Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Abril de 2017 - Vol.22 - Nº 4 História da Psiquiatria
ENTREVISTA-DEPOIMENTO: Walmor João Piccinini Sempre
interessado em preservar a história da psiquiatria, procurei registrar depoimentos
e memórias de grandes psiquiatras do nosso tempo. Um dos mais ativos dentro da
política médica em geral e da psiquiatria em particular foi o Professor Manoel
Albuquerque. Insisti que registrasse fatos da sua vida e pude produzir uma
pequena biografia para a Psychiatry Online Brasil que foi publicada ainda ele
estando vivo. Ela pode ser lida em www.polbr.med.br/ano09/wal1009.htm Antes disto eu o provocava em busca
de um registro das suas memórias e de um destes depoimentos construí esta
lembrança do Professor Manoel. (Graças à generosidade de sua esposa, também
psiquiatra, a Dra. Iracema Campos de Albuquerque tenho em mãos muitos dos seus
escritos com relatos sobre a psiquiatria brasileira e sul-americana. Não tenho
lembrança da data deste depoimento, mas posso colocá-lo no início do século
XXI, com o professor Manoel um pouco debilitado, me honrou com suas
informações: 2. Seu
depoimento assim está registrado: Caro Walmor.
Vou tentar atender a teu pedido por partes. Falando em itens separados posso
ser mais sintético e facilitar tuas modificações e censuras. (É claro que não
modifiquei ou censurei seu depoimento). 1 – Início e
Motivação: Comecei muito cedo, quando meu avô, Dr. João Pitta Pinheiro, fundou
o Gabinete de Neuropsiquiatria Infantil, no Asilo São Joaquim, Hoje FEBEM
(FASE). Lá começou meu interesse e admiração pelos estudos psicológicos. 2.
Pródromos: Imagina a curiosidade e o interesse com que participei de reuniões
para decidir sobre a “eliminação da última cepa de malária no Hospital”. O
tratamento da sífilis, especialmente a nervosa, era feito pela inoculação de
Malária. Os treponemas não resistiam à febre (calor) e a doença era curada.
Para isto havia uma enfermaria exclusiva para inocular, controlar e tratar
sifilíticos com Malária. O advento de terapêuticas menos iatrogênicas
(Penicilina) foi reduzindo o número de internações até chegar ao último
“infectado” que, uma vez curado deixaria o Hospital sem a “cepa” para injetar
em outros pacientes. Claro que a discussão levou a 3. eliminação
desta forma de tratamento e ao fechamento da enfermaria. 3 –
Congraçamento com os colegas psiquiatras. Minha aproximação foi através dos meus
mestres Paulo Guedes e Celso Aquino, que presidiram a Sociedade de Neurologia,
Psiquiatria e Neuro Cirurgia do Rio Grande do Sul. Promovia jantas mensais, geralmente no
Restaurante Renner, o melhor da cidade, onde havia grande confraternização
entre os psiquiatras, neurologistas e neurocirurgiões. (O restaurante era no
nono andar, o prédio foi destruído por um incêndio nos anos 70 com várias
mortes). Quem conheceu o Paulo Guedes sabe que ele
era o inspirador e organizador maior destas reuniões. Com freqüência recebia em
sua casa, inclusive para reuniões rotineiras da Cátedra. Mesmo nestes dias não
eram raros os finais musicais. Nas posses de novas diretorias o jantar era
dançante, muitas vezes no “Palácio do Comércio”. Grandes banquetes também eram
realizados nas ocasiões que recebíamos convidados conferencistas. Havia luta política e disputas eleitorais,
tanto entre as especialidades como no tocante a serem mais ou menos 4. “esquerdistas”
ou “direitistas”. Os que nos considerávamos “esquerdistas” confiávamos na
simpatia do Paulo, quando mais não fosse, por ser irmão do Fernando, líder
político comunista. 4 –
Psiquiatria Forense. Em 1965 notando reiteradamente o conflito entre a
dificuldade de prever o futuro de pacientes longamente internados e a exigência
de laudos conclusivos sobre a “cessação da periculosidade”, tomei a iniciativa
pioneira no Brasil de sugerir em laudo e obter a aprovação em sentença da “alta
progressiva”. 5. A
Psiquiatria Gaúcha no Cenário Internacional. Em 1966, no Congresso Mundial de
Psiquiatria em Madrid, da sociedade compareceram Manoel Albuquerque, Enio Arnt
e Albino Lima Filho. Como presidente, Albuquerque requereu a filiação da
Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul à Mundial, obtida no congresso
seguinte. ( A correspondência entre Manoel e Henry Ey encaminhei para os
Arquivos da APRS que está preparando a festa dos 80 anos de fundação). 6. O Exame
AMRIGS foi planejado, defendido, instituído com base no Vestibular da UFRGS.
