Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Junho de 2017 - Vol.22 - Nº 6 Psicanálise em debate RESUMO DE “A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA” DE LYOTARD
Sérgio
Telles A leitura de “A condição pós-moderna”, de Lyotard,
me causou grande impacto. A acuidade, profundidade e amplitude com que o autor
analisa nossa realidade atual muito me impressionou,
levando-me a tentar fazer um resumo – se é que se pode resumir uma obra tão
complexa e rica –, sublinhando os pontos mais chamativos numa colagem de trechos
da obra que me pareceram mais relevantes. Disso resultou um texto denso e pesado, de leitura
um tanto árida, mas que talvez sirva de estimulo ou roteiro para aqueles que se
sintam estimulados a seguir os passos de Lyotard iluminando os enigmas do mundo
pós-moderno em que vivemos. Introdução Há modificações importantes, desde os anos 50, na
concepção do que seja ciência e universidade. Não se trata da substituição de
um ‘mau’ conceito de ciência por outro ‘bom’ e sim entender que as
transformações tecnológicas provocaram modificações substanciais na forma de
produzir e distribuir o saber, ou seja, a ciência. Nosso cenário é essencialmente
cibernético-informático e informacional (o que é isso?) – nele expandem-se
estudos sobre linguagem para captar a mecânica de sua produção e
compatibilizá-la com a máquina informática. Estuda-se a ‘inteligência
artificial’, esforça-se para conhecer a estrutura e funcionamento do cérebro e os
mecanismos da vida. Procura-se ‘informatizar’ a sociedade. A ciência, via iluminismo,
era auto-referente, ou seja, existia e se renovava em função de si mesmo. Era
atividade ‘nobre’, ‘desinteressada’, sem finalidade previamente estabelecida,
objetivando romper as ‘trevas’ da ignorância e, desta forma, fazendo crescer
moral e espiritualmente a nação. Não tinha ‘valor de uso’ e o idealismo alemão
(Fichte – “a vida divina”, Hegel – “vida do espírito”) a via como desvinculada
do Estado, da sociedade e do capital, legitimando-se a si mesma. “Nação” e
“ciência” caminhavam juntas, na visão humanista-liberal de Humboldt, criador da
Universidade de Berlin, modelo de várias universidades no séc. XX. Este século, o cenário pós-moderno, despreza essa
visão de saber científico. Descobriu-se que a fonte de todas as fontes é a
‘informação’ e a ciência, assim como todo conhecimento, é apenas um certo modo de organizar, estocar e distribuir
informações. Não mais ‘vida divina’, não mais ‘vida do espírito’,
não mais ‘romper as trevas da ignorância’. Ciência é o conjunto de mensagens
possível de ser traduzido em ‘quantidades de informações’ – bits. Para as
máquinas informáticas, só será ‘conhecimento científico’ certo tipo de
informação traduzível na linguagem compatível com essas máquinas
(computadores). A pesquisa científica passa a ser condicionada pelas
possibilidades ‘técnicas’ do computador e o que escapa ou transcende tais
possibilidades tende a não ser operacional, já que não é expresso em bits. A
atividade científica deixa de ser uma práxis humanístico-liberal, especulativa,
que investe na formação do ‘espírito’, do ‘sujeito razoável’, da ‘pessoa
humana’ e até mesmo da ‘humanidade’. Passa a ser uma tecnologia intelectual, um
valor de troca desvinculada do produtor (cientista) e do consumidor, uma
prática submetida ao capital e ao estado, uma particular mercadoria, a força de
produção. Há, pois, uma deslegitimização da ciência, por
corrosão de seus discursos de legitimação (do dispositivo especulativo-
idealismo alemão, Hegel; do dispositivo de emancipação – Iluminismo, Kant, Marx
– fonte do que Nietzche chama de ‘nihilismo europeu’). Isso fez surgir novas
linguagens que aceleram suas próprias deslegitimação. É a noção de ordem que
está em crise, daí a discussão da ‘desordem’ – que valoriza o acaso, o caos, a
catástrofe. Daí o rompimento das delimitações clássicas dos campos
de saber. A universidade deixa de ser uma ‘produtora de saber e de ciência’ e
passa a fazer parte do arsenal estratégico-político dos Estados. Na revolução
industrial se descobriu que sem riqueza não há tecnologia ou ciência, no mundo
pós-moderno, descobriu-se que sem tecnologia não há riqueza. Falidos os antigos discursos legitimadores, qual é o
atual dispositivo legitimador da ciência? É o desempenho (performance),
que impõe não só o fim do discurso humanista-liberal por parte do estado, do
capital e até mesmo da universidade, pois o importante não é mais afirmar a
verdade e sim localizar o erro no sentido de aumentar a eficácia. Ou seja, o
que está em jogo não é mais a verdade e sim o desempenho, a melhor relação
input/output. As universidades não mais se preocupam em formar
indivíduos que levariam a nação à sua ‘verdade’, mas em formar técnicos
competentes para o bom funcionamento institucional. O pós-moderno tende a diluir as diferenças
epistemológicas entre procedimentos científicos e procedimentos políticos,
levando à conclusão (anti-kantiana, não cartesiana) de
que verdade e poder não podem estar separados. Embora isso evoque Bacon, aqui
agora é o contrário. Antes, a verdade e o conhecimento, davam poder ao
indivíduo para afrontar o estado. Agora, o estado (poder) impõe o que é
verdade. Lyotard modestamente diz ser este um texto de circunstância,
uma exposição sobre o saber nas sociedades mais desenvolvidas, proposto pelo
