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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Outubro de 2017 - Vol.22 - Nº 10

História da Psiquiatria

PENSANDO A MEDICINA
DIAGNÓTICO NOSOLÓGICO E CLASSIFICAÇÃO DAS DOENÇAS EM PSIQUIATRIA

Luiz Salvador de Miranda-Sá Júnior


“O método científico é comprovado e verdadeiro. Não é perfeito, é apenas o melhor que temos. Abandoná-lo, junto com seus protocolos céticos, é o caminho para uma idade das trevas.” Carl Sagan

O que Destrói o Homem: Política sem princípios, Prazer sem compromisso, Riqueza sem trabalho, Sabedoria sem caráter, Negócios sem moral, Ciência sem humanidade e Oração sem caridade. Mahatma Ghandi



1. A Medicina e o Diagnóstico Médico

É mais importante saber que tipo de paciente tem uma enfermidade do que saber qual enfermidade o paciente tem." Sir William Osler

A Medicina

A medicina é a profissão humanitária de base científica, cujos agentes profissionais – os médicos -incumbem-se privativamente do diagnóstico das enfermidades e do tratamento médico dos enfermos. Ademais, com atividades que podem ser compartilhadas com outros profissionais de saúde, nos termos da lei, participam da profilaxia das enfermidades e da reabilitação dos enfermos.

Diagnosticar doenças e tratar doentes são as atividades mais essenciais do trabalho médico desde sempre. Pois, só é possível tratar bem um doente bem diagnosticado e o diagnóstico é o alicerce essencial da medicina. Praticamente todos os demais procedimentos médicos são consequências ou decorrências dele. O diagnóstico médico alicerça e justifica praticamente todos os procedimentos da medicina, mas sua correlação com a terapêutica é absoluta. O tratamento médico deve ser sempre uma decorrência do diagnóstico, porque é

o diagnóstico que aponta para a intervenção necessitada por aquele paciente. A interação do diagnóstico da doença com o tratamento do doente é absoluta, como deve ser absoluta a interação do diagnóstico com o prognóstico e da técnica com a ética. Praticamente, todos os historiadores e epistemólogos da medicina em todas as sociedades, sustentam que a medicina deve perseguir alguns objetivos gerais, o que realiza através do desenvolvimento de sua atividade nas três dimensões quelhe são próprias: a humanista, a sócio econômica e a tecno-científica. Ainda quese reconheça a supremacia do encontro interpessoal ético na relação médico- paciente, que se expressa em sua conduta que, de modo algum deve minimizara importância das dimensões técnica e econômica em sua reunidas em sua realização.

A medicina acumula quatro identidades sociais superpostas: a ética, a científica, a econômica e a institucional.

Porque a medicina, além de uma profissão, também nucleia uma instituição social responsável por algumas missões sociais que sua identidade lhe impõe como núcleo da instituição médico social: conhecer e diagnosticar os estados patológicos em pessoas e comunidades e tratar os enfermos. Ademais, incumbe-se subsidiariamente das atividades de profilaxia das enfermidades e da reabilitação das pessoas prejudicadas por elas.

A principal missão institucional da medicina é a prestação da assistência aos enfermos em todos os seus aspectos, mas notamente no que se refere à feiturado diagnóstico das enfermidades e a prescrição da terapêutica dos enfermos. Declarada a missão mais essencial da instituição médica, importa caracterizar como se implementam os objetivos da medicina no que respeita ao cumprimento de sua principal missão institucional.

A doença é como se denomina o estado de um organismo vivo afetado por um agente patogênico (físico, químico, biológico ou psicossocial). Os estados de enfermidade se expressam nos humanos com três aspectos interativos: os danos corporais e psicossociais, a consciência de enfermidade e a conduta de enfermo. Os atos ou procedimentos médicos devem incidir sobre a pessoa enferma em todas essas dimensões mas a enfermidades deve ser seu objeto preferencial.

Raízes da Medicina

A atividade beneficente (tratar os doentes) é tão antiga quanto a humanidade. No mínimo. Mas a instituição médica, a instituição social que organiza e encaminha a instituição médica em busca do seu destino simultaneamente técnico e ético é bem mais recente. Tem mais ou menos dois mil e quinhentos anos. Até então a atividade curativa fora mágica e superticiosa, passando das mãos dos feiticeiros e xamãs das comunidades primitivas às dos sacerdotes das organizações religiosas das culturas estatais antigas.