Participando, durante anos das Comissões Permanentes de Seleção de Alunos para
ingresso na Medicina da UFRGS, verifiquei que as matérias incluídas nos
Vestibulares passavam automaticamente a figurar no ensino secundário, 5. especialmente
nos “Cursinhos”. Era exatamente o de que necessitavam as associações médicas
para influir na “Educação Médica”. “Logo se concluiu pela conveniência de um
Exame de Estado”, mas todos achavam antidemocrática sua obrigatoriedade. A
iniciativa sendo autônoma poderia fornecer ao governo e às próprias faculdades
uma avaliação que as orientaria no aperfeiçoamento da educação médica.
Instituído pela Diretoria da AMRIGS, é aplicado até hoje, situando-se entre a
oposição de alguns corpos docentes temerosos de serem reprovados e o apoio de
outros que utilizam seus resultados na seleção de residentes. 7. Influência
da Psiquiatria na Medicina do Estado. Em 12 anos a AMRIGS foi presidida por três
psiquiatras totalizando 11 anos de mandato (Albuquerque, Harri Graeff e Hans
Schreen). A Formação Médica Continuada, em Porto
Alegre e em todo o estado, teve grande influência e participação dos
psiquiatras. A partir de 1957, os alunos da Faculdade Federal de Medicina de
Porto Alegre, começaram a ter contato com os aspectos psicossociais da prática
médica no primeiro ano. Em duas oportunidades o Colegiado do Curso Médico da
UFRGS (CONCARMED) foi coordenado por um psiquiatra (Roberto Pinto Ribeiro e
Manoel Albuquerque). 6. O Hospital
Universitário da PUCRS foi dirigido por um psiquiatra. O INAMPS foi dirigido
por um psiquiatra, Harri Graeff, que o modernizou tendo até tentado
proporcionar psicoterapia aos beneficiários. 8. Primeira
Jornada Sulriograndense de Psiquiatria dinâmica (organizada pela Cadeira de
Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de Porto Alegre). Foi o Paulo
Guedes que teve a intuição de, percebendo que a pouca freqüência das reuniões
em Porto Alegre se devia ao costume de passarem os fins de semana em Gramado,
planejar uma em Hotel daquela região. O sucesso, em 12 e 13 de novembro de
1960, sábado e domingo em Gramado, no Hotel do Lago, foi acima do esperado.
Houve grande produção científica, todos se consideravam autorizados a contribuir,
e a maior confraternização. Como característica da mentalidade da época, as
homenagens se concentraram na pessoa de Zuleica (Zuleica Rosa Guedes, ainda
ativa nos seus 98 anos de idade). Ela as merecia por todos os títulos,
professora universitária, hospitaleira, mas também como alter ego do Paulo. Presidente
organizador Paulo Guedes, Secretários; Fernando Luiz Vianna Guedes e Luiz
Carlos Meneguini. Comissão Organizadora: Manoel Antônio Albuquerque, Emília
Pinto Messias, Ellis Busnello, Moysés Roitman e Enio Arnt. 7. 9.
Associação Encarnación Blaya. Em 28 de março de 1960, Marcelo Blaya
Perez, recém chegado de estágio-residência na Menninger School of Psychiatry,
fundou a Clínica Pinel, empreendimento individual, para internamento de doze
pacientes particulares. (encaminhei a primeira paciente e fui fiador do
prédio). Introduziu em nosso meio a “millieu therapy e a hospitalização
parcial. Para nós os psiquiatras porto alegrenses, formados na psiquiatria
clássica e psicanalítica, constituiu grande e agradável surpresa podermos
almoçar e jogar vôlei com os pacientes. Deu ênfase ao trabalho em equipe de
saúde. Observava os “papéis” de pacientes, funcionários e técnicos. Criou uma
Residência em tempo integral e dedicação exclusiva. Mais tarde também, iniciou
a “Pensão Protegida”. Em 1961 saiu o primeiro número dos Arquivos
da Clínica Pinel que teve grande influência na psiquiatria brasileira divulgando
os novos métodos. Em 1962 iniciou os Cursos de “Psicologia
Clínica”, “Assistência Social Psiquiátrica” e “Enfermagem Psiquiátrica”. Em 1964, transformou-se em sociedade civil
sem fins lucrativos. Marcelo doou os móveis da Clínica. Os primeiros
diretores foram Marcelo Blaya e Manoel 8. Albuquerque.