Conselho das Universidades junto ao governo de Quebec. Prossegue. O saber muda de estatuto nas
sociedades pós-modernas. Uma característica da atualidade é ver o saber científico como um
discurso. Estudos de vanguarda centram-se sobre os problemas de linguagem –
linguística, comunicação, cibernética, informática e matemática, computadores e
suas linguagens, busca de compatibilidade de linguagens-máquina, problemas de
memorização e bancos de dados, telemática, etc. Tudo o
que no saber constituído não é traduzível será abandonado, a orientação das
novas pesquisas se subordinará à condição de tradutibilidade dos resultados
eventuais em linguagem de máquina (aqui L. cita Watzlawick, que diz que a
transmissão de mensagens em código digital permite notadamente eliminar as
ambivalências). A aquisição do saber não está mais ligada aos
processos de ‘formação’ (Bildung) do espírito. Agora há fornecedores e
usuários de conhecimento, produtores e consumidores da mercadoria, o saber é
produzido para ser vendido. Deixa de ser ‘para si’
mesmo seu fim, perde seu ‘valor de uso’. Os conhecimentos são postos para circular segundo as
mesmas redes da moeda e a clivagem deixa de ser saber/ignorância para ser
“conhecimentos de pagamento/conhecimentos de investimento”, ou seja, conhecimentos trocados na vida
cotidiana versus créditos de conhecimentos capazes de otimizar
as performances (desempenho) de um programa. 2
- O problema: a legitimação Neste cenário de ‘informatização da sociedade’ é
ilustrativa a questão da formação do saber e dos efeitos sobre o poder público
e instituições civis. Isso pode produzir uma visão distorcida, pois, para
começar, o saber científico não é todo o saber. Ele sempre teve em
contrapartida e competição uma outra espécie de saber,
o narrativo, cujo modelo se relaciona com idéias de equilíbrio interior e
convivialidade, frente a qual o atual saber empalidece. Mas como resolver a questão da legitimação do saber? A
legitimação tem por modelo a da autoridade e da legislação (legislador) – o
cientista “legislador” estabelece que tal enunciado será
cientifico se obedecer a tais critérios, tal como um legislador o faz ao dispor
que tais cidadãos devem exercer tais funções. Essa ligação
já existe em Platão, a ligação entre legitimação e legislador, quando o direito
de decidir sobre o que é verdadeiro não se dissocia do direito de decidir se é
justo, havia um entrosamento entre os gêneros de linguagem “ciência” e “ética/política”. Vemos
ultimamente o quanto o saber científico subordina-se ao estado, o que só deixa
mais complexo o problema da dupla legitimação
anterior. Ela se apresenta mais completamente, evidenciando saber e poder serem as duas faces da mesma moeda/questão – quem decide o
que é saber, e quem sabe o que convém decidir? O
saber, na idade da informática, é problema do governo. 3
- O método – os jogos de linguagem Para analisar o problema, necessitaremos enfatizar os
fatos de linguagem e, neles, seu aspecto pragmático. Características de um enunciado ‘denotativo’ ou ‘cognitivo’
– ‘A universidade está doente’ - posiciona seu remetente (o que o enuncia), seu
destinatário (o que o recebe) e seu referente (aquilo de que trata o enunciado)
numa maneira específica – o remetente está na posição de quem sabe; o
destinatário, na de conceder ou recusar sua concordância e o próprio referente
é apreendido de uma maneira própria aos denotativos, como devendo estar
corretamente identificada e expressa no enunciado. O enunciado ‘performático’ (performance ou desempenho) - ‘A universidade está aberta’ –
dita por um reitor no início do ano, evidencia diferenças em relação ao
anterior. Tem a peculiaridade de seu efeito sobre o referente coincidir com a
enunciação: a universidade está efetivamente aberta, não é algo sujeito a
verificação ou discussão com o destinatário, que simplesmente poderá agir em
função dessa nova realidade. O remetente deve ter autoridade para proferi-la ou
pode adquiri-la ao proferir o enunciado. Nesse ponto do texto, Lyotard coloca
uma nota de pé de página em que cita Austin e ‘enunciados performativos’, termo
que reencontraremos quando falarmos dos sistemas. Performance
ou performatividade ou desempenho é a eficácia mensurável na relação
input/output. Em Austin, ele expressa a performance
ótima. Caso diferente diz respeito ao enunciado
“prescrição” – “Dêem meios à universidade” – moduladas como ordens,
comandos, instruções, pedidos, súplicas, etc. O remetente fica na posição de
autoridade, o destinatário deve obedecer. Interrogação, promessa, descrição literária,
narrativa, etc. são diversos tipos diferentes de enunciados, chamados por
Wittgenstein de ‘jogos de linguagem’. Cada categoria de enunciado é determinada
por regras que especificam suas propriedades e o uso que delas se pode fazer,
como no xadrez. Três observações se impõem – a –suas regras não se legitimam a si mesmas, são objeto de um
contrato explicito ou não entre jogadores; b-
na ausência de regras não existe jogo; modificada uma regra, modifica-se o
jogo; um lance ou enunciado fora das regras não pertence ao jogo; e c – todo enunciado deve ser considerado
um lance feito num jogo. Essa última afirmação é
importante, pois estabelece uma ‘agonística’ do jogo, falar é combater,
é jogar, é competir com um adversário, algo que se afasta da linguagem
operacional). Todo vínculo social é feito de lances de linguagem. 4