O surgimento dos primeiros médicos leigos e da institucionalização da medicina natural e racional deu-se na Grécia no momento mais fértil de sua existência social e cultural. A medicina leiga foi um dos frutos do apogeu daquele país na Antiguidade, em seu século de ouro, o século de Péricles, quando a população tomou conhecimento de suas necessidades coletivas e de sua responsabilidade por enfrentá-las como tarefa coletiva.

A medicina hipocrática é proposta como prática profissional que sintetiza, da forma mais harmônica possível, os três atributos que todo médico deve possuir e cultivar incessantemente: amor pelos seres humanos, amor pelos outros (filantropia), amor pela arte, pela Medicina, pelo seu trabalho (filotécnica) e amor pelo conhecimento pela sabedoria (filosofia). Essas três dimensões da medicina como profissão coexistem até hoje e são o elemento mais essencial daquilo que poderia ser chamado alicerce da estrutura da medicina de sempre.

Por isto, Hipócrates ensinava aos jovens médicos, o seguinte:

Deves cuidar atentamente de ti ... falar somente o que for necessário ...

Quando entrares no quarto de um doente, tenha sempre em mente a maneira pela qual vais te sentar, mantenha a reserva, a atitude e a ordem de teus trajes.

Fale de maneira decidida, mas breve, cuide da compostura e mantenha seus modos apropriados às circunstâncias.

... autocontrole, imperturbabilidade e prontidão para fazer o que for necessário.

Peço-te que sejas bondoso e que leves em conta os recursos do paciente.

Sempre que puderes, presta teus serviços gratuitamente; e se surgir a ocasião de socorrer um estrangeiro em dificuldades, dá-lhe plena assistência.

... pois, onde existe amor pelo homem existe também o amor pela arte.

Não há mal que um médico se sinta incomodado diante de sua incapacidade de saber o que tem um doente.

... se não vê a situação de modo claro, que chame outros médicos em conferência.

Mais alguns preceitos hipocráticos para o médico são:

Evitar ruídos desnecessários, perfumes ou adereços que chamem a atenção para si e o ponham em relevo por outro motivo que não seja ser um bom médico. Quando em conferência, os médicos devem se auxiliar mutuamente e jamais devem buscar atrair aprovação para si ou reprovação para outro colega; devem empregar remédios simples e buscar sempre uma terapêutica que esteja o mais próximo possível da natureza, recordando que o melhor remédio é o que melhor imita a natureza, promovendo a cura natural.

O médico deve estar sempre pronto para atender a uma emergência, nunca se deixando surpreender por ela; devendo ter sempre à mão recursos diagnósticose terapêuticos de urgência para as situações mais comuns. Quando em consulta,

o médico deve observar minuciosamente o paciente, dando-lhe toda atenção eexaminando-o diversas vezes, não só para diagnosticar, mas para acompanhar a evolução do quadro, tanto sua marcha natural, quanto sua resposta à terapêutica.

Em sua conduta profissional, o médico deve responder, recomendar e instruir sempre com tranquilidade e cuidar de não perdê-la diante de algum acontecimento imprevisto; deve examinar cuidadosamente o corpo do paciente e repetir o exame muitas vezes para estar certo de não ter omitido nada ou cometido algum erro. Segundo o paradigma hipocrático de conduta profissional, o médico deverá se comportar de modo a evitar, a todo o custo, chamar a atenção dos demais para si. A discrição deve ser um valor cuidadosamente cultivado pelo médico. E, quando isto for impossível, não podia ser feito à custa do auto elogío ou da crítica ácida dos demais, mas por sua própria conduta médica; em todos os aspectos de sua vida privada ou do exercício de sua arte, devia se manter nos estritos limites da modéstia recomendada a eles. Para os hipocráticos de todos os tempos, modéstia, comedimento e discrição são os traços mais importantes que o médico deve cultivar em si e exigir em seus discípulos. Mas seu traço mais importante é a dedicação total ao seu mister.

Princípios Técnicos da Terapêutica Hipocrática

A terapêutica hipocrática era regida por alguns princípios técnicos que ainda persistem, válidos.

Os princípios técnicos que fundamentam a terapêutica hipocrática são os seguintes:

= a) princípio do oposto e do semelhante (o tratamento mais comum é pelos contrários (alopatia ou antipatia), mas também se justificava o tratamento pelos semelhantes (homeopatia);

À época de Hipócrates, denominava-se alopática à terapêutica que empregasse como remédios substâncias que têm ação oposta à do agente morbígeno (calor, frio, seco, úmido), da enfermidade que pretende combater.