Havia dez fundadores, entre eles; Mário, Cyro, Lemmertz, David, Wagner,
Roberto, Paulo e Meneguini. Marcelo Blaya defendeu docência Livre. A
Docência do Marcelo foi rápida, brilhante e inesperada. Talvez por indicar
candidatura à cátedra, esfriou os convites para colaborar na Faculdade. Em 1970 a Pinel construiu sua nova sede
(inaugurada em 1972) na Rua Santana, com 2.000 m2 em terreno de cinco mil
metros. O dinheiro veio quase todo do INPSA, já que a clínica privada era
pequena e ficou menor com o ingresso dos previdenciários. Foram primeiros alunos da Clínica Pinel:
Nelson Lemos, David Epelbaum Zimerman, Isaac Sprinz, Bernardo Brunstein, Flávio
Rotta Correa, Álvaro Medeiros, Eufrides Silveira Matte, Carlos Gari Faria, Hans
Ingomar Schreen, Milton Shansis, Themis Groisman, Marlene Silveira Araújo, Carmen Tuma Rotta,
Harri Valdir Graeff, Walmor João Piccinini, Carmen Dametto, Paulo Juchem,
Carlos Roberto Hecktheuer, Ricardo Toledo Piza. Carmen e Walmor começaram com
Atendentes na Pinel. Os enfermeiros Baltazar Lápis e Jorge Rodrigues, mais
tarde professores da Faculdade Federal de enfermagem da UFRGS, também 9. começaram na
Pinel. Sem esquecer a Ruth Myllius que abriu o caminho para eles. 10 –
Influências Externas decisivas que inspiraram o movimento e o progresso porto-alegrense:
Hernán
Davanzo Corte, didata da IPA e Professor da
USPRibeirão Preto, visitou Porto Alegre várias vezes entre 56-63. Tinha
as vantagens de ser “psicanalista", portanto insuspeito de “acting out”,
ser moço, jogar futebol conosco e conhecer Epidemiologia, por trabalhar com
grandes especialistas da Faculdade de Ribeirão Preto. I.Matte
Blanco, 1958, Chile, que estabeleceu sistema semelhante na Faculdade de Medicina,
inclusive com tratamento em Grupo para estudantes. Estabeleceu vários contatos
férteis com o grupo de Porto Alegre. Carlos
Alberto Seguin, de Lima, Peru que de 1958 a 1964 teve vários contatos
estimulantes com o grupo de Porto Alegre. 11.
Introdução da Psicanálise no Estado Em 1947 Mário Martins, formado em três anos
pela Associação Psicanalítica Argentina, iniciou a prática em Porto Alegre.