– A natureza do Vinculo Social – a alternativa moderna Ao falar do saber na sociedade contemporânea deve-se
decidir sobre qual a representação que fazemos dela. No último século, há duas
representações centrais, dois modelos: a – a sociedade é um todo funcional
(Talcott Parsons e sua escola) e b – a sociedade se divide em duas partes
(todas as escolas marxistas). A idéia de que a sociedade forma um todo orgânico
(escola francesa) torna-se mais precisa com o funcionalismo e assume uma outra modalidade quando Parsons, nos anos 50, compara a
sociedade a um sistema auto-regulável. O modelo teórico e material não é mais o
organismo vivo, mas é aquele fornecido pela cibernética. Sua visão é ainda
otimista, acredita no ‘welfare state’ e nas sociedades abundantes. Para os
teóricos alemães de hoje, a Systemtheorie
é tecnocrática, cínica, desesperada. Os indivíduos do sistema nada valem a não
ser para colocá-lo em funcionamento. A verdadeira finalidade do sistema, o
que o faz programar-se como uma máquina inteligente, é a otimização
da relação global entre seus input e output, ou seja, seu desempenho. Sua única
alternativa é a entropia, o declínio. Parsons diz que é ‘disfuncional’ tudo o que
desequilibra o sistema. Essa é a teoria ‘tradicional’, que engloba tudo em
nome do sistema e a otimização de seu desempenho. A
teoria ‘crítica’ (marxista) deveria fugir desse totalitarismo. Mas tal não se
dá. Nos paises mais avançados as lutas de classe serviram para a regulação do
sistema. Nos paises comunistas, as lutas de classe foram simplesmente
eliminadas por atrapalharem o sistema. Apesar de ter havido algumas tentativas de afinar o
instrumento crítico (escola de Frankfurt e ‘Socialismo ou
Barbárie”) esses projetos caducaram. Essa revisão rápida se justifica
pois não se pode falar sobre produção de saber atual sem se conhecer a
sociedade na qual ela se insere. De qualquer forma, essa dualidade funcionalismo
versus criticismo, homogeneidade ou dualidade intrínseca do social parece clara,
mas optar por uma delas é difícil. Tentou-se fugir da questão propondo-se dois
tipos de saber – um ‘positivista’ ligado às técnicas que otimizam
o desempenho do sistema e o ‘crítico ou reflexivo ou hermenêutico’, que
interroga sobre valores e ou fins. 5
– A natureza do vínculo social – a perspectiva pós-moderna Lyotard não segue essa divisão de saberes em pares
opostos, considera que não mais corresponde às manifestações pós-modernas. A
mutação da técnica e da tecnologia, o atual estágio do capitalismo segue com
uma mudança da função do estado. Os administradores darão vez a autômatos e
a grande questão será a aquisição e armazenamento de informações que estes
deverão ter para poderem fazer boas decisões. A classe dirigente será de
decisores, experts de toda sorte, afastando os políticos tradicionais,
tradições históricas, partidos, nações, profissões, etc Essa decomposição dos grandes relatos – a ser vista
em seguida – é tida por muitos como a dissolução dos laços sociais, fazendo
passar das coletividades sociais para o estado de uma massa de átomos
individuais lançados em absurdo movimento browniano. O ‘átomo’, entretanto, não está isolado, está no meio da rede da linguagem, dos discursos, colocados
nos nós de circulação da comunicação, ocupando nisso várias posições, como
vimos, nos jogos de linguagem. Uma última palavra sobre os jogos de linguagem nos
laços sociais. Eles transcendem a simples dicotomia ‘manipulação ou transmissão
unilateral da mensagem’ versus ‘livre expressão’. É importante salientar que
as mensagens não comunicam apenas informações. Vê-las assim é privilegiar o
enfoque do sistema, pois a máquina cibernética assim funciona. A teoria da
informação em sua versão cibernética deixa de lado um aspecto central, o
agonístico. Assim, para entendermos bem as relações sociais, em
qualquer escala, precisamos não somente de uma teoria da comunicação, mas uma
teoria dos jogos, que inclua a agonística. A descrição flexível de uma rede de discursos se
depara com situações muito rígidas ainda do ponto de vista social. Uma livre discussão entre amigos difere muito da que ocorre numa instituição, que exerce pressões suplementares para
que os enunciados sejam declarados admissíveis em seu seio (filtros do que
pode ou não ser dito, formas de dizer; por exemplo: enunciados no exercito, na
igreja, na família, no emprego, etc). Mas é bom lembrar que mesmo as
instituições estabelecem brechas no controle dos discursos. 6
– A pragmática do saber narrativo O saber
em geral não se reduz à ciência, nem mesmo ao conhecimento. O conhecimento
é o conjunto dos enunciados que denotam ou descrevem os objetos, susceptíveis de serem declarados falsos ou
verdadeiros. A ciência é um
subconjunto do conhecimento. Feita também de enunciados denotativos, ela
imporia duas condições suplementares à sua aceitabilidade: que os objetos aos
quais eles se referem sejam acessíveis recursivamente, portanto nas condições
de observação explícitas, que se possa decidir se cada um destes enunciados
pertence ou não à linguagem considerada como pertinente pelos experts. Pelo termo saber
não se entende apenas um conjunto de enunciados denotativos, a ele
misturam-se as idéias de saber-fazer, saber-viver, saber-escutar, etc. Trata-se
então de uma competência que excede
a determinação e a aplicação do critério único da verdade e que se estende às