A homeopatia como emprego de agentes terapêuticos com ação idêntica ao agente etiológico (calor, frio, secura, umidade. A homeopatia hannemaniana, como foi concebida muitos séculos após, será consideração noutro momento deste trabalho.

= b) princípio da prudência ou da previdência (considerar sempre os riscos de qualquer medida e ter dobrada cautela com a novidade, com a medida terapêutica pouco conhecida);

= c) princípio do fazer bem feito (a dimensão estética da terapêutica, todo procedimento deve ser o mais útil e belo possível e, por isto, menos incômodo, dispendioso ou doloroso para o paciente);

= d) princípio da ação educativa do médico (necessidade de instruir o paciente para que ele possa cuidar de si, o que, para Platão, diferenciava a Medicina da Veterinária e se dava em três planos, a ilustração médica do doente (instruir o doente sobre a doença), a persuasão verbal e a adequação biográfica);

= e) individuação do tratamento (o remédio, a dose e a oportunidade);

= f) princípio holístico, hoje denominado sistêmico (considerar o organismo uma totalidade, um sistema natural, uma parte da natureza sujeita a todas as influências naturais e culturais, devendo a terapêutica vir em auxílio da tendência natural de compensação ou autorreparação).

A ilustração (no sentido de instrução, educação) do paciente pelo médico era a explicação do diagnóstico, das circunstâncias em que aparecia a doença, como poderia ser tratada e evitada, quando fosse o caso. Hoje, se denomina educação para saúde. Pela persuasão verbal, o médico argumentava contra as objeções do doente e lhe explicava o que parecia obscuro e buscava convencê-lo do acerto do diagnóstico e da correção da terapêutica, porque os médicos gregos sabiam que qualquer tratamento vale muito pouco ou nada, se o paciente não está convencido de sua eficácia. Por adequação biográfica, se entendia o papel pedagógico do médico; acompanhar a experiência pessoal do paciente, ensinando-o a mudar seus hábitos a evitar tal conduta ou a praticar outra, em benefício de sua saúde.

Objetivos Fundamentais da Terapêutica Hipocrática:

Quatro eram considerados os objetivos fundamentais da terapêutica hipocrática:

1. salvar a vida,

2. recuperar a saúde (era considerada grave falta ética e técnica quando o médico não soubesse reconhecer e diferenciar uma enfermidade curável de uma incurável);

3. afastar ou aliviar a dor;

4. permitir ao paciente manter sua aparência pessoal e sua existência social decorosas e digna.

Os três primeiros preceitos têm caráter essencialmente pragmático e devem ser aplicados sucessivamente; quando não for o caso de salvar a vida ou recuperar asaúde, ao menos se deve tentar afastar ou remover a dor e o sofrimento. Ohumanismo judaico-cristão, mais tarde, já na Idade Média, substituiu o último objetivo, essencialmente estético e característico da cultura grega, por consolar sempre, fruto da caridade cristã.

O decoro era considerado uma síntese da utilidade, da ética e da estética.

As quatro identidades do amor greco-romano eram eros (amor sensual, erótico, sexual); filo (amor camaradagem, amizade, admiração, bem-querer); estorge (amor pelos familiares); ágape (amor despretensioso, altruista, generoso, em efusão como o amor divino), que depois se transformou em caritas (caridade, amor fraterno pelo próximo, que inclui os inimigos). Já na Idade Média, preceito hipocrático de amar o paciente como um amigo, foi substituído pelo mandamento cristão de amar ao próximo, inclusive os inimigos, quanto mais aos pacientes, como a si mesmo. Junto com a crença na igualdade das almas, estas terão sido as grandes contribuições do cristianismo à civilização.

Fundamentos Éticos da Medicina Hipocrática

Na velha Grécia, o comportamento profissional médico era submetido a estrito controle técnico, ético e social, tanto pelos outros profissionais, quanto pela sociedade.

O espírito de corpo (que leva o trabalhador colocar seus interesses e os da profissão entre os interesses da sociedade) na medicina emergiu nesse momento. Não é por casualidade que o Juramento de Hipócrates termina assim:

Enquanto conservar sem violação este juramento, que me seja concedido gozar a vida e a prática da Arte, respeitado por todos os homens, em todos os tempos. Que outro seja meu destino se transgredir ou violar este juramento.