Tratou desde logo, como candidatos, na ordem de início; Ernesto La Porta, Paulo
Guedes, José de Barros Falcão e David Zimmermann. Este foi, também, o 10 primeiro
grupo a fazer seminários e supervisões para formação psicanalítica em Porto
Alegre. O segundo foi: Fernando Guedes, Leão Knijnick, Luiz Carlos Meneguini,
Manoel Antonio Albuquerque e Sérgio Annes. Depois, já formados como didatas, vieram
José Lemmertz e Cyro Martins da Argentina e Celestino Prunes do Rio de Janeiro. O Centro de Estudos Psicanalíticos, embrião
da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre buscava a filiação à Associação
Psicanalítica Internacional que permitisse o treinamento oficial de
psicanalistas no Estado. Em agosto de 1961, sob o patrocínio da Sociedade
Psicanalítica do Rio de Janeiro, o grupo de Porto Alegre foi reconhecido como
“Study Group” da IPA, por indicação favorável da Executiva Central na Reunião
Administrativa do Congresso Internacional de Edinburgh. Com este reconhecimento, os três membros
titulares passaram a Didatas: Mário, Lemmertz e Celestino. David, Paulo de
candidatos passaram a Associados. Os demais foram convidados a demitir-se de
membros Fundadores e passaram a condição de candidatos. Wagner e Roberto logo
foram promovidos, os demais penaram a condição de candidatos. (Manoel
Albuquerque não aceitou a condição e afastou-se da SPPA). 11 As
atividades psicanalíticas regulares iniciaram em 1948. A partir de 1953, a Cátedra de Psiquiatria
começou a contar com a colaboração da Cátedra de Medicina Legal, na organização
e execução do Curso de Psicologia Médica para as 1ª,2ª,e 3ª, séries do curso
médico. O
fundamento da inovação era que os médicos precisavam conhecer e tratar a pessoa
como um todo, bio-psico-social, ao mesmo tempo em que podiam melhorar seu
desempenho médico com os conhecimentos que a psiquiatria lhes dava para
aperfeiçoamento da anamnese e da relação médico/paciente. 12. Fim do
Isolamento da Psiquiatria Rio-grandense e associação com os colegas
brasileiros. Os líderes da nossa Psiquiatria, tanto na clínica como no
magistério e nas sociedades estavam, em sua quase totalidade, em “Análise Didática”.
Não precisava mais para que o comparecimento a quaisquer atividades da
Psiquiatria “não analítica” fosse considerado “acting out” e reprovado. Presidindo a Sociedade, aproveitei
circunstâncias favoráveis: um colega e amigo, Levy Albuquerque Souza, era
coronel Médico da Aeronáutica e muito ligado ao Brigadeiro Eduardo Gomes,
Ministro da Aeronáutica. 12. Mandei um
ofício invocando seu título de “Brigadeiros da Integração Nacional” e
informando-o que os psiquiatras gaúchos iam a todos os congressos de Buenos
Aires e Montevidéu e não aos brasileiros. Forçando um pouco a verdade, transformei
o motivo em por falta de dinheiro para as passagens. Como conseqüência
autorizou o Avro Presidencial para transportar psiquiatras gaúchos, 35 ao todo.
Claro que os analistas esqueceram o dogmatismo e se inscreveram. Graças a esta
possibilidade, em assembléia geral, resolvemos que só iria quem levasse
trabalho. Mais ainda, que fossem temas diversos, sem repetições. Colocamos o
Índice do Noyes no quadro e cada colega escolheu um tema. Ao chegarmos a Fortaleza houve uma surpresa.
Colocaram todos numa sala não prevista no programa. Não aceitei com o argumento
de que não viajáramos tantos quilômetros para falar uns para os outros. Em
conseqüência decidiu-se colocar um gaúcho em cada sala, o que nos deu a
oportunidade para conviver com todos os demais psiquiatras brasileiros.
Chamaram mais a atenção os trabalhos ligando a Psicanálise à Psiquiatria e as
Técnicas Sociais apresentadas pelos que trabalhávamos na Pinel. Não é forçar muito a realidade dizer que
estava lançada a semente da fundação da ABP. Em realidade ficou 13. decidido que
o próximo congresso seria em Porto Alegre. A ABP foi fundada no interregno e
figurei no primeiro Conselho. 13 –
Expansão pela América. Minha eleição para Tesoureiro, depois Vice e finalmente
Presidente da Associação Latino Americana de Psiquiatria (APAL) formou um
vínculo novo, rico, entusiasmado e interativo com os colegas de todo o
continente, sem excluir os do Norte. A culminância foi o Congresso de 1983, da
APAl e da Sociedade Nacional de Neurologia Psiquiatria e Higiene Mental, que
reuniu em Porto Alegre os maiores nomes de nossa especialidade em toda a
América. 14 – A
aproximação com outras Entidades Brasileiras ficou determinada pela convocação,
e realização de reuniões simultâneas em todos os Congressos e Jornadas
realizados aqui. 15 – O
Encontro Nacional de Interconsulta Médica (1992), pela sua originalidade e
influências generalizadas e importantes, é um marco na integração da
Psiquiatria com outras especialidades médicas em situação igualitária. Sua
organização e realização em nosso meio acresceu motivos de prestígio da
psiquiatria no Rio Grande do Sul.
|