determinações e aplicações dos critérios de eficiência (qualificação técnica),
de justiça/e ou de felicidade (sabedoria ética), beleza sonora, cromática,
(sensibilidade acústica e visual, etc). Saber permite alguém fazer bons
enunciados denotativos e prescritivos e avaliativos, etc. Permite boas
performances, uma formação considerável de competências. Uma outra característica é a
afinidades de determinado saber com os costumes, pois o reconhecimento da
competência de alguém (saber) é sempre feito socialmente. Há uma vinculação entre esse tipo de saber e
sociedades/culturas mais primitivas. Há um consenso – a preeminência da forma
narrativa na formulação do saber tradicional. O relato é a forma por excelência
desse saber. Primeiro aspecto – as histórias populares contam as formações
positivas ou negativas, sucessos ou fracasso dos heróis que legitimam a
sociedade, representam modelos de identificação. Permitem avaliar performances
e competências. Segundo – a forma narrativa permite uma pluralidade de
discursos, de jogos de linguagem. Terceira – a narração obedece a regras
que fixam sua pragmática. O saber que
essas narrações veiculam, longe de se ater exclusivamente às funções de
enunciação, determina o que é preciso dizer para ser entendido, o que é preciso escutar para poder falar e o que é preciso representar
para poder se constituir como objeto de um relato – é como se as três posições
do discurso fossem intercambiáveis naquele que o emite e nos que o
recebem. O que se transmite com os relatos é o grupo de regras pragmáticas que
constituem o vínculo social. Quarto – sua
incidência sobre o tempo – são melopéias nas quais o metro prevalece sobre o
acento nas ocorrências sonoras, o tempo deixa de ser o suporte da memorização e
torna-se uma cadência imemorial que, na ausência de diferenças observáveis
entre os períodos, impede de enumerá-los e os relega ao esquecimento. Como conciliar essa função letal do saber narrativo
com sua capacidade de formação de critérios, estabelecimento de competências e
regulagem social? É porque paradoxalmente essa sociedade não precisa lembrar de seu passado, ou melhor, passado e presente estão
fundidos no ato de participar da melopéia – o que é importante não é tanto o
significado do relato e sim o fato de proferi-lo. É uma temporalidade
simultaneamente evanescente e imemorial. Se essa cultura não tem necessidade de lembrar do passado, também prescinde de métodos de
legitimação que autorize seus relatos. Há uma incomensurabilidade entre a
pragmática narrativa popular, legitimante em si, e o jogo de linguagem
conhecido no Ocidente como legitimação. 7
– A pragmática do saber científico Nela se distingue o jogo da investigação ou
pesquisa e o do ensino. Quanto à investigação, vamos ver que, no
enunciado denotativo, pensa-se que o emissor pode provar o
que diz e refutar dúvidas, e que o destinatário tem formas de avaliar a validade
da afirmação, o que o coloca em situação paritária com o emissor.
Supõe-se, enfim, que o referente corresponda às descrições do emissor. Mas o
que prova que minha prova é verdadeira? A solução científica comporta duas regras. 1 –
dialética ou retórica do tipo judiciário: o referente é o que pode fornecer
matéria comprobatória – a “realidade é como eu digo, vê-se”; 2 – metafísica: o
mesmo referente não pode dar uma multiplicidade de provas contraditórias ou
inconsistentes – ‘Deus não é falacioso’. O séc. XIX chama isso de ‘verificação’, o XX de
‘falsificação’, onde o consenso joga papel importante. O ensino decorre da necessidade de formação
de pares, de iguais que possam aferir a veracidade das afirmações e a
competência do emissor. Seu jogo é, pois, diferente do jogo da pesquisa,
pois pressupõe que o emissor sabe e o destinatário (aluno) não; segundo passo, que esse aprenderá e
poderá ter a competência e o saber do mestre; terceiro, deduz-se que há enunciados que podem ser provados e
transmissíveis. Atingido o estudante o grau de mestre, seu professor
poderá discutir com ele o que não sabe e pretende saber, e é isso o que
recoloca a questão da pesquisa ou investigação que permite o desenvolvimento da
ciência. Ao se comparar esse saber com o narrativo, constatamos:
1 – nele, predomina o enunciado denotativo, com a exclusão dos demais; se
outros entram na argumentação, o fazem apenas como suporte (interrogação,
prescrição, etc); se é um erudito quando se é capaz de pronunciar corretamente
enunciados denotativos; 2 – esse saber
está isolado dos outros jogos de linguagem cuja combinação forma o laço social,
neste só participa indiretamente e não diretamente como o saber narrativo; 3 –
a competência requerida diz respeito estritamente à posição do enunciador, não
existe aqui algo como saber ser o que o saber diz que se é; 4 – um enunciado
não extrai validade do que é relatado, ele está sempre em questão, podendo ser
recusado se se prova que é improcedente, o mesmo acontecendo com todo o corpo
dos enunciados; 5 – há uma temporalidade diacrônica, uma memória e um projeto;
o acento é privilegiado em relação ao metro Ao discriminarmos os dois saberes, vemos que os dois
são imprescindíveis. Não há como compará-los ou julgá-los valorativamente. São
regidos por critérios diversos. Devemos admirar essa diversidade, sem
idealizá-los ou denegri-los. Entretanto, eles se relacionam e de forma pouco
