasileira, aqueles de quem recordamos e nos
quais nos inspiramos. Isto porque o que fez, o fez com profundidade e
competência. Suas áreas de atuação englobaram psiquiatria clínica, psiquiatria forense,
neuropsiquiatria e história da psiquiatria. Por outro lado, sua profunda imersão
e produção na psiquiatria transcultural foi o que mais o destacou e o diferenciou,
em função de sua grande originalidade. Como assinala o Professor Dalgalarrondo,
titular de psicopatologia da Unicamp: “Uma obra densa, original, consistente,
de um mestre que foi grande porque estudou com paixão e arte o sofrimento
mental de seu povo, nas sutilezas e riquezas culturais que muitos insistem em
não enxergar.” O Professor Álvaro
Rubim de Pinho, um intelectual que gozava da amizade do escritor Jorge Amado, foi
sem dúvida um homem à frente de seu tempo. Observem esta constatação escutando
a mensagem que ele deixa para as próximas gerações de psiquiatras brasileiros. VÍDEO
3: “Não sei que mensagem útil eu poderia
propor. Posso entretanto pensar alto aqui, dizendo que todos nós, dos que já
viveram mais e dos que estão começando, temos que nos adaptar, cada um a sua
época, e saber também, ter a noção de que é sempre limitado, é sempre relativo
o conhecimento que a gente tem. Eu vivi a era do eletrochoque e da
malário-terapia como sendo grandes momentos. Eu vivi a chegada dos
neurolépticos. Eu vivi a chegada dos antidepressivos. Eu vi o declínio de
determinados tratamentos, inclusive de determinados medicamentos. Vi a ascensão
da psicanálise e a estabilização ou adaptação da psicanálise a novos momentos.
Eu acho que a minha mensagem, ela deve ser orientar no sentido de reconhecer
sempre como válido o esforço no sentido de uma atitude crítica. É diferente o
que o conhecimento médico e psiquiátrico nos apresenta de definitivo e nós não
podemos nunca avaliar até quando irá aquela verdade e aquilo que já cabe pensar
que é criticável desde o começo. Mas se nós pudermos, em qualquer momento,
estar realmente adaptados àquele momento histórico, e se nós pudermos, doutra
parte, prestar serviços aos nossos clientes, aos nossos doentes, nós estaremos
bem. Eu acho que esta é a grande mensagem. Nós precisamos evitar realmente que
se consuma aquilo que já se tem falado: os médicos antigos tinham pouco com o
que curar e, às vezes, curavam mais. Não tenhamos dúvida de que hoje nós temos
muito com o que curar mas, às vezes, curamos menos. Isto não exclui o
reconhecimento de que nós, exatamente, progredimos muito, mas os novos
progressos poderão limitar muito a veracidade, o cunho de aquisição definitiva
daquilo que está hoje conosco. Fundamentalmente, para o médico, para o
psiquiatra, não se afastar do conhecimento do novo e não esquecer, nem omitir
na sua elaboração das decisões o conhecimento antigo.” Meus
confrades, minhas confreiras, senhores e senhoras. Neste momento solene e de
profunda emoção, quem me dera
poder merecer a honra de estar à altura desse homem a quem agora homenageio! Consola-me
saber que, como o professor titular que o sucedeu, fiz o melhor que pude para
continuar suas realizações. Agora, como membro titular deste egrégio sodalício,
quando ocupo a cadeira que tem seu nome, resta-me ainda, humildemente, mantê-lo
como inspiradora lembrança. Muito
ainda há a ser feito.
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