O corporativismo é a perversão individualista do espírito de corpo, quando o agente corporativo coloca seus interesses individuais e os de sua corporação acima dos interesses da sociedade.

Sempre foi muito difundido na sociedade e na corporação profissional, que a reputação do médico era seu mais valioso patrimônio, havendo a convicção deque a reputação que deveria ser cultivada a vida toda mas poderia ser perdida em um instante, como resultado de uma conduta irrefletida ou insensata. Para arruinar a reputação constuída em uma vida, bastava haver um único comportamento danoso.

Do ponto-de-vista da ética hipocrática, a prática terapêutica se considerava determinada pela atuação sinérgica (de preferência harmônica) dos motivos altruístas e egoístas que a motivassem. Mas nunca dependia exclusivamente dos remédios, mas da situação e das condições de vida do doente. E de sua interação com o ambiente que o rodeasse

Como se sabe, reconheciam-se três ordens de motivações afetivas de naturezaaltruísta que devem mover o médico e que se refletem na qualidade de sua prática: filotécnica, filantropia e filosofia.

A filotécnica ou filotecnia (amor à arte, o amor que deve sentir alguém pela atividade à qual dedica sua vida. Já se considerava que ninguém pode ser feliz se não gosta do seu trabalho, nem pode se realizar como pessoa se sua realização depender inteira ou predominantemente da remuneração financeira).

A filantropia (amor à humanidade, obrigação humana de gostar dos outros sereshumanos, de seus pacientes, sobretudo de gostar de sua comunidade, da cidade em que vive e trabalha, o que facilita a mobilização da disponibilidade médica e de seu interesse pelo estado da saúde coletiva).

E a filosofia (amor ao conhecimento, não apenas no sentido de curiosidade científica, mas de orgulho e, mais que o desejo, a necessidade de saber cada vez mais, de poder explicar cada vez mais e, por isto, de poder fazer cada vez mais e melhor).

Estes motivos altruístas se opunham, natural e dialeticamente, às tendências egocentradas (dirigidas para si mesmo), as chamadas tendências egoístas ou egocêntricas, que são representadas pelas tendências e desejos voltados para a satisfação das próprias necessidades e interesses, que não podem ser evitados mas devem ser controlados.

Princípios Éticos da Medicina Hipocrática

As noções de civilidade e decoro 2 estavam sempre presentes na consciência dos gregos. Nos marcos definidos pela Medicina hipocrática, a relação médico- paciente, abrangeria todas as dimensões do relacionamento profissional do médico com o doente e deve ser presidida sempre e permanentemente dirigida pelos seguintes princípios fundamentais:

1. beneficiar e não prejudicar (primo non nocere = primeiro, não fazer mal, não causar dano) que significa ter a certeza de não estar trazendo qualquer malefício ao paciente ou, na pior das hipóteses, quando não for possível beneficiar, escolher-lhe o mal menor.

2. abster-se de tentar o impossível e dos procedimentos inúteis (os médicos gregos não atendiam aos moribundos ou aos doentes considerados incuráveis, porque os consideravam fora do alcance de sua profissão e tinham isso como um abuso e desrespeito ao doente, uma falsidade; essa era uma característica da cultura grega na época);

3. o dever de dedicar lealdade prioritária ao paciente (colocar sempre em primeiro lugar os interesses do doente e, depois, os da sociedade, inclusive osdos demais médicos, acima dos seus próprios); e, por fim,

4. atacar, de preferência, as causas da enfermidade (o tratamento dos efeitos é sempre uma pobre alternativa à terapêutica considerada etiológica).

O Diagnóstico Hipocrático

Os hipocráticos já tinham o diagnóstico como o fundamento essencial para aterapêutica e qualquer outro procedimento médico. Era um dos elementos que justificavam sua caracterização como medicina racional, em oposição à medicina supersticiosa, que atribuiam uma só causa a todas as enfermidades. Não valorizavam apenas as queixas do paciente. Examinavam-no e o interrogavam exaustivamente em busca de sintomas que os médicos valorizassem, e os pacientes, não. Também avaliavam criticamente a água e os alimentos consumidos pelo paciente. Ademais, consideravam a influência do ambiente em que ele vivia, seus hábitos e suas relações afetivas e sociais. Ponderavam o temperamento do paciente


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