harmônica. O saber narrativo despreza a legitimação, ele autoriza-se a si
mesmo; por isso, além da incompreensão, tem uma tolerância com o saber cientifico, que considera como apenas uma variação de seu
próprio discurso. O inverso não é verdadeiro. O saber científico
despreza como ‘selvagem e primitivo’ o saber narrativo, vendo-o como algo a ser
superado, fonte de obscurantismo, algo a ser
civilizado e educado. É, pois, uma
relação desigual, que marca a questão do imperialismo cultural e centra-se na
questão da legitimação. 8
– A função narrativa e a legitimação do saber Não se deve pensar que a passagem de um saber para o
outro se dá de forma definitiva. O recurso ao narrativo é inevitável para o
discurso da ciência - p. ex. - seus
relatos na mídia, fundamentais por causa de suas implicações econômicas e
políticas. O próprio trabalho de Lyotard o prova. Em Platão, nos diálogos, essa questão já está
presente. ‘O saber científico não pode saber e fazer saber que
ele é o verdadeiro saber sem recorrer ao outro saber, o relato, a narrativa,
que é, para ele, o não-saber, sem o que é obrigado a se pressupor a si mesmo e
cai assim no que ele condena, a petição de princípio,
o preconceito. mas não cairia também nisso, valendo-se
do relato?’ A ciência moderna tem duas novas componentes na
problemática da legitimação. Desvia-se da busca metafísica de
uma prova primeira (Deus) e reconhece que as condições do verdadeiro – isto é,
as regras do jogo da ciência – são imanentes a esse jogo, não podem ser
estabelecidas de outro modo a não ser no seio de um debate ele mesmo já
científico e que não existe outra prova de que essas regras sejam boas senão o
fato de formarem o consenso dos experts. O restabelecimento da dignidade das culturas
narrativas populares aparece já no humanismo renascentista, no Sturm und Drang e idealismo alemão, na
escola histórica da França – e não no iluminismo. A narração deixa de ser um
lapso na legitimação. Esse apelo à narração na problemática do saber é
correlato à emancipação dos burgueses em relação às autoridades tradicionais
(igreja e realeza). O saber dos relatos fornece legitimidade às novas
autoridades – quem tem o direito de decidir pela sociedade? Quem
prescreve? O povo. A legitimidade
sócio-política combina-se com a nova atitude cientifica – o nome do herói é o
povo, o sinal de legitimidade seu consenso, a deliberação sua normativação. O
povo debate o que é justo, assim como o cientista debate o que é verdadeiro; leis civis e leis cientificas, consenso social e paradigmas
científicos. Esse povo
é completamente diferente do povo do
saber narrativo, ele é o operador do saber cientifico. Isso evidencia uma
relação entre saber científico e poder político – instituição representativa do
povo – que – enquanto Estado - passa então a ser o operador da ciência. Essa ligação não é simples, pois o povo agora não se contenta em apenas
denotar, ele delibera, questiona, prescreve, etc. Tem competências. Com isso,
mais uma vez e de forma paradoxal, se aproxima do povo do saber narrativo. A legitimação pela narrativa oferece dois modelos,
pode seguir duas direções, conforme represente o sujeito do relato como cognitivo
ou como prático – como o herói do conhecimento ou como herói
da liberdade. 9
– Os relatos da legitimação do saber Veremos duas versões do relato da legitimação – uma
mais política, a outra mais filosófica. Uma tem por sujeito a humanidade como herói da
liberdade – postula essa versão que todos têm direito ao ensino e ao
conhecimento, à ciência, do que foram afastados pela religião e pelos tiranos.
Vide as disposições napoleônicas visando aparelhar de técnicos o estado, o que
reverteria para o povo sob a forma de acesso ao conhecimento e à ciência. No outro relato de legitimação, a relação
ciência-estado-nação se dá de outra forma. Vê-se na fundação da universidade de
Berlim e nas formulações de Humboldt – aparentemente é um ‘buscar a ciência em
si mesmo’, mas remete esta “à formação espiritual e moral da nação’ (Bildung). Humboldt evoca um
‘espírito’, Fichte uma ‘vida’, organizando um idealismo que pressupõe um
princípio único universal, uma Idéia, que se manifesta simultaneamente na
pesquisa e descobertas da ciência como na persecução de justos fins na vida
moral e política. O sujeito é a síntese final disso. Apesar de falar em
‘caráter intelectual da nação alemã’, isso é mera concessão ao ‘povo’, pois
para Humboldt, o povo não é o sujeito do saber e sim o ‘espírito especulativo’.
Ao contrário da França pós-revolução, onde esse ‘espírito especulativo’
encarna no estado, agora ele encarna num sistema. O jogo de linguagem da
legitimação não é o político-estatal e sim o filosófico, especulativo. Isso, que se constitui como o idealismo alemão, com sua Idéia unificadora e totalizante, sua ‘vida’, sua ‘história
universal do espírito’, sua ‘enciclopédia’, tudo isso permite o retorno
do saber narrativo no seio do saber cientifico. A ciência não deve servir aos interesses do estado
ou da sociedade civil, ignora-se o principio humanista de que a humanidade se
eleva com o conhecimento e o saber. O idealismo alemão recorre a um meta-princípio que legitima tudo – conhecimento,
sociedade, estado, que participam de uma ‘vida divina ou do espírito’. Neste
princípio, o saber se legitima a si mesmo e legitima a sociedade, o estado.
