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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Agosto de 2017 - Vol.22 - Nº 8

Psicanálise em debate

“O ESTUDANTE”, DE KIRIL SEREBRENNIKOV

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

Indicado para o prêmio “Un Certain Regard” de Cannes em 2016, o filme russo “O estudante”, de Kiril Serebrennikov, baseia-se na peça “Martyr” do alemão Marius von Mayenburg.  O título em russo “(M)Uchenik  é um trocadilho, pois “Muchenik” significa “mártir” e “Uchenik” significa “estudante”, “discipulo”.  

O filme trata das dificuldades do estudante Veniamin, mas vai muito além, mostrando como estão imbricadas a loucura individual e a loucura institucional, coletiva, social.

Veniamin, o estudante, está com os problemas típicos da adolescência. Por um lado, tem de lidar com as transformações do corpo, com a própria sexualidade, o sexo oposto, e por outro, entra em confronto com as autoridades como forma de firmar sua própria identidade. Ele desafia os professores: falta à aula e diz ter ido consultar-se com um “ginecologista”, recusa-se a vestir roupa de banho para os exercícios na piscina.  Sua mãe, de forma invasiva e sem respeitar-lhe a privacidade, o inquire dentro do banheiro enquanto ele urina. Pergunta se ele falta as aulas de ginástica por ter vergonha do corpo, coisa que “todos têm”, ou é por ter “ereções involuntárias”. Constrangido, responde de forma irônica e debochada, mas termina por dizer que é por motivos religiosos que age assim.

Para Veniamin os dilemas da adolescência são mais difíceis pelo fato de ser filho de mãe solteira, o pai é apenas mencionado e parece não ter tido qualquer presença na criação do filho. Se o pai terreno lhe faltou, recorre ao pai divino. Vaniamin procura apoiar sua precária identidade masculina em Deus, na palavra divina. Como filho de Deus, encarrega-se de propagar sua mensagem desprezada.  Assim, sempre que questionado, responde citando candentes versículos da bíblia. Despreza a intermediação do padre da escola e como um profeta, tonitrua a voz de Deus pai em sua fúria punitiva contra os que desobedecem seus mandamentos e se entregam à luxúria e aos costumes decadentes.  

Isolado, Veniamin se aproxima de um colega que sofre bullying por ter um defeito físico. A amizade entre os dois progride e o amigo se transforma em seu discipulo, a quem se dispõe a curar.

Quem mais perturba Veniamin é a professora de biologia, com suas aulas de educação sexual, a defesa da homossexualidade e da teoria de Darwin que se opõe ao criacionismo divino.

As ideias religiosas fundamentalistas do adolescente contaminam a instituição, pois os professores se revelam incapazes de ter uma atitude firma e decidida frente a elas. Ao invés combatê-las e tratá-las, eles titubeiam e tendem a admiti-las, identificando-se com elas. A diretora concorda que o biquíni não é o traje ideal para a piscina do colégio (uma decisão hipócrita, pois os estudantes se banhavam nus na praia), pensa que a teoria darwiniana poderia ser ensinada junto com o criacionismo religioso tradicional. Quando o estudante constrói uma imensa cruz e a prega na parede de sua classe, os funcionários chamados para retirá-la não o fazem e se benzem, mostrando como se identificam com o estudante e se recusam a cumprir a ordem recebida. Mesmo a professora de biologia fica abalada com as ideias de Veniamin, passando horas estudando a bíblia para contra-argumentar com ele, dedicando tanto tempo a essa atividade que perde o namorado.

A dimensão delirante da religiosidade de Veniamin se agrava e não é percebida pelos adultos responsáveis. Ele passa a acreditar que, com suas teses heréticas, a professora de biologia pretende minar as bases da religião cristã, pois seria judia. Planeja assassiná-la e só não o faz por ter seu discipulo – com quem realizaria o plano – declarado sua paixão homossexual por ele, pecado imperdoável e punido com a morte.  

Ao ressuscitar o milenar antissemitismo, a loucura revela sua dimensão social, mais além do  pessoal e institucional. Mais uma vez, os professores apoiam o antissemitismo trazido por Veniamin. No inicio de forma discreta e depois abertamente, passam a discriminar a professora de biologia, que, tal como acontecia com Veniamin, ofendia suas secretas crenças religiosas com seu ateísmo, com a pregação da liberdade sexual e da teoria de Darwin.  

Veniamin acusa então a professora de tentar seduzi-lo sexualmente. Mais uma vez é o retorno do reprimido> De nada adiantou sua exacerbada religiosidade contra a emergência dos desejos sexuais, projetados agora na professora. Ela acha tão absurda a acusação que não a leva a sério, mas logo vê que não é o que ocorre com os demais colegas, que usam a acusação para expulsá-la da escola.

Embora utilizando a gramática do realismo, o diretor introduz algumas cenas surrealistas bem dosadas, de forma a não quebrar a unidade do filme, como na cena do Cristo crucificado com quem Veniamin tenta conversar e na cena onde o menino assassinado por Veniamin aparece para a professora, advertindo-a do perigo que corria, o que a faz mudar de ideia e resolver lutar contra sua expulsão. Ela prende com pregos seus sapatos no chão da sala e os calça, uma metáfora de que não se deixará arrancar dali, que nada a removerá de sua posição. É uma imagem patética, que revela sua força e determinação, ao mesmo tempo que expõe sua fragilidade e impossibilidade de lutar contra forças tão mais fortes que ela.

O interessante do filme é como mostra a expansão da loucura, que está incialmente centrada no estudante, que se rebela contra o que seriam as regras “normais” da escola. Mas logo vemos que a vida “normal” da escola é uma aparência, pois presenciamos a violência do bullying contra o aleijado. Em seguida, vemos o comprometimento dos próprios professores.

O filme mostra como as velhas crendices religiosas e os preconceitos ligados à sexualidade permanecem latentes, esperando um estimulo para ressurgir. Essa ideia é particularmente irônica e inquietante quando lembramos que na União Soviética durante décadas a religião foi oficialmente banida e combatida como o “opio do povo” e as massas eram educadas dentro dos princípios do materialismo dialético.  Sabemos que ao cair o comunismo, a igreja voltou com força redobrada, o que mostra suas raízes inconscientes, inalcançáveis pela argumentação logica e racional.


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