Para fazê-lo se afasta dos referentes mais imediatos, deixa de ser o
conhecimento positivo da natureza, estado, sociedade, para ser o saber dos
saberes, a pura especulação. Fica organizado uma súmula do saber,
estruturada em escaninhos próprios, vasos comunicantes que se auto-referem. Pode-se resolver a questão da legitimação por outra
via. O saber não encontra aí sua validade em si mesmo, num sujeito que se
desenvolve atualizando suas possibilidades de conhecimento (Bildung) e sim num sujeito prático, a
humanidade. O povo se preocupa não com o saber em sua autolegitimação, mas a
liberdade em sua auto-fundação, sua autogestão. Para
esse sujeito concreto, as leis são justas não por emanarem de fora, de uma
natureza exterior e sim porque emanaram de legisladores, que enquanto cidadãos, escolhem o que é melhor para todos, inclusive para ele
mesmo. O desejo de que a lei faça justiça coincide com o desejo do legislador
de que a justiça seja lei. Desta forma, para esse homem pragmático,
interessa mais os enunciados prescritivos (e sua justiça) do que os denotativos
(e sua verdade), que passam a ser apenas suportes para
o julgamento dos primeiros. A legitimidade do saber se situa agora na sua
moralidade, na sua justiça. Vê-se a função crítica do saber. De novo se introduz a relação entre saber e estado –
a questão dos meios e dos fins. Ou seja, a questão ética, os comportamentos dos
cientistas, que julgarão se a política do estado é justa ou não para com os
cidadãos. 2 notas – 1 - o marxismo pode ter as duas trilhas –
ser um ‘idealismo’ (totalitarismo) ou um ‘saber critico’ (escola de Frankfurt);
2 - o grande equívoco de Heidegger no discurso de posse universitário, quando
torna a ciência especulativa num questionamento do ser, apelando para o ‘povo
histórico-espiritual. 10 – A deslegitimização Na pós-modernidade, os grandes relatos – quer seja o especulativo, quer seja o de emancipação,
pragmático – perderam a credibilidade. Isso se deve basicamente aos grandes
desenvolvimentos das técnicas e tecnologias a partir do final da Segunda Guerra,
com o crescimento do capitalismo e desmoronamento do mundo soviético. Mas é preciso reconhecer que já havia indícios disso
antes, os germes da ‘deslegitimização’ já estavam presentes, apenas
perceptíveis. O dispositivo
ou relato especulativo desde sempre encerra uma espécie de equívoco quanto
ao saber. Ele funciona por autonímia. Isso significa que em sua imediaticidade,
o discurso denotativo que versa sobre um referente (organismo vivo, propriedade
física ou química) não sabe o que ele acredita saber. A ciência positiva não é
um saber. E a especulação nutre-se de sua supressão. Ela precisa se apoiar num
outro discurso (filosófico?) para legitimar-se, o que a expõe à manipulação, a instrumentos
de poder, ideologia, etc. Isso aproxima a questão com a dos jogos de linguagem.
A crise do saber científico procede da erosão interna do princípio de
legitimização do saber, ela opera um jogo especulativo e afrouxa a trama
enciclopédica que antes mantinha uma certa ‘ordem’
entre os vários campos de científicos. Quanto ao outro procedimento de legitimação, o
decorrente da Aufklarung, o dispositivo
de emancipação, seu poder erosivo é tão grande quanto o especulativo. Ela
fundamenta a legitimidade da ciência, a verdade, sobre a autonomia dos
interlocutores engajados na prática ética, social e política. Mas isso é um
problema, pois entre um enunciado denotativo de valor cognitivo (falso ou
verdadeiro) e um enunciado prescritivo de valor prático (justo ou injusto) há
uma diferença de pertinência, de competência. O verdadeiro não necessariamente
é justo (como gostariam os idealistas). Ex – ‘a porta
está fechada’ e ‘abra a porta”. São competências diferentes. Constatar
isso ataca o discurso da ciência indiretamente mostrando como ele é um jogo de
linguagem, que segue regras próprias, sem vocação para regulamentar o jogo
prático. Ele é assim colocado em paridade com os outros – digamos assim, no
relacionamento social, não se pode reger puramente pelos ditames científicos.
A ciência joga seu próprio jogo, não pode legitimar os outros jogos de
linguagem, escapa-lhe o da prescrição, com isso ele não pode mais se legitimar
a si mesmo, como autorizaria a especulação. Na disseminação dos jogos de linguagem, pareceria
que o próprio sujeito social se dissolve. O que não é verdade, pois o maior vinculo social é a linguagem. Não há um metadiscurso
único, uma linguagem universal. Vide o exemplo de W. – uma velha cidade, com
casas novas, onde começa a cidade, etc. São criadas novas linguagens, como as das máquinas. Essa visão pode gerar um grande pessimismo, como o
expresso pelo grupo de Viena, Musil, Krauss, etc. Nostalgia dos grandes relatos. Mas não caminhamos
para a barbárie. Resta-nos sempre a linguagem. 11 – A pesquisa e sua
legitimação pelo desempenho (performance) A ciência hoje sofreu duas grandes modificações – o
enriquecimento das argumentações e a complicação da administração das provas. O enunciado denotativo per se não é suficiente como
prova, ele precisa se apoiar numa metalinguagem que é a lógica. Quais os critérios lógicos para definir a axiomática
inerente ao enunciado denotativo? As propriedades de um sistema formal são a – consistência: um sistema não pode
abrigar afirmações que se contradigam; b
– completude sintática: o sistema perde sua consistência se um axioma lhe é
adicionado; c – decidibilidade: há
um procedimento que decide se uma
proposição é compatível ou não com o sistema e d – independência dos axiomas uns em relação aos outros. Goeddel
mostrou que os sistemas formais têm limitações internas, é não confiável,
permite a formação de paradoxos. Assim, os cientistas trabalham dentro do consenso de
que a axiomática em uso é a melhor possível. As vezes
estabelecem (exigem) um consenso em torno de uma linguagem cujas propriedades
não podem ser inteiramente descritas. O progresso existe quando se fazem novos lances
dentro das regras estabelecidas ou quando o lance rompe com essas regras e cria
novas. Um outro aspecto diferente diz
respeito à administração das provas.
A prova é um tipo da argumentação que convoca o referente, a ‘realidade’. Como se registra isso, com os meios de percepção,
com todas suas falhas? É quando intervêem as
técnicas (próteses dos órgãos perceptivos). As técnicas obedecem a um
princípio, o da otimização do desempenho, da performance
– aumento do output (informações ou modificações obtidas) e diminuição do input
(energia despendida para obtê-la). Nestes
jogos, a pertinência não é mais o verdadeiro, o justo, nem o belo, etc. mas o eficiente. A definição de competência técnica, de performance, é tardia. Até bem recentemente as grandes
invenções se davam ao acaso, ligavam-se mais às artes. A necessidade de administrar as provas cresce com a
complexidade da ciência. Os aparelhos que otimizam as
performances do corpo humano visando administrar provas custam caro. Nada de
prova e verificação, nada de verdade sem dinheiro. Os jogos de linguagem
científica vão se tornar jogos dos ricos. Traça-se uma equação entre riqueza,
eficiência, verdade. Descobre-se que não há técnica sem riqueza, nem
riqueza sem técnica. É nesse momento que a ciência se torna uma força de
produção, um momento na circulação do capital. É o desejo de enriquecimento e não o de saber o que
norteia a melhoria das performances e da realização dos produtos. Há uma junção
da técnica com o lucro que precede sua junção com a ciência. O capital e o estado, por essa razão financiam a
ciência, através de várias instituições, a principal delas sendo a
universidade. A
administração da prova passa a ser controlada por um outro
jogo de linguagem onde o que está em jogo não é mais a verdade (nem o justo) e
sim o desempenho, a melhor relação input/output. O estado e a empresa abandonam
os antigos discursos legitimadores da metafisica (idealista) e da pragmatismo (humanista) para justificar a nova disputa, o
que interessa é o poder. Não se financiam cientistas, técnicos, aparelhos para
encontrar a verdade ou a justiça, e sim para ter poder. Em que consiste o discurso do poder e poderá ele
legitimar uma prova? O que parece inicialmente dificultar isso é a relação
entre força (poder) e direito, e força (poder) e sabedoria. Isto é, a diferença
entre o forte, o justo e o verdadeiro. É a mesma questão quando distinguimos as
competências diferentes entre o discurso denotativo (falso/verdadeiro),
o prescritivo (justo/injusto) e o técnico (eficaz/não eficaz). A força só
diz respeito a esse último campo, jogo. A força cai fora do jogo da linguagem
quando incorre no terror, na eliminação física do adversário. A introdução brutal da técnica influencia os demais
jogos. A relação de desempenho e verdade, desempenho e justiça. Haveria nas
sociedades modernas uma substituição da normatividade legal pela eficiência
mensurável dos procedimentos. Como a
realidade é o que fornece as provas da argumentação científica e as indicações
para as prescrições de ordem jurídica, ética e política, pode-se ser o
controlador de tudo isso quando se tem a própria ‘realidade” através
dos eficientes desempenhos fornecidos pela tecnologia. Ou seja, a tecnologia
permite alguém ser o dono da realidade, com conseqüências impensáveis. É dessa forma que a ciência se legitima pelo poder. A relação entre ciência e técnica se inverte. O
investimento do capital e do estado será feito em pesquisas que aumentem seu
poder, os demais serão abandonados. 12 – O ensino e sua legitimação
pelo desempenho É mais fácil descrever a outra vertente do saber, o
da sua transmissão. Quando o critério norteador é o desempenho no
sistema social, a universidade passa a ser um sub-sistema
do sistema social, devendo cumprir com as mesmas exigências de desempenho. Não
forma mais uma elite para guiar a nação em sua emancipação e sim competências,
fornece ao sistema jogadores para ocupar lugares pragmáticos nas instituições
necessitadas. A conseqüência maior é a total subordinação das instituições do
ensino superior aos poderes constituídos. Se o saber não é mais um fim em si
(como realização da ‘Idéia’ ou como ‘emancipação dos povos’) sua transmissão
transcende à relação mestre aluno, passa a ser controlada pelo estado ou pelo
capital. A figura do professor fica obsoleta, na medida em
que se perdem os dois grandes relatos de legitimação (vida do espírito, Idéia e
emancipação dos povos). No contexto mercantilista do saber, a questão que
importa não é mais ‘o que é a verdade?’ e sim ‘para que serve isso’ ou ainda
‘isso é vendável?’. ‘isso é eficaz para a manutenção do poder? Ponto importante. No jogo de informação incompleta,
é fundamental o aprendizado. Nos jogos de informação completa, não está em jogo
adquirir suplementos adicionais e sim a possibilidade de fazer novos arranjos
dentro dos dados já sabidos. Pode-se chamar de imaginação essa capacidade de reorganizar os dados. Como não há
mais segredos científicos, o progresso dependerá grandemente dessa
‘imaginação’. Para tanto a interdisciplinaridade seria de grande ajuda (ao
contrário do que pensava Humboldt) com seus trabalhos de grupo, seus
‘brainstorms’. Observe-se que isso diz mais respeito a pesquisa que a transmissão do conhecimento. O que está em
jogo é a própria produção, que poderá se dar em forma
de ‘colégios invisíveis’ aristocráticos, dentro ou fora da universidade. 13 – A ciência pós-moderna como
pesquisa de instabilidade Falamos há pouco da
importância, nos jogos de informação completa, da imaginação como forma de progresso geral. Ela paradoxalmente foge ao modelo que a cria, pois o
desempenho ótimo na relação input/sistema/output produziria um determinismo
evidenciável em sua previsibilidade, razão da crise crônica desse modelo, que levaria, em última instância a uma desestabilização. Assim, vamos ver que a pragmática do saber
científico tem pouca afinidade com a busca do desempenho (!!)
a expansão da ciência não se faz pela eficiência e pelo desempenho e sim o que
escapa como paradoxo, o contra-exemplo. Mas a questão da legitimidade volta a se colocar. É a
própria ciência que levanta a si mesma a questão, não a filosofia à ciência. ‘O que vale seu argumento? ’, ‘o que vale sua prova? ’
faz parte da pragmática do saber científico e o garante, é uma questão
inelutável, parte da visão pós-moderna da ciência, que é a imanência a si mesmo
e às regras que regem seu discurso e que o legitimam. Ao invés de simplesmente se apoiar na filosofia (no
positivismo lógico, por ex.), o saber cresceu ao incluir no discurso filosófico
o discurso (as questões sobre) da sua validação de enunciados com valor de leis
(acho que fala especificamente da epistemologia). Tal inclusão não é simples e
criou vários paradoxos. A idéia de performance,
desempenho, implica a de um sistema com estabilidade firme, uma relação
calculável e previsível. A mecânica quântica e a física atômica mostram que os
sistemas não são estáveis. (A própria idéia de um controle perfeito do sistema
é pouco econômica. Há uma intrínseca incongruência no modelo do desempenho.) Falava-se aqui do diálogo entre cientista e natureza
como um jogo de informação incompleta, sendo essa um adversário indiferente,
não astuto como o homem. O que significa que quando o conhecimento focaliza o
homem, não há mais indiferença ou mudez, mas estratégias, conflitos,
agonística. Se os teóricos dos sistemas insistem em manter a
visão do ótimo desempenho como o que o legitima, começa-se a ver na matemática
uma corrente que põe em marcha medida e a previsão dos objetos segundo a escala
humana. Não existiriam senão ilhas de determinismo, o que
prevaleceria seria a catástrofe, o inesperado, o acaso, o jogo, o conflito. O
saber produziria não mais o conhecimento mas o
desconhecido. O modelo de legitimação não é de forma alguma o desempenho mas a diferença, compreendida como paralogia. Não existiria método cientifico, apenas as ideias
que um cientista teve e as contou (Medawar). 14 – A legitimação pela paralogia Embora os grandes relatos não mais legitimem a
ciência, pequenos relatos o fazem, especialmente aqueles em torno da paralogia. Paralogia é diferente de inovação, pois essa é comandada ou
utilizada pelo sistema para melhorar sua eficiência, a outra acontece ao acaso,
inesperadamente no correr da pragmática dos saberes, muitas vezes desconhecida
de imediato. Que ela possa ser posteriormente transformada em inovação está
fora de debate, mas é inoportuno para nossa hipótese, que quer isolá-la e
examinar sua especificidade. De agora em diante, a ênfase
da pragmática da ciência deve ser colocada não no consenso e sim no
dissentimento. O consenso estabiliza e possibilita uma
previsibilidade (estabelece paradigmas) que anula as paralogias, futuras
inovações. Por isso é importante investir no que discorda,
no que abala esse consenso. Como supor esse poder de criar novas regras e novos
campos? Ele se parece com o que Thom
chama de ‘morfogênese’, é um processo que tem regras, mas sua determinação é
sempre local. Isso implica a imprevisibilidade das descobertas. Isso mostra como a teoria dos
sistemas e o tipo de legitimação que ela propõe não tem base científica:
nem a própria ciência funciona em sua pragmática segundo o paradigma do sistema
admitido por essa teoria, nem a sociedade pode por ele ser descrita. Isso não
desmerece o paradigma, apenas mostra suas limitações. Se não são apontadas,
vamos pensar que o paradigma dos enunciados denotativos ou
cognitivistas abarcam todo o saber, provocando situações catastróficas,
inclusive a de paralisar o desenvolvimento da ciência, pois a paralogia
confunde e opacifica temporariamente, por romper as regras do jogo e seus
mentores serão ignorados e calados pelo transtorno que provocam. A
paralogia propõe que a metaprescrição que rege os enunciados denotativos seja
alterado. Qual seria o efeito da paralogia na sociedade? Refuta
Habermas que propõe um consenso, coisa que Lyotard reprova. O que deve ser preconizado é o reconhecimento da
heterogeneidade dos jogos de linguagem, o que evita o terror totalitário. Em
segundo lugar, se há consenso sobre as regras do jogo, esse consenso deve ser
local e sujeito a eventual anulação. Isso mostra a importância da rede, da fragmentação,
da singularidade das situações em jogo, a evitação de imposições totalizantes
(por exemplo, Rede Globo programação nacional versus programação regional). Quanto a informatização da sociedade, ela pode levar
ao controle e ao terror (aqui é bom lembrar que Lyotard não inclui a internet
em sua argumentação) mas também tornar a informação
acessível a todos de uma forma como nunca houve antes na humanidade. Isso
permitirá jogos de informação completa, o que favorecerá a ‘imaginação